O depoimento de um acusado e o princípio do juiz - acusador

29/07/2017

Por José Edvaldo Pereira Sales – 29/07/2017

Não me recordo exatamente como aconteceu[1]. Na verdade, não sei como tudo começou e não tenho explicações sobre o término. Estive envolvido numa confusão ocorrida numa festa num local costumeiro. Era tarde da noite, quando os brincantes já ingeriram bebidas, a visão se torna mais aguçada para umas coisas que para outras e as personalidades mudam às vezes para um tipo oposto. Senti que houve um empurra-empurra, gritaria e disparos, talvez dois, de arma de fogo. Tentei correr, mas fui puxado pela camisa. Alguém disse:

- Foi esse aqui!

Então, acordei.

Minutos depois, estava dentro de uma viatura.

Tinha recebido uma pancada na cabeça que doía muito. Soube disso porque a enfermeira me relatou. E a ela disseram os policiais. Sei apenas que sentia a inexplicável dor.

Cheguei à delegacia, assinei uns papeis depois de um longo tempo de espera e fui posto numa cela.

Passaram-se dias, semanas, meses até que fui levado para uma audiência com o juiz. Lembro bem que o advogado, que vi naquele dia, disse que faria um pedido de liberdade. Voltei cheio de esperança. Aprendi que não há nada melhor para combater um espírito ansioso que o tempo sem respostas.

Novamente passaram-se dias, semanas... E até que a outra audiência ocorresse, passei a acreditar com veemência que se o inferno existe, a prisão é a expressão mais viva dele criada pelo ser humano. Nós que somos mestres em simbologias e metáforas, aí está uma (quase) perfeita.

Depois da segunda audiência, recordo-me apenas que num certo dia recebi a intimação da decisão do juiz. Com ajuda dos outros presos e também dos agentes prisionais, soube que seria julgado pelo tribunal do júri.

O tempo passou até que chegou o dia marcado e fui levado para o fórum.

Sempre tive medo durante todo esse tempo. Naquele dia, entretanto, foi diferente. Desloquei-me firmemente sem qualquer receio. Não que acreditasse na minha absolvição; mas, em situações como a minha, o que queremos mesmo é um desfecho. Não importa ser condenado – pensava comigo mesmo; ser condenado é o começo do fim e isso basta. O aspecto menos aflitivo para minha existência é que a escolha não dependia de mim. Sempre achei que escolher é a questão mais problemática da vida.

Entrei naquele salão com passos firmes. Fiquei confuso porque me veio à memória à imagem da igreja que frequentei na minha infância. Aquilo só podia ser um ato religioso: pessoas circunspectas, livros enormes sobre as mesas, todos os participantes com uma vestimenta especial, uma liturgia, um crucifixo pendente... tudo. Só não ouvi música! Isso fez toda a diferença para mim, pois um lugar sem espaço para esse tipo de arte só pode ser perigoso.

Houve muitos atos dos quais não me recordo bem. Sei que os jurados foram chamados pelo nome. Uma hora a gente se levantou e houve algo como um juramento. E, então, aqueles mesmos policiais de antes foram ouvidos. Na verdade, apenas dois, pois um faltou. A pessoa que dizia ser eu o autor do homicídio, não compareceu também.

Achei estranho. Como vão me julgar sem essas duas testemunhas?

Finalmente, chegou minha hora de falar. Aquele juiz já havia ouvido minha história, mas me perguntou tudo outra vez como se fosse a primeira. O promotor me fez perguntas e o defensor também.

Lembro bem dessa parte final porque tudo começou quando o juiz disse:

- Encerrada a instrução...

Porém, antes de terminar a frase – e até hoje não sei o que o juiz diria – ele foi interrompido pelo promotor. Achei-o mal-educado e até desrespeitoso por não ter pedido para falar. Foi falando como acontece quando a gente interrompe alguém numa conversa na família. Ele ficou em pé e em tom forte com a mão direcionada ao juiz disse:

- Agora, com a palavra o juiz que ocupará a tribuna para fazer a sustentação da pronúncia pelo tempo de uma hora e meia[2].

Essa frase assim como as outras foi muito embaraçosa para mim. E notei que ela foi mais embaraçosa para o juiz, que empalideceu, começou a suar, a voz e as palavras não lhe socorreram... até que, como que recobrando sua lucidez, ele travou um intenso debate com o promotor.

Continuei sem entender porque via nos filmes que o debate era entre o promotor e o advogado.

Olhei para o advogado que fazia minha defesa, daqueles que são nomeados – na verdade, era a primeira vez que o via – para pessoas que respondem a processos na minha condição, e vi que ele, assim como eu, também estava perplexo.

Sentado no meio daquele salão, com aquela sensação inexplicável de ser observado de forma negativa por todos, nunca pude dizer o que os jurados sentiram e como reagiram àquele momento. Os jurados, pelo menos para mim, foram juízes sem rosto.

No auditório... lá não havia ninguém. Só minha mãe, que em casa, depois de um forte abraço, disse para mim:

- Meu filho, as coisas de Deus são assim: não procure entender apenas creia!

E como dizem que depois da tempestade vem a bonança, passei a acreditar que a gente só sabe mesmo a fé que tem ou se é possível tê-la até ser posto numa grande confusão. Nunca entendi aquilo...

Transcorrido algum tempo do início daquela discussão, percebi que a lei não importava mais, e muito menos eu (na verdade, penso até hoje que nunca tive importância mesmo. Recordo que depois do julgamento, fiquei lá parado sem saber o que tinha acontecido ao certo ou para onde ir. Aquele foi o momento existencial mais enigmático da minha vida. Quem disse que eu poderia ir foi o advogado, meu salvador daquela hora), e sim saber quem mandava mais. A situação acalmou quando o promotor disse:

- Mantenho minhas alegações e não tenho acusação contra o réu.

Meu advogado apenas confirmou essas palavras. (Notei que ele foi um figurante. Foi um coadjuvante em toda aquela cena).

No final, fui retirado do salão. Depois, retornei e, enfim, o juiz leu a decisão dizendo que eu estava absolvido. Até hoje fiquei com a dúvida sobre quem mandava mais considerando o resultado do julgamento.

Passados tantos anos, ainda recordo que fiquei preso um ano, três meses e quatorze dias. Fui à delegacia uma vez. Participei de duas audiências com o juiz. Na última, fui ouvido. Aguardei o dia do meu julgamento. Quem me acusou, não sei. Nunca a vi. Nem na delegacia nem nas audiências. Só ouvi os policiais dizerem que me prenderam no local e que havia comentários de que eu teria sido o autor de um homicídio. O depoimento, exatamente o da pessoa que dizia ser eu o responsável, não foi por mim presenciado. Sobre o resto, refiro-me ao que aconteceu comigo durante a prisão, prefiro o silêncio, que não significa ausência de palavras. Sobre esses fatos da intimidade aprendi algo que não havia pensado antes – meu sofrimento não ficou no passado, ele está aqui e agora nos meus pensamentos; o que eu gostaria mesmo era esquecer as cenas ou, pelo menos, não ter palavras para pensar nelas; mas, sempre que elas vêm à minha memória, as palavras vêm juntas e também o sofrimento. A natureza retirou-me o direito de não ter palavras para pensar, o direito de não sofrer.

No dia do julgamento, estava convicto como sempre estive, mas depois de mais de um ano preso é como se a vida da gente não tivesse fim embora a cada instante parecesse que ela terminaria ali mesmo. Passei a ter uma crença absoluta na eternidade e na morte. Enquanto aguardava o resultado do julgamento, o nervosismo tomou conta de mim. Meu nervosismo transformou-se em ansiedade, minha ansiedade em angústia, minha angústia em desespero, meu desespero em perplexidade, minha perplexidade em confusão, minha confusão em fé, minha fé em liberdade. Só não tenho explicações... acho que é porque não tive (e não tenho) entendimento ou discernimento.

Desde o início do processo, dois artigos foram memorizados por mim: o 121, que é o de homicídio, crime do qual eu estava sendo acusado; e o 385[3] – não sei do que trata, mas acho que é muito importante porque toda a confusão no dia do julgamento foi por causa dele. Penso até hoje que para ser doutor precisa estudar muito mesmo. Como pode um só artigo gerar uma discussão tão grande entre dois doutores, o promotor e o juiz? E, pior, parece que foi esse artigo que colocou aqueles dois doutores um no lugar do outro. É como se naquele momento houvesse um promotor-presidente e um juiz-acusador.

De tudo que sucedeu no dia do meu julgamento, restou uma frase daquele promotor que lembro sempre, dia e noite, naqueles momentos quando a gente se dá conta de que a vida é nada. Ele a pronunciou umas cinco ou mais vezes naquele dia. Cada vez com mais veemência como se estivesse acusando alguém – e não era a mim e nem a ninguém que ali se encontrava. Ele dizia:

- Quero instituir um novo princípio no processo penal para o tribunal do júri: se a acusação é retirada pelo acusador e mesmo assim o processo acusatório continuar com a pronúncia do acusado, caberá a acusação em plenário do júri ao juiz. É o princípio do juiz acusador![4]

Os anos não conseguem me responder o que ele quis dizer com isso porque na minha cabeça o promotor é o acusador[5].


Notas e Referências:

[1] É possível que ao longo do relato existam inconsistências. O depoente é um leigo que vê tudo a partir de uma perspectiva. Quem ouve o relato e tenta transmiti-lo, ocorre o mesmo. O esforço na descrição é para que o essencial, que nos parece ser a divergência em torno de um artigo do código de processo penal, mas que tem repercussões bem mais amplas passando necessariamente pela Constituição, seja transmitido para nossa reflexão.

[2] Esta é uma situação paradoxal porque o promotor pode utilizar-se do que produziu durante a instrução. A denúncia que ofereceu, as alegações finais sobre a avaliação das provas, as provas por ele indicadas e produzidas, ou as que vieram da polícia; entretanto, o único ato do juiz que faz uma análise não aprofundada do processo para reconhecer os elementos necessários para levar ao acusado ao júri popular é a pronúncia, que não pode ser utilizada por expressa vedação legal (CPP, art. 478, I). Seria como falar sem ter fontes para a fala.

[3] CPP, art. 385.  Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.

[4] Há dois erros na proposição desse eminente promotor: seu conceito de princípio tem origem na consequência de um ato (decisório); pressupondo que o princípio é sustentável, sua repercussão não se dá apenas para os processos que envolvem os crimes dolosos contra a vida. Neles a situação suscitada torna-se mais evidente por causa da necessidade da sustentação oral da acusação. A regra no processo penal, contudo, é que a sustentação da acusação é escrita; logo, na grande maioria dos processos penais em que a acusação é retirada, qualquer que seja o fundamento, mas o processo prossegue e chega-se a uma condenação, a eloquência da acusação às avessas é escrita.

[5] Realmente não faz sentido dar prosseguimento à ação penal se o ministério público a retirou por qualquer motivo. Isso já ocorre em se tratando de inquérito policial. Se há discordância com o arquivamento, aplica-se o art. 28 do CPP e remetem-se os autos ao procurador-geral de justiça. O mesmo ocorre em situações que exijam a iniciativa do ministério público como é o caso da proposta de suspensão condicional do processo (Súmula 696 do STF) e transação penal (Enunciado 86 do Fonaje). Ora, por razões mais fortes ainda é que o pedido de impronúncia se houver divergência deve ser aplicado por analogia o mesmo art. 28 do CPP. Retira-se, assim, do juiz a possibilidade assumir a titularidade da ação penal, pois é isso que ocorre de fato quando o promotor retira a acusação por qualquer motivo; e, ao mesmo tempo, estabelece-se uma revisão dessa retirada da acusação pelo chefe do ministério público. Há, tal qual ocorre no arquivamento de inquérito com divergência do juiz, um controle. Não é, ainda, uma solução mais adequada porque todas as críticas existentes à imparcialidade do julgador em se pronunciar de forma divergente a um arquivamento, no caso de inquérito, recaíram nas situações envolvendo impronúncia. De qualquer forma, é o que temos. E essa solução é menos problemática que a disciplina do art. 385 do CPP. Mantém-se a titularidade da ação penal com o ministério público. Se o procurador-geral insistir na impronúncia, nada mais poderá ser feito. Se discorda, que designe outro membro da instituição para oferecer peça substitutiva e prosseguir na acusação, inclusive na sessão de julgamento. Com essa medida, não teremos a situação esdrúxula de não ter acusação em plenário para sustentar a pronúncia. Seria uma interpretação conforme com redução de texto do art. 385 do CPP para adequá-lo ao texto constitucional (CF, art. 129, I) que outorga privativamente a titularidade da ação penal ao ministério público. É necessário fazermos valer a constituição em toda sua plenitude, inclusive e especialmente em relação a regras incoerentes e não recepcionadas pelo texto constitucional. O texto do art. 385 do CPP possibilita ao ministério público recorrer da decisão que condenar quando for requerida a absolvição. A questão, contudo, não é essa; mas, delinear teórica e coerentemente a atuação do ministério público e do juiz no processo penal a partir dos pressupostos dados pela constituição, isto é, cabe ao ministério público a titularidade e a iniciativa da ação penal pública.


José Edvaldo Pereira Sales. . José Edvaldo Pereira Sales é Mestre e Doutorando em Direito (PPGD/UFPA). Promotor de Justiça da Capital (Estado do Pará). . .


Imagem Ilustrativa do Post: Sem título // Foto de: Neil Conway // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/neilconway/3812660365

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura