O crime permanente e a inviolabilidade do domicílio

27/07/2015

Por Rômulo de Andrade Moreira - 27/07/2015

Surpreendeu-nos (de forma extremamente negativa) decisão tomada no último dia 09 de junho, pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual no caso de flagrante de crime permanente, é possível a realização de busca e apreensão sem mandado judicial. Com esse argumento, negou-se, em decisão unânime, Habeas Corpus nº. 127457, impetrado por um acusado pela prática dos crimes de tráfico de drogas, associação para o tráfico e porte de arma de fogo com numeração raspada.

Esta decisão confundiu, desgraçadamente, alhos com bugalhos, coisas completamente diferentes: crime continuado, cuja consumação, como é cediço, protrai-se no tempo, e a inviolabilidade do domicílio, direito fundamental do homem, declarado na Constituição Federal.

Com efeito, diz a Constituição (ou será que esta cláusula pétrea foi revogada - em tempos de PEC da Bengala e redução da maioridade penal, tudo é possível) que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.” [1]

Ademais, dispõe serem "inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meio ilícitos."[2]

Ambas as cláusulas constitucionais foram solenemente ignoradas pela Corte Constitucional, dando, doravante, uma "carta branca" para que os Tribunais de Justiça e os Regionais Federais coadunem-se com esta cotidiana prática policial ilegal. Desanimador!

A propósito, veja-se o parecer abaixo transcrito, exarado por nós nos autos do Habeas Corpus nº. 0009758-66.2015.8.05.0000, julgado no Tribunal de Justiça do Estado da Bahia:

"Tratam os presentes autos de um pedido de habeas corpus visando à soltura do paciente acima epigrafado. Negada a concessão da liminar requerida (fls. 57/58), o Magistrado prestou as informações de praxe (fls. 60/61). Compulsando o processo, verifica-se que o paciente foi denunciado pelo Ministério Público como incurso nas penas do artigo 33 da Lei nº. 11.343/2006 (fls. 63v./64).Eis um sucinto relatório. Os autos foram encaminhados ao Ministério Público para o parecer.

Compulsando os autos, afere-se que o processo deve ser trancado por absoluta inexistência de justa causa, porquanto a apreensão da droga supostamente encontrada na residência da genitora do paciente ocorreu de forma ilegal, conforme o teor do artigo 157, caput, do Código de Processo Penal, bem como do artigo 5º., XI e LVI, da Constituição Federal, tendo em vista que os policiais não possuíam mandado judicial autorizador da busca domiciliar, nem o consentimento da moradora.

Saliente-se que não cabe a justificativa de ter o delito de tráfico de drogas natureza permanente, porquanto não desautoriza a autoridade de obter o devido mandado de busca e apreensão para ingressar no domicílio alheio, inclusive por não estar anteriormente visível as circunstâncias do flagrante.

“Desconstruindo a afirmativa que deve ser analisada frente às narrativas comuns aos autos de prisão em flagrante por tráfico de drogas, descobre-se que, em regra, não há uma situação de flagrância comprovadamente constatada antes da invasão de domicílio, o que a torna ilegal, violadora de direito fundamental. Porém, como em um passe de mágica juridicamente insustentável, por uma convalidação judicial, a apreensão de objetos ou substâncias que sejam proibidos ou indicativos da prática de crime e a prisão daquele(s) a quem pertença(m) travestem de legalidade uma ação essencialmente – e originariamente – violadora de direito fundamental”.[3]

Com efeito, por força de dispositivo constitucional, a casa é asilo inviolável. Assim, a denúncia foi amparada em uma busca e apreensão eivada de ilicitude, pois realizada sem o devido mandado judicial, sendo, portanto, inadmissível no processo criminal. Em consonância com o art. 5º., LVI, a lei passa a considerar, no art. 157, 'inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais', bem como aquelas 'derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.' (§ 1º.).

Neste ponto a lei tratou não somente das provas ilícitas, como também das chamadas provas ilícitas por derivação, baseadas na doutrina do fruit of the poisonous ou the tainted fruit, o que já era, na doutrina nacional, uma ideia mais ou menos pacífica.[4] Esta disposição é válida tanto em relação às provas ilícitas como às ilegítimas, para quem as diferencia.[5]

A propósito, Marco Antônio Garcia de Pinho afirma que “a questão das provas ilícitas por derivação, isto é, aquelas provas e matérias processualmente válidas, mas angariadas a partir de uma prova ilicitamente obtida é, sem dúvida, uma das mais tormentosas na doutrina e jurisprudência. Trata-se da prova que, conquanto isoladamente considerada possa ser considerada lícita, decorra de informações provenientes da prova ilícita. Nesse caso, hoje, nossos tribunais vêm tomando por base a solução da Fruits of the Poisonous Tree, adotada pela US Supreme Court. Esse entendimento, na doutrina pátria, é adotado, dentre outros autores, por Grinover e Gomes Filho. Já Avolio, também tratando com maestria sobre o assunto, concluiu não ser possível a utilização das provas ilícitas por derivação no nosso direito pátrio. Há pouco mais de dez anos, em maio de 1996, o STF confirmou sua posição quanto à inadmissibilidade das provas derivadas das ilícitas, posicionamento, hoje, ainda mais pacífico tendo à frente a ministra Ellen Gracie e os ministros como Gilmar Mendes, Peluzo e Joaquim Barbosa. A prova ilícita por derivação se trata da prova lícita em si mesma, mas cuja produção decorreu ou derivou de outra prova, tida por ilícita. Assim, a prova originária, ilícita, contamina a prova derivada, tornando-a também ilícita. É tradicional a doutrina cunhada pela Suprema Corte norte-americana dos “Frutos da Árvore Envenenada” —Fruits of the Poisonous Tree— que explica adequadamente a proibição da prova ilícita por derivação.

Esclarece este mesmo autor “que se sustenta um argumento relacional, ou seja, para se considerar uma determinada prova como fruto de uma árvore envenenada, deve-se estabelecer uma conexão entre ambos os extremos da cadeia lógica; dessa forma, deve-se esclarecer quando a primeira ilegalidade é condição sine qua non e motor da obtenção posterior das provas derivadas, que não teriam sido obtidas não fosse a existência da referida ilegalidade originária18. Estabelecida a relação, decreta-se a ilegalidade. O problema é análogo, diga-se, ao direito penal quando se discute com profundidade o tema do nexo causal. É possível que tenha havido ruptura da cadeia causal ou esta se tenha enfraquecido suficientemente em algum momento de modo a se fazer possível a admissão de determinada prova porque não alcançada pelo efeito reflexo da ilegalidade praticada originariamente.[6]

Em determinada oportunidade, decisão do Ministro Celso de Mello suspendeu, cautelarmente, processo penal em trâmite na 6ª. Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro pela suposta prática de crime contra a ordem tributária praticado por um empresário e contador português. O pedido do acusado foi feito por meio do Habeas Corpus (HC) 93050. A defesa afirma que em agosto de 1993 uma das sedes da empresa foi invadida pela Polícia Federal, e as provas obtidas pelo Ministério Público Federal foram fruto desta operação, realizada sem autorização judicial, na ausência dos sócios e sob coação de funcionários. Portanto, “provas obtidas por meios ilícitos”. Tal diligência, afirmam os advogados, transgrediu as garantias fundamentais contidas no artigo 5º. da Constituição Federal. Para o relator, ministro Celso de Mello, parte do acórdão do Superior Tribunal de Justiça, questionado pela defesa, “parece demonstrar que tal decisão teria considerado válida prova qualificada pela ilicitude por derivação”. Isto porque, segundo a decisão atacada, a documentação que embasou o início da ação penal resultou de fiscalização ocorrida em outra empresa que não a do acusado.Segundo Celso de Mello, a decisão do STJ contém afirmação que conflita com a jurisprudência do Supremo sobre prova ilícita, “quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude por derivação”. Assim, o relator deferiu o pedido de medida liminar para suspender, cautelarmente, até o final do do habeas corpus, o andamento do Processo-crime nº 96.00.26361-2, que tramita na 6ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro/RJ. Depois, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa indeferiu liminar em Habeas Corpus (HC 92020) impetrado para suspender ação penal que tramita no Superior Tribunal de Justiça. A ação penal é derivada de inquérito iniciado no Tribunal Regional Federal da 3ª Região que, por sua vez, é decorrente de interceptação telefônica, deferida e prorrogada pelo Juízo Federal da 4ª Vara da Seção Judiciária de Alagoas. Segundo Joaquim Barbosa, a eventual nulidade de uma ou outra prova não contamina, automaticamente, aquelas que sejam produzidas posteriormente, devendo a chamada nulidade por derivação (a prova que teve como origem uma prova ilícita, também é ilícita) incidir somente sobre os elementos de convicção que sejam diretamente decorrentes da prova considerada ilícita. Fonte: STF.

No mesmo sentido: “Com efeito, acolhida a doutrina da contaminação dos frutos da árvore envenenada – fruits of the poisonous tree – necessariamente teremos de reconhecer que as provas ilícitas (inclusive por derivação) devem ser consideradas nulas, independentemente do momento em que foram produzidas” (TRF 4ª R. – 8ª T. – C 2008.04.00.006199-1 – rel. Paulo Afonso Brum Vaz – j. 02.04.2008 – DJU 16.04.2008).

Tendo o STF declarado a ilicitude de diligência de busca e apreensão que deu origem a diversas ações penais, impõe-se a extensão desta decisão a todas as ações dela derivadas, em atendimento aos princípios da isonomia e da segurança jurídica. Se todas as provas que embasaram a denúncia derivaram da documentação apreendida em diligência considerada ilegal, é de se reconhecer a imprestabilidade também destas, de acordo com a teoria dos frutos da árvore envenenada, trancando-se a ação penal assim instaurada. Ordem concedida para trancar a ação penal em questão, estendendo, assim, os efeitos da presente orda C.R.” (STJ – 6ª T. – HC 100.879 – rel.  Maria Thereza de Assis Moura j. 19.08.2008 – DJU 08.09.2008).

Segundo Luiz Flávio Gomes, “prova ilícita é a que viola regra de direito material, constitucional ou legal, no momento de sua obtenção (confissão mediante tortura, v.g.). Essa obtenção, de qualquer modo, sempre se dá fora do processo (é, portanto, sempre extraprocessual). Prova ilegítima é a que viola regra de direito processual no momento de sua obtenção em juízo (ou seja: no momento em que é produzida no processo). Exemplo: oitiva de pessoas que não podem depor, como é o caso do advogado que não pode nada informar sobre o que soube no exercício da sua profissão (art. 207, do CPP). Outro exemplo: interrogatório sem a presença de advogado; colheita de um depoimento sem advogado etc. A prova ilegíma, como se vê, é sempre intraprocessual (ou endoprocessual). O fato de uma prova violar uma regra de direito processual, portanto, nem sempre conduz ao reconhecimento de uma prova ilegítima. Por exemplo: busca e apreensão domiciliar determinada por autoridade policial (isso está vedado pela CF, art. 5.º, X, que nesse caso exige ordem judicial assim como pelo CPP -art. 240 e ss.). Como se trata de uma prova obtida fora do processo, cuida-se de prova ilícita, ainda que viole concomitantemente duas regras: uma material (constitucional) e outra processual. Conclusão: o que é decisivo para se descobrir se uma prova é ilícita ou ilegítima é o locus da sua obtenção: dentro ou fora do processo. De qualquer maneira, combinando-se o que diz a CF, art. 5.º, inc. LVI com o que ficou assentado no novo art. 157 do CPP, vê-se que umas e outras (ilícitas ou ilegítimas) passaram a ter um mesmo e único regramento jurídico: são inadmissíveis (cf. PACHECO, Denílson Feitoza, Direito processual penal, 3.ª ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2005, p. 812).”

Lembra, ainda, Luiz Flávio Gomes que “dizia-se que a CF, no art. 5.º, LVI, somente seria aplicável às provas ilícitas ou ilícitas e ilegítimas ao mesmo tempo, ou seja, não se aplicaria para as provas (exclusivamente) ilegítimas. Para esta última valeria o sistema da nulidade, enquanto para as primeiras vigoraria o sistema da inadmissibilidade. Ambas as provas (ilícitas ou ilegítimas), em princípio, não valem (há exceções, como veremos), mas os sistemas seriam distintos. Essa doutrina já não pode ser acolhida (diante da nova regulamentação legal do assunto). Quando o art. 157 (do CPP) fala em violação a normas constitucionais ou legais, não distingue se a norma legal é material ou processual. Qualquer violação ao devido processo legal, em síntese, conduz à ilicitude da prova (cf. Mendes, Gilmar Ferreira et alii, Curso de Direito constitucional, São Paulo: Saraiva: 2007, p. 604-605, que sublinham: “A obtenção de provas sem a observância das garantias previstas na ordem constitucional ou em contrariedade ao disposto em normas fundamentais de procedimento configurará afronta ao princípio do devido processo legal”). Paralelamente às normas constitucionais e legais existem também as normas internacionais (previstas em tratados de direitos humanos). Por exemplo: Convenção Americana sobre Direitos Humanos. No seu art. 8.º ela cuida de uma série (enorme) de garantias. Provas colhidas com violação dessas garantias são provas que colidem com o devido processo legal. Logo, são obtidas de forma ilícita. Uma das garantias previstas no art. 8.º diz respeito à necessidade de o réu se comunicar livre e reservadamente com seu advogado. Caso essa garantia não seja observada no momento da obtenção da prova (depoimento de uma testemunha, v.g.), não há dúvida que se trata de uma prova ilícita (porque violadora de uma garantia processual prevista na citada Convenção). Não importa, como se vê, se a norma violada é constitucional ou internacional ou legal, se material ou processual: caso venha a prova a ser obtida em violação a qualquer uma dessas normas, não há como deixar de concluir pela sua ilicitude (que conduz, automaticamente, ao sistema da inadmissibilidade).[7]

Esta disposição chega a ser despicienda em razão do referido comando constitucional. É a nossa velha mania de achar que se não estiver previsto em uma lei (infraconstitucional) não está no ordenamento jurídico, ainda que esteja na Constituição Federal:“(...) Demonstrada a ilicitude da prova sob enfoque, ela deve ser desentranhada dos autos, vedando-se às partes sobre ela, se manifestarem em plenário, sob pena de exercício de influencia negativa ao Conselho de Sentença, o qual somente pode deliberar sobre provas licitamente colhidas. (...) Ordem parcialmente concedida, apenas para excluir dos autos a prova ilicitamente colhida” (STJ – 6ª T. – HC 111.972 – rel. Jane Silva – j. 18.12.2008 – DJU 02.02.2009).

Ainda sobre a questão da prova ilícita por derivação, o Ministro Celso de Mello suspendeu, em decisão liminar, o andamento da ação penal que tramitava na 8ª. Vara Criminal do Rio de Janeiro, por ilicitude na obtenção das provas usadas contra a empresa. A decisão do ministro no Habeas Corpus (HC) 103325 baseia-se na tese de que se as provas são coletadas de forma ilícita, elas ficam também contaminadas de ilicitude e são invalidadas. As provas teriam sido retiradas do escritório em 1993 sem autorização judicial e através de operação policial com uso de arma de fogo. Segundo Celso de Mello, a administração estatal, embora tenha poderes excepcionais que lhe permitem exercer a fiscalização tributária, não pode desrespeitar as garantias constitucionais asseguradas aos cidadãos em geral e aos contribuintes, em particular. “Ao Estado é somente lícito atuar respeitados os direitos individuais e nos termos da lei”, explicou. Ele também afirmou que “nenhum agente público, ainda que vinculado à administração tributária do Estado, poderá, contra a vontade de quem de direito, ingressar, durante o dia, sem mandado judicial, em espaço privado não aberto ao público, onde alguém exerce sua atividade profissional, sob pena de a prova resultante da diligência de busca e apreensão assim executada reputar-se inadmissível, porque impregnada de ilicitude material”. A jurisprudência do Supremo já é pacificada na interpretação de que a inviolabilidade da casa – prevista na Constituição Federal – estende-se aos escritórios profissionais, inclusive os de contabilidade, embora sem conexão com a casa de moradia propriamente dita. O ministro lembrou que o próprio Supremo já trancou ações penais baseadas nessas mesmas provas.

Entendemos que o ato judicial que determina o desentranhamento das provas ilícitas tem a natureza de decisão interlocutória com força de definitiva, razão pela qual desafia o recurso de apelação (art. 593, II do Código de Processo Penal). A natureza desta decisão vem reforçada pelo § 3º. deste mesmo art. 157 (“preclusa a decisão de desentranhamento”), pois, como se sabe, a preclusão é fato processual próprio de decisões que não tratam do mérito propriamente dito. Para estas, reserva-se o efeito da coisa julgada (evidentemente que a diferença entre preclusão e coisa julgada não se resume a esta circunstância). Caso se entenda não se tratar de uma decisão com força de definitiva, e não havendo recurso previsto em lei, a solução será a utilização da correição parcial, “a quem a doutrina pátria moderna atribui natureza jurídica de recurso” e que “constitui medida judicial contra decisões ou despachos dos juízes não impugnáveis por outro recurso e que representem erro ou abuso, de que resulte a inversão tumultuária dos atos e fórmulas da ordem legal do processo.” (STJ – 6ª T. – Resp 730.079 – rel. Hamilton Carvalhido – j. 11.10.2005 – DJU 04.08.2008). [8] Evidentemente que se o desentranhamento prejudicar, ainda que remotamente e em tese, interesse da defesa, o remédio mais rápido será a utilização do habeas corpus.[9]

Vejamos a lição de Arion Escorsin de Godoy e Domingos Barroso da Costa:

“(...) Em resumo: sem qualquer exigência ulterior de exposição de justificativas e elementos seguros em legitimar a ação dos agentes públicos, diante da discricionariedade policial na identificação de situações suspeitas relativamente à ocorrência de tráfico de drogas, o direito à privacidade e à inviolabilidade do domicílio esvazia-se de sua condição fundamental, relativizando-se frente ao menos justificável arbítrio e ao mais leve toque de uma botina na porta. (...) Sabe-se que o flagrante autoriza a violação de domicílio, mas essa relativização do direito fundamental previsto no inc. XI do art. 5.º da Constituição não significa abertura a ações policiais que mais se assemelham a apostas lotéricas, em que o prêmio – dependente da sorte do jogador – é o encontro de indícios da prática de tráfico de drogas e a consequente prisão de quem possa ser seu autor. Desconstruindo a afirmativa que deve ser analisada frente às narrativas comuns aos autos de prisão em flagrante por tráfico de drogas, descobre-se que, em regra, não há uma situação de flagrância comprovadamente constatada antes da invasão de domicílio, o que a torna ilegal, violadora de direito fundamental. Porém, como em um passe de mágica juridicamente insustentável, por uma convalidação judicial, a apreensão de objetos ou substâncias que sejam proibidos ou indicativos da prática de crime e a prisão daquele(s) a quem pertença(m) travestem de legalidade uma ação essencialmente – e originariamente – violadora de direito fundamental. E a realidade pode ser ainda mais perversa, na medida em que se sabe que abusos policiais não são tão incomuns quanto se deseja, não sendo raros os casos de manipulação das circunstâncias, como se dá nos chamados flagrantes forjados. A intenção de incriminar alguém ou a possibilidade de sofrer as mais diversas sanções em razão do abuso na invasão de domicílio são apenas dois dos múltiplos fatores que podem determinar a produção artificial de circunstâncias que, se reais fossem, ensejariam a convalidação da ação, ante a constatação de uma situação de flagrância. Tratando-se de ação autoexecutada – sem prévio controle judicial –, nada mais simples – em termos logísticos – do que plantar papelotes, plásticos, notas de pequeno valor, aparelhos de telefonia celular e alguma quantidade de droga. E ainda que não se presuma má-fé – ou dolo –, certo é que más práticas, ainda que movidas pelas melhores intenções, estão arraigadas em nosso cotidiano – policial e mesmo judicial. E mais: até mesmo pela reiteração de seu acolhimento, nada impede que a forma que se imprime ao relato de determinadas circunstâncias na descrição do histórico dos fatos transforme em caso típico de tráfico de drogas a apreensão de cinco pedras de crack, dois aparelhos de telefonia celular e de R$ 50,00, divididos em notas de R$ 5,00 e R$ 10,00 – uma vez que havia denúncia anônima quanto à negociação de drogas no local, que era notoriamente frequentado por usuários, os quais pediram para não ser identificados por temerem represálias, mas confirmaram que o indivíduo preso no local e que tem antecedentes criminais é traficante conhecido na região. Eis a fórmula mágica para transformar abuso de poder e violação de domicílio em prisão em flagrante legal por tráfico de drogas, na clássica manobra ilusionista que, em regra, se mostra suficiente a convencer alguns magistrados – boa parte deles – de que os fins justificam os meios e que, na proteção da sociedade, deve a ação, ilegal em seu início, ser convalidada, uma vez que o tráfico de drogas é crime permanente, que muitos prejuízos traz à coletividade ordeira. Encastelados em uma realidade social privilegiada e desconhecendo o que se passa nos subúrbios – os modos de comportamento das subculturas marginais (inclusive a dos usuários de drogas), algumas rotinas de atuação policial e toda a complexidade das relações de poder que envolvem a negociação de drogas –, tais magistrados preferem acreditar na fé pública que reveste a palavra e atuação dos agentes públicos policiais a criticar a situação e perceber que qualquer pessoa pode ter consigo dois aparelhos de telefonia celular e R$ 50,00, divididos em notas de R$ 5,00 e R$ 10,00. Também fecham os olhos para o fato de que, diante das milhares de condutas incriminadas e da seletividade do sistema penal, nada mais comum que alguém em condições marginais tenha antecedentes criminais. Desconhecem, de igual modo, que cinco pedras de crack é pouca quantidade até para um usuário em sua compulsão e, para não sair da posição de conforto, sequer se perguntam acerca da real ocorrência das denúncias anônimas ou quanto à existência dos usuários não identificados que sempre confirmam a venda de drogas em imóveis invadidos pela polícia. Não podemos esquecer, ainda, que, acaso se trate de um conhecido ponto de tráfico de drogas, com intensa movimentação de usuários, onde se pratica um crime permanente, não há qualquer prejuízo em se montar campana e aguardar por algumas horas a obtenção de mandado judicial, que pode ser requerido em qualquer plantão judicial. Caminhando para o encerramento, é, portanto, fundamental salientar que o que autoriza a invasão domiciliar é tão somente a flagrância escancarada, passível de demonstração posterior. Suposições ou suspeitas, ainda que fundadas e baseadas em investigações prévias – declaradas ou ocultas –, devem ser submetidas ao prévio crivo judicial. E o fundamento é evidente: a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar. Afinal, como bem assentou o Desembargador Diógenes Vicente Hassan Ribeiro, a “lei não permite atalhos” e, se diferente fosse, a residência não seria asilo, nem inviolável (TJRS, 70051270478, j. 13.12.2012).”[10]  (grifos nossos).

Outrossim, Pierpaolo Cruz Bottini e Ana Fernanda Ayres Dellosso lecionam com proficiência:

Como se sabe, o art. 5.º, XI, da Constituição da República, entre os direitos fundamentais, protege a casa, como asilo inviolável do indivíduo. O mesmo dispositivo estabelece exceções ao direito fundamental. Logo, por expressa previsão constitucional, as seguintes situações autorizam a violação do domicílio, sem o consentimento do morador: (I) flagrância delitiva; (II) necessidade de prestar socorro; e (III) autorização judicial. No entanto, em muitos casos, policiais adentram residências particulares, sem que presentes quaisquer destas situações excepcionais, sob o pretexto de terem obtido o consentimento do morador. (…) Frise-se a importância da discussão sobre a inviolabilidade do domicílio nessas duas situações, especialmente sob o prisma das provas ilícitas. Embora o Código de Processo Penal discipline o tema no título destinado às provas, a medida de busca e apreensão não configura propriamente meio de prova, mas meio de obtenção de prova. Mediante medidas de busca e apreensão se conservam elementos de provas, de tal forma que, se nulas as medidas, devem ser anuladas as provas obtidas por meio delas (CPP, art. 157, § 1.º). Ainda em considerações iniciais, de se ver que a busca e apreensão já inicia, em sua previsão constitucional, como medida excepcional, vale dizer, como exceção ao sistema de proteção dos direitos fundamentais, o que ganha denotada importância para interpretação e aplicação das regras processuais nos casos práticos. Posto isso, importante analisar a situação do dito “consentimento” do morador, apto a excepcionar a regra da inviolabilidade do domicílio e autorizar a busca sem mandado judicial. Sabe-se que, nas buscas domiciliares, há um conflito de interesses em jogo – a busca da verdade, para realização da justiça criminal, e a preservação da intimidade e da inviolabilidade do domicílio. O consentimento do morador aparece como primeira forma de solução desse conflito. No entanto, é preciso cautela na sua análise, sempre diante das circunstâncias de obtenção da prova e da atuação da autoridade policial. Como pontua a doutrina processual penal, durante o dia ou à noite, o morador pode permitir a entrada em sua casa e, nessa situação, dispensa-se mandado judicial para realização de busca domiciliar. O consentimento, porém, deve ser real e livre, despido de vícios como o erro, violência ou intimidação. Evidentemente que, em cada caso concreto, o consentimento do morador deve ser analisado com cautela e nunca presumido, especialmente para que se evitem abusos da autoridade policial. Sobre o cenário de muitos casos brasileiros, Cleunice Pitombo destaca: “Infelizmente, no Brasil e em outros lugares, em que o miúdo desconhece os próprios direitos, o abuso policial surge manifesto. A polícia invade casas e o morador, temeroso, tímido, não lhe coarcta o passo”. O TJRS recentemente destacou a invalidade do consentimento de pessoa investigada por tráfico de drogas. Na ocasião, o Desembargador relator pontuou: “Não existe previsão legal para a busca domiciliar a partir da permissão informal do proprietário. Do consentimento a que se refere o art. 5.º, XI, da CF não se infere que poderão ser realizadas buscas sem determinação judicial, apenas sob a anuência do morador. Se assim fosse, veríamo-nos diante de um quadro temerário, no qual os mandados de busca e apreensão seriam dispensáveis, já que polícia sempre poderia conseguir, extrajudicialmente, o “consentimento” do proprietário. Afinal, é de se ter em conta que, nas circunstâncias descritas nos autos esse aval foi dado sob constrangimento” (Ap 70058172628, Rel. Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro, 3.ª Câmara Criminal, DJ 24.06.2014). Dessarte, se há o consentimento do morador para buscas domiciliares, algumas questões devem ser bem refletidas: (I) forma do consentimento; (II) pessoa que consente e seu grau de esclarecimento sobre as implicações da medida. Sobre a forma do consentimento, deve ser expresso e jamais presumido, sendo que não há previsão legal de forma especial. (...). No tocante à pessoa que consente, deve ser aquele titular do direito à inviolabilidade do domicílio. A doutrina destaca que a permissão deve ser do próprio sujeito da medida de busca e apreensão ou de outra pessoa que possa, legitimamente, representá-lo. Ressalvas são feitas, ainda, às habitações coletivas, em que o consentimento por um dos moradores não autoriza a busca na casa ou aposento de terceiros. No entanto, maior relevo tem a questão do grau de esclarecimento do morador que consentiu na realização da busca e apreensão. Para que se solucione o conflito de interesses – busca da verdade para realização da justiça e inviolabilidade do domicílio – por via consensual, é necessário que aquele que consente tenha pleno conhecimento das circunstâncias e consequências da realização da busca domiciliar, bem como que isso seja documentado. No ponto, não há previsão legal. Contudo, tratando-se de medida que pode implicar a produção de prova contra o próprio morador que consente com a busca, para que ele decida de forma justa e válida se franqueará a entrada em sua residência, necessário que no mínimo lhe sejam esclarecidos seus direitos e o alcance da inviolabilidade do domicílio, bem como as consequências da realização da busca domiciliar. A mesma lógica e o mesmo cuidado são observados nos procedimentos de interrogatórios, tanto judicial quanto policial, a fim de garantir o direito da pessoa de não produzir prova contra si (deriva das previsões constitucionais – art. 5.º, LVII e LXII – e consagrado do Pacto de São José da Costa Rica, art. 8.º). (…) Além disso, no ponto do consentimento, necessária observância de cuidados, a fim de assegurar que este seja consciente e válido. Frise-se que o consentimento não se presume e requer prova, cujo ônus é do Estado (TRF 2.ª Região, RSE 200551015058355, DJ 22.10.2008). Mais do que isso, parece-nos essencial que sejam esclarecidos, ao sujeito da medida e de forma documentada, os seus direitos, o alcance da inviolabilidade do domicílio e as consequências de sua decisão por franquear a entrada de policiais para a busca domiciliar. Trata-se de medidas mínimas para coibir abusos da autoridade policial e fazer valer um Estado Democrático de Direito.[11] (grifos nossos).

Como se sabe, o Processo Penal funciona em um Estado Democrático de Direito como um meio necessário e inafastável de garantia dos direitos do acusado. Não é um mero instrumento de efetivação do Direito Penal, mas, verdadeiramente, um instrumento de satisfação de direitos humanos fundamentais e, sobretudo, uma garantia contra o arbítrio do Estado. Aliás, sobre processo, já afirmou o mestre Calmon de Passos, não ser “algo que opera como simples meio, instrumento, sim um elemento que integra o próprio ser do Direito. A relação entre o chamado direito material e o processo não é uma relação meio/fim, instrumental, como se tem proclamado com tanta ênfase, ultimamente, por força do prestígio de seus arautos, sim uma relação integrativa, orgânica, substancial.”[12]  Nesta mesma obra, o eminente processualista adverte que o “devido processo constitucional jurisdicional (como ele prefere designar), para evitar sofismas e distorções maliciosas, não é sinônimo de formalismo, nem culto da forma pela forma, do rito pelo rito, sim um complexo de garantias mínimas contra o subjetivismo e o arbítrio dos que têm poder de decidir.”[13]

Certamente sem um processo penal efetivamente garantidor, não podemos imaginar vivermos em uma verdadeira democracia[14]. Um texto processual penal deve trazer ínsita a certeza de que ao acusado, apesar do crime supostamente praticado, deve ser garantida a fruição de seus direitos previstos especialmente na Constituição do Estado Democrático de Direito.

Como afirma Ada Pelegrini Grinover, “o processo penal não pode ser entendido, apenas, como instrumento de persecução do réu. O processo penal se faz também – e até primacialmente – para a garantia do acusado. (...) Por isso é que no Estado de direito o processo penal não pode deixar de representar tutela da liberdade pessoal; e no tocante à persecução criminal deve constituir-se na antítese do despotismo, abandonando todo e qualquer aviltamento da personalidade humana. O processo é uma expressão de civilização e de cultura e consequentemente se submete aos limites impostos pelo reconhecimento dos valores da dignidade do homem.”[15]

Mutatis mutandis, por votação unânime, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu Habeas Corpus (HC 93387) a um condenado por tráfico de drogas: “É sempre importante enfatizar, presente esse contexto, que a estrita observância da forma processual representa garantia plena de liberdade”, afirmou o Ministro Celso de Mello. (G. N.).

Vejamos a lição de Marcus Vinícius Pimenta Lopes:

“(...) Garantia, etimologicamente, está ligada à ideia de uma posição de segurança, que vai contra a incerteza e a fragilidade. Anota Bonavides (2007, p. 525) que 'Existe garantia sempre em face de um interesse que demanda proteção e de um perigo que se deve conjurar'. Por sua vez, ensina Baracho (1984, p. 138) que 'a própria palavra garantia é usada como sinônimo de proteção jurídico-política. O conceito vem do Direito Privado, de onde decorre sua acepção geral e seu conteúdo técnico-jurídico; garantir significa assegurar de modo efetivo'. Ainda, e com a habitual perfeição conceitual, diz Rui Barbosa (s/d, p. 193-194): “Direito ‘é a faculdade reconhecida, natural ou legal, de praticar ou não praticar certos atos’. Garantia ou segurança de um direito, é o requisito de legalidade, que o defende contra a ameaça de certas classes de atentados de ocorrência mais ou menos fácil”. Assim, garantia é uma ideia de contenção do poder. Visto o sentido de garantia – como contenção – poderemos iniciar uma associação mais clara da forma como garantia. Antes, porém, deve-se entender como a forma limita. Qualquer enunciado é uma limitação do discurso. Quando se diz, por exemplo, que 'o céu é azul', se diz – ao mesmo tempo e necessariamente – que 'o céu não é vermelho ou verde'. Ao se delimitar uma asserção se nega tudo o que dela difere. É por essa razão que disse o gênio Karl Popper (2007, p. 72) que as teorias '(...) não asseveram que algo exista ou ocorra; negam-no. Insistem na não-existência de certas coisas ou estados de coisas, proscrevendo ou proibindo, por assim dizer, essas coisas ou estados de coisas; afastam-nos'. Aplicando-se tal conceito ao Direito Democrático, temos, por exemplo, que se um sistema deve ser acusatório, logo ele não deve ser inquisitivo; e, se existe determinado procedimento(1) para a formação de um provimento final, logo, qualquer ato que difere dos enunciados normativos previstos para tal procedimento se apresenta como ilegal – pois fora da formulação autorizada pela lei democrática. Dessa maneira, a fórmula limita; pois ao prescrever um comportamento, impede que seja feito qualquer outro. E quanto às eventuais críticas ao formalismo, fazemos nossa a lição de Chiovenda (1969, p. 4):'Entre leigos abundam censuras às formas judiciais, sob a alegação de que as formas ensejam longas e inúteis querelas, e frequentemente a inobservância de uma forma pode acarretar a perda do direito; e ambicionam-se sistemas processuais simples e destituídos de formalidades. A experiência, todavia, tem demonstrado que as formas são necessárias no processo tanto ou mais que em qualquer outra relação jurídica; sua ausência carreia a desordem, a confusão e a incerteza'. A forma jurídica ao limitar o poder e proporcionar a segurança é, assim, garantia. (...)”[16]  (grifos nossos).

Destarte, considerando que o art. 654, § 2o. do Código de Processo Penal estipula que “os juízes e os tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal”, imperiosa é a concessão de habeas corpus de ofício pelo órgão julgador.

A propósito:

Por maioria de votos, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu a ordem de ofício para absolver o ex-deputado federal Newton Lima Neto (PT-SP) em razão de atipicidade da conduta. A decisão ocorreu na análise da Ação Penal (AP) 568 ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF) contra Newton Lima Neto por suposta prática do crime de dispensa de licitação fora das hipóteses previstas em lei (artigo 89, da Lei nº 8.666/93), quando exercia o cargo de prefeito do município de São Carlos (SP). De acordo com os autos, antes do cumprimento das cartas precatórias, o denunciado foi diplomado para o cargo de deputado federal, fato que motivou o juízo de primeiro grau – 3ª Vara Criminal da Comarca de São Carlos (SP) – a declinar da competência ao Supremo e a determinar a devolução das cartas precatórias expedidas. Porém, embora candidato, Newton Lima Neto deixou de se reeleger, não sendo mais titular do mandato de deputado federal. O relator da ação, Ministro Luís Roberto Barroso, votou pela absolvição do denunciado. Ele observou que, com o término do mandato, cessou a competência do Supremo para analisar e julgar a causa, mas a Turma concedeu a ordem de ofício devido à atipicidade da conduta, com base no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal (CPC). Segundo o dispositivo, “o juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça não constituir o fato infração penal”.“Quando formei o meu juízo absolutório, em setembro do ano passado, o denunciado era detentor de mandato e desde aquele momento eu poderia ter concedido a ordem de ofício”, salientou o relator. Conforme o relator, por circunstâncias diversas – inclusive porque há revisão nesse tipo de processo –, a questão só veio a ser julgada quando Newton Lima Neto já não detinha o mandato. Assim, o Ministro aderiu à exceção "para não submeter esse homem a continuar em primeiro grau, sob outro juízo, a ter que se defender”, ressaltou. Ao votar, o Ministro Luiz Fux, lembrou a questão da razoável duração dos processos como princípio constitucional. “O réu tem o direito de se ver livre da acusação o mais rápido possível”, completou. No mesmo sentido, votou o Ministro Marco Aurélio, formando a maioria. Ficou vencida a Ministra Rosa Weber. Ela observou que, no caso, não houve reeleição, então o denunciado não tem prerrogativa de função. “Entendo que o Supremo não tem amparo constitucional para condenar ou absolver um cidadão que não esteja no gozo desta prerrogativa de função”, disse, ao declinar da competência do Supremo para o juízo de primeiro grau.

Recurso criminal: tempestividade. A prova da tempestividade do recurso - que se afere pela data da entrega da petição em cartório - é ônus do recorrente: não demonstrada pelo MP - embora inadmissível o RE da defesa por falta de prequestionamento dos temas constitucionais aventados - concede- se habeas corpus de ofício para cassar o acórdão que, na dúvida insolúvel quanto à tempestividade, não obstante conheceu da apelação do MP contra a sentença absolutória e lhe deu provimento para condenar os réus.” (AI 386537–QO/MG, 1a. T STF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 13/09/02).

Recurso extraordinário, prequestionamento e habeas corpus de ofício. Em recurso extraordinário criminal, perde relevo a discussão em torno de requisitos específicos, qual o do prequestionamento, sempre que - evidenciando-se a lesão ou a ameaça à liberdade de locomoção - seja possível a concessão de habeas-corpus de ofício.  (AI 409055, 1a. T STF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 27/09/02).

Irregularidade de intimação de defensor constituído, cujo nome constou incompleto na publicação oficial. Nulidade. Concessão da ordem para anular o julgamento da apelação. Concessão de habeas corpus ‘de ofício’ para reconhecer, via de conseqüência, a extinção da punibilidade pela prescrição (CP, artigos 109, VI, c/c art. 100, par. 1).” (HC 68013, 2a. T STF, Rel. Min. Célio Borja, DJ 22/06/90).

Ressaltamos o que escreveu Alexandre Morais da Rosa e Aury Lopes Jr.:

"A discussão situa-se no marco da legalidade, de ter regras claras do jogo. Em democracia, todo poder precisa ser condicionado e demarcado. Forma é garantia. Há uma salutar desconfiança e patrulhamento dos excessos e questionamento da legitimidade. A informalidade só interessa ao discurso autoritário." [17]

Diante do exposto, somos pela concessão de habeas corpus de ofício ao paciente para trancar o processo por absoluta inexistência de justa causa (art. 395, III, do Código de Processo Penal), em razão da ilegalidade da busca domiciliar realizada na residência da genitora do paciente, ainda que não alegado na inicial.

Outrossim, requeremos que cópia dos autos seja enviada à Corregedoria da Polícia Civil e ao Grupo de Atuação Especial para o Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público do Estado da Bahia (GACEP), a fim que se apure suposta prática do crime de abuso de autoridade ocorrido quando da invasão ilícita do acima referido asilo inviolável.

Salvador, 27 de maio de 2015."

Adivinhem qual foi o resultado do julgamento?


Notas e Referências:

[1]Art. 5º., XI, da Constituição Federal.

[2]Art. 5º., LVI, da Constituição Federal.

[3]Godoy, Arion Escorsin de; Costa, Domingos Barroso da. Desconstruindo mitos: sobre os abusos nas buscas domiciliares ao pretexto de apuração do delito de tráfico de droga. http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigos/288-247---junho-2013. Acesso em 18 de julho de 2014.

[4]A respeito confira-se a obra de Luiz Flávio Gomes e Raúl Cervini, Interceptação Telefônica, São Paulo: RT, 1997.

[5]Ada, Scarance e Magalhães Gomes, por exemplo, esclarecem que “quando a proibição for colocada por uma lei processual, a prova será ilegítima (ou ilegitimamente produzida); quando, pelo contrário, a proibição for de natureza material, a prova será ilicitamente obtida.” (As Nulidades no Processo Penal, São Paulo: Malheiros, 5ª. ed., 1996, p. 116).

[6]“Breve ensaio das provas ilícitas e ilegítimas no direito processual penal”, http://ultimainstancia.uol.com.br/ensaios/ler_noticia.php?idNoticia=34917

[7]“Lei 11.690/2008 e provas ilícitas: conceito e inadmissibilidade”, www.paranaonline.com.br, 22/06/2008.

[8]Sobre mandado de segurança em matéria criminal, veja-se o nosso Direito Processual Penal, Salvador: JusPodivm, 2008.

[9]MOREIRA, Rômulo de Andrade. A Reforma do Código de Processo Penal – Provas (Disponível em: <http://romulomoreira.jusbrasil.com.br>. Acesso em: 30 out. 2014.)

[10]Desconstruindo mitos: sobre os abusos nas buscas domiciliares ao pretexto de apuração do delito de tráfico de droga. http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigos/288-247---junho-2013. Acesso em 18 de julho de 2014.

[11]O consentimento e a situação de flagrante delito nas buscas domiciliares. http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5199-O-consentimento-e-a-situação-de-flagrante-delito-nas-buscas-domiciliares. Acesso em 29 de novembro de 2014.

[12]Direito, Poder, Justiça e Processo, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 68.

[13]Idem, p. 69.

[14]Apesar de que, como ensina Norberto Bobbio, “(...) a Democracia perfeita até agora não foi realizada em nenhuma parte do mundo, sendo utópica, portanto.” (Dicionário de Política, Brasília: Universidade de Brasília, 10ª. ed., 1997, p. 329).

[15]Liberdades Públicas e Processo Penal – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª. ed., 1982, pp. 20 e 52.

[16]A forma como garantia contra a pulsão vingativa do sistema penal. http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5224-A-forma-como-garantia-contra-a-pulsão-vingativa-do-sistema-penal. Acesso em 04 de dezembro de 2014.

[17] http://www.conjur.com.br/2015-mai-22/limite-penal-poder-investigacao-mp-cria-problemas-resolve.


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Rômulo Moreira

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.                                                                                   


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 O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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