Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont
Os tipos penais de corrupção passiva e ativa, elaborados e sancionados no início da década de 40, vigentes até hoje sem nenhuma modificação relevante e frequentemente aplicados, já começaram a apresentar problemas estruturais. O que se pode perceber passados 80 anos de vigência, é que, dado os constantes aprimoramentos das ilicitudes, as normas mencionadas não são capazes de abarcar todas as condutas que notadamente são corruptivas. Vejamos um exemplo:
Imaginem um particular que deposita mensalmente certa quantia em dinheiro na conta do único juiz de sua cidade, acreditando que se um dia for investigado, possa pedir algum favor relacionado ao inquérito, como retardar seu andamento, negar um pedido de prisão ou de busca e apreensão, fornecer informações sigilosas, talvez rejeitar uma denúncia, até mesmo beneficiar um parente, um amigo próximo, enfim. O magistrado, por sua vez, aceita os pagamentos sabendo dessa intenção.
Nota-se que o cidadão oferece essa vantagem, mas visando somente possuir uma “boa relação”[1] com o magistrado, sem pedir nada em troca. Notadamente ambas as partes possuem um pacto injusto, mas ele está em aberto, sem delimitação de nada específico.
Ocorre que, analisando objetivamente esse pacto, podemos notar ausência de subsunção entre a conduta do cidadão de depositar dinheiro sem exigir uma contraprestação e o tipo do art. 333 do Código Penal. Dispõe o referido tipo o seguinte: “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício.” No caso apresentado, não houve determinação do particular para que o servidor público pratique ou retarde ato oficio. Pode ser que nem seja necessária a prática de nenhum ato, ou talvez o cidadão exija algo que transcenda a esfera de competência do magistrado e isso seja um mero favor. As possibilidades são infinitas.
E o que mais importa nessa situação, é que em uma denúncia por corrupção ativa é obrigação legal do órgão acusatório narrar os fatos com todas as circunstâncias, descrevendo, inclusive, qual ato de oficio o particular visava com o pagamento, nos termos do art. 41 do CPP.
Depósito mensal em dinheiro na conta de servidor público, apesar de estranho e reprovável moralmente, por si só, não importa em prática de crime. A vontade subjetiva das partes, como a do cidadão de um dia, eventualmente, apontar um ato que necessite por parte do magistrado, na maior das hipóteses seria uma cogitação não punível, o primeiro ato do iter criminis.
Todavia, não há dúvida de que a conduta do particular que deposita mensalmente dinheiro para um magistrado é ilícita e, inclusive, até mais grave do que a de um motorista que oferece 100 reais ao policial para não lhe multar em uma blitz em virtude de sua habilitação vencida. A compra de “boas relações” fere a moralidade administrativa e ainda pode resultar em prejuízos de grandes proporções ao Poder Público.
O que se pode perceber a partir de ume exame da conduta narrada é de que se trata de um ilícito de corrupção ativa, mas com problemas de subsunção. Para adequar o ato do particular a norma penal vigente seria preciso uma ginastica de tipificação.
No entanto, em um Estado Democrático de direito, é preciso frisar que não são admissíveis contorcionismos da redação para que adquiram mais amplitude do que de fato possuem. Da mesma forma, não é concebível que atos dessa natureza ocorram sem a existência de norma penal completa.
O que foi feito até aqui foi apenas um apontamento que, naturalmente, não é o único problema a respeito dos tipos penais de corrupção. Outros já foram vislumbrados ao longo dos anos, mas até o momento as redações permanecem inalteradas. Muitos países, a exemplo da Alemanha, já fizeram reformas nos capítulos destinados à corrupção enquanto o Brasil segue há 80 anos na mesma trilha.
Por isso, seria importante que um estudo mais específico sobre este tema fosse realizado. De forma que a doutrina e a jurisprudência dialoguem e encontrem imperfeições que podem ser reparadas. Feito esse trabalho, é preciso entrega-lo a quem de direito pode solucionar a questão de tipificação – o Poder Legislativo. A partir disso, seria incorporado ao ordenamento jurídico normas robustas, aptas a coibirem comportamentos que até o momento estão a latere da lei.
Notas e Referências
[1] Para um estudo completo e aprofundado sobre a compra de “boas relações” recomenda-se: QUANDT, Gustavo de Oliveira. O crime de corrupção e a compra de boas relações. In: Crime e Política: Corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito. Orgs.: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017, p. 53/76.
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