O confisco alargado e o seu conflito com a constituição

22/08/2016

 Por Fernando Torres - 22/08/2016

Como efeito da globalização, da abertura dos mercados, do capitalismo selvagem, têm-se a criação de novas formas de criminalidade. Deixou-se de lado a noção de criminosos marginais (que vivem à margem da sociedade), para dar lugar a uma noção de criminosos empresários, extremamente organizados, que buscam o lucro por meio de atividades ilícitas e utilizam do branqueamento de capitais como forma de disfarce e reinvestimento do dinheiro ilícito na própria organização.

A criminalidade tradicional, calcada na defesa de bens jurídicos individuais, cede espaço à criminalidade organizada, a qual possui um claro perfil econômico. Desta forma, “pelo seu gigantesco poder financeiro, a criminalidade organizada influencia secretamente toda a nossa vida económica, a ordem social, a administração pública e a justiça” [2]. Observa-se assim que a criminalidade organizada é um problema sério e deve ser ferozmente combatida. Até porque, pelo que vê no Brasil, essa criminalidade organizada se encontra administrando a máquina estatal.

É preciso meios para combater tal criminalidade, mas é necessário cuidados. Muitos cuidados. Combater este tipo de criminalidade às custas de garantias constitucionais penais pode acabar pondo em xeque anos de luta.

Uma das medidas encontrada para combater a criminalidade organizada pode ser observada no Projeto de Lei do senado nº 103/2016[3] que busca inserir no Código Penal o artigo 91-A incorporando ao direito brasileiro o “confisco alargado”. Na mesma senda, tramita no congresso nacional o famigerado “pacote anticorrupção” proposto pelo Ministério Público Federal. Tal pacote contempla diversos Projetos de Lei, um deles é o Projeto de Lei 5586/2005[4] que busca incluir no Código Penal o artigo 317-A, tipificando como crime o ato de um funcionário público ter bens incompatíveis com a sua renda.

 Apesar das peculiaridades de cada um, um mais sutil que o outro, os dois projetos tem em seu âmago a vontade de importar um instituto denominado na doutrina estrangeira de “confisco alargado de bens” [5]. Instituto este já utilizado em países europeus, mas que não necessariamente seria a melhor ou a mais adequada opção para o direito brasileiro.

Mas o que seria o confisco alargado?

Sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, mas buscando dar uma definição clara sobre o referido instrumento, podemos traçar um paralelo com o confisco clássico, instituto já presente no ordenamento jurídico brasileiro.

Têm-se, no direito pátrio, o confisco clássico, tipificado pelo artigo 91 do Código Penal[6] e autorizado pelo artigo 5º, XLVI, “b” da Constituição Federal. Este tipo de confisco, pela leitura do próprio código, só pode recair sobre: os instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cuja fabricação, alienação, uso, porte ou detenção, constitua fato ilícito; o produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso. Ou seja, o confisco “clássico”, denominado de “confisco especial”, só pode recair sobre os instrumentos e produtos comprovadamente provenientes de um delito, após a sua comprovação por meio de uma sentença penal condenatória.

Analisando o confisco clássico, fica fácil entender o que seria o “alargamento do confisco”. Paulo Silva Marques considera que a noção de confisco alargado se deve ao alargamento do conceito de lucro, que deixa de ser entendido somente como aquilo proveniente diretamente da prática de um ilícito, passando a englobar toda vantagem econômica que se presume obtida através da atividade criminosa[7].

Trata-se, portanto, de um instituto que se inclina em direção da menor necessidade probatória acerca dos pressupostos “autorizadores do confisco, facilitando a declaração da perda de bens em caso de aumento injustificado do patrimônio do demandado, escusando de prova cabal da aquisição ilícita deste patrimônio” [8]. Ou seja, se inclina para a ideia de PRESUNÇÃO e de INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA AO RÉU.

Em suma, utilizando como base o sistema de confisco português, verifica-se que os elementos caracterizadores principais do confisco estendido são: de um lado, uma sanção que visa reprimir vantagens presumidas de uma atividade criminosa baseada num juízo de (in)congruência entre o patrimônio do investigado e o seu rendimento lícito; por outro, e agora sobre o ponto de vista processual, o reconhecimento de uma regra de inversão do ônus da prova, cabendo ao investigado provar a licitude de seus rendimentos[9].

Lendo o escrito até o momento, o presente artigo poderia ser interpretado como favorável ao confisco alargado. Sem dúvida, tal instituto poderia sim ser eficaz no combate à criminalidade organizada. Todavia, o direito não pode ser conduzido por paixões. Existem princípios primordiais ao direito que devem ser preservados frente às paixões momentâneas pelo combate à corrupção.

Para importar um instituto que colide com diversas garantias constitucionais previstas na Constituição de 1988, é necessário ter cautela. Muita cautela.  Sem se aprofundar em demasia, é possível observar que o instituto não se coaduna com a presunção de inocência e a ampla defesa, princípios basilares em um estado democrático de direito e, em um país como o Brasil, onde o poder é usurpado em todos os níveis, de extrema necessidade.

 Ou seja introduzir o confisco alargado ao direito penal, seara onde impera a presunção da não culpabilidade (CF, art. 5º, LVII), da forma que busca se fazer nos referidos projetos, não aparenta ser algo adequado.

O confisco alargado, por mais que seja “a melhor forma de combater a corrupção”[10],  é totalmente conflitante a Constituição Federal em matéria de direito penal e processual penal. Seria mais um ataque o princípio da presunção de inocência (o primeiro foi o inicio de cumprimento de pena em segundo grau-HC 126.292). Se continuarmos assim, no futuro a presunção de inocência será ensinada, com sorte, nas aulas de história do direito.

Caso realmente os referidos projetos de leis entrem em vigor, a presunção de inocência seria solapada a ponto de se criar a inversão do ônus da prova. Sim, a inversão do ônus da prova no processo penal.  Já que será o réu quem terá que comprovar que o produto, presumidamente ilícito é, na realidade, licito.

Como a presunção de inocência já foi abalada pelo STF, não seria impossível ver, com a aprovação do projeto, o mesmo órgão se manifestando a favor da inversão. Ignorar a presunção de inocência, infelizmente, não surpreende mais ninguém.

Contudo, não podemos aceitar calados mais um golpe contra a presunção de inocência. Inversão do ônus da prova já é demais. Não há como considerar constitucional algo que transfere a incumbência de fazer a prova ao investigado, quando no processo penal “a prova dos fatos imputados pertence à acusação, incumbindo à defesa apenas criar uma dúvida razoável, obrigando à decisão segundo o princípio da presunção de inocência, expresso na máxima in dubio pro reo” [11]. Há neste sentido, um claro desrespeito à Constituição Federal.

Criar a inversão do ônus da prova no processo penal pode ter desdobramentos devastadores no direito brasileiro.  Sem entrar no mérito, somente a titulo ilustrativo dos riscos futuros, imaginem só a combinação: Confisco alargado + Delação premiada + Brasil. Prato cheio para o surgimento de novos abusos.

Pelo breve exposto, observa-se que caso o referido instituto seja incorporado ao Código Penal, diversas garantias constitucionais essenciais serão abaladas. Por mais que, aparentemente, seja tal instituto a reposta para combater a criminalidade organizada,  como dito, é preciso ter muito cuidado. Abalar a presunção de inocência e a ampla defesa a ponto de criar a inversão do ônus da prova no processo penal, por mais que seja sedutor no momento em que vivemos, é extremamente perigoso. Perigoso, pois tais abalos geram efeitos também no cidadão comum, aquele que não tem relação nenhuma com a criminalidade organizada, bem como pode não ter qualquer relação com crime algum (mas será ele quem terá que provar isso).

Abalar tão fortemente a presunção de inocência a ponto de transformá-la em inversão do ônus da prova, pode ser um caminho sem volta, e o preço, quem vai pagar, não será o crime organizado.

No futuro, o que poderemos ter serão denuncias baseadas em suposições onde um dos pedidos será: “que seja invertido o ônus da prova ao réu, para que este demonstre que não praticou o delito”.


Notas e Referências:

[1] Existem outros projetos que buscam inserir o confisco alargado no ordenamento, todavia como um instituto civil.

[2] Jean Ziegler, Os Senhores do Crime As novas máfias contra a democracia, Lisboa, Terra- mar, 1999, pág 17

[3] http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getPDF.asp?t=189295&tp=1

[4] http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=321068&filename=Tramitacao-PL+5586/2005

[5] Além desses, existem outros projetos que buscam importar o confisco alargado.

[6] Existem outros tipos de confisco no direito brasileiro, todavia, este é o que interessa no presente estudo.

[7] Marques, Paulo Jorge da Silva: A perda de bens a favor do Estado como forma de combate à criminalidade organizada. In: o confisco ampliado no direito penal português. Pág.295

[8] RÍOS, Rodrigo Sánchez; PUJOL, Luis Gustavo. Confisco Alargado: reflexões acerca de suas possibilidades no ordenamento jurídico brasileiro. 2015. No Prelo: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Pág. 12

[9] DA CUNHA, José M. Damião. Perda de Bens a Favor do Estado. In: Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico- Financeira. Centro de Estudos Judiciários. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. Pág 126

[10] Como se verifica na justificativa dos projetos de lei

[11] SANTOS, Juarez Cirino dos. Reflexões sobre Confisco Alargado. Boletim do IBCCRIM, ano 23, n. 277, dez. 2015, p. 23-24)


..foto fernando.

Fernando Torres é Advogado. Graduado, com mérito acadêmico, em Direito pela PUCPR (2015), Pós-graduando em Direito Constitucional pela ABDConst e Ciências Penais pela LFG.. .


Imagem Ilustrativa do Post: Estátua da Justiça // Foto de: Thiago Melo // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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