O complexo de Amado Batista

17/04/2017

Por Samuel Mânica Radaelli – 17/04/2017

“Faz tempo que ninguém canta uma canção falando fácil... claro-fácil, claramente... das coisas que acontecem todo dia, em nosso tempo e lugar. Você fica perdendo o sono, pretendendo ser o dono das palavras, ser a voz do que é novo; e a vida, sempre nova, acontecendo de surpresa, caindo como pedra o povo.” (“caso comum de trânsito” Belchior)

Em uma entrevista recente o cantor Amado Batista declarou que era favorável ao retorno da Ditadura Militar, embora tenha sido preso arbitrariamente e torturado por ela, justificou as agressões sofridas comparando a um pai que bate nos filhos pelo bem deles, e que aquele período era melhor que a “anarquia que vivemos hoje”. Esta declaração, por mais absurda que seja não é uma opinião isolada, tal comportamento se apresenta na sociedade de forma preocupante. É comum encontrar pessoas vítimas de violência estatal que se sentem bem com isso, pois apesar da dor física e do constrangimento, tal violência rompe com a sensação de insegurança e de impunidade, assim a dor é compensada pela sensação de proteção que o autor da brutalidade virtualmente oferece.

O apelo por regimes de exceção possui múltiplas faces, uma delas se revela pela descrença na possibilidade de um protagonismo popular substancial na condução de um país, perspectiva inerente à democracia. A democracia transfere a angústia decisória para o povo, a tentativa de recorrer a um tutor que funcione como guardião dessa angústia que se amplia, pois na democracia a reposta aos grandes problemas não se dá de forma automática, leva a recaída em expedientes autoritários os quais monopolizariam a violência. Com isso se difunde a crença de que um Estado arbitrário poderia se relacionar com o “cidadão de bem” dando segurança em troca de subserviência. Lamentavelmente esta ilusão desesperada ganha força.

Posturas como a do cantor Amado Batista se formam do desespero ante os problemas sociais, sendo que para os quais não existem saídas fáceis, diante disso, ganha força a esperança de que da violência venha uma ordem redentora, capaz de inaugurar um tempo de paz e harmonia. Nesta perspectiva simplista todo o mal possui a mesma causa, ele é encarnado, com isso as pessoas que o encarnam tornam-se inimigos a serem eliminados por uma autoridade atroz e redentora. Nesta perspectiva a vítima nunca é o outro, na mesma lógica, respeito somente é devido àqueles que são como eu.

É preciso perceber que o apelo ao uso da violência é proporcional a inépcia no uso da razão, e que uma ordem centrada na autoridade ilimitada de um grupo é por si só uma forma de corrupção, à medida que perverte o sistema político. Além disso, as soluções hão de ser construídas mediante reflexão e debate, considerando as consequências de cada ação. A “saída” para os problemas não é a blindagem das instituições ao povo, como ocorre nas ditaduras, ao contrário é preciso radicalizar na democratização do poder, fortalecendo as formas de controle e inserção para que povo controle as instituições não o contrário.


Samuel Mânica Radaelli. Samuel Mânica Radaelli é Doutorando em Direito (UFSC), Mestre em Direito Público (UNISINOS), Professor do Instituto Federal do Paraná – IFPR e advogado. Membro do Grupo de Estudos Direitos Sociais e América Latina – GEDIS. Email: radaelliadvocacia@yahoo.com.br. .


Imagem Ilustrativa do Post: Para un poema de Seamus Heaney // Foto de: Eneas De Troya // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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