O comitê de gestão local da Lei da Escuta Protegida (Lei n. 13.431/2017): aspectos jurídicos e estratégias de implantação com base nas lições da metodologia PAIR[1]

06/01/2021

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry

A Lei da Escuta Protegida, Lei n. 13.431/2017, entrou em vigência há quase cinco anos com a intenção de reorganizar a lógica de atuação do Sistema de Garantia dos Direitos (SGD) no atendimento de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Para tanto, uma questão fundante para assegurar o sucesso de implantação e operacionalização da referida Lei é o processo de articulação entre os diferentes agentes e instituições/entidades que participam do SGD, o que coloca em discussão a necessidade de problematizar a importância da criação de um comitê para a governança local da tarefa de (re)organização dos mecanismos de atendimento aos sujeitos e da atuação em rede.

O presente artigo tem por objetivo aprofundar a análise sobre este comitê, de modo a identificar sua fundamentação jurídica, os objetivos relacionados à sua existência e as estratégias para criação, composição e funcionamento dos comitês, com base em subsídios advindos da metodologia do Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil (doravante metodologia PAIR). Um último aspecto tratado no artigo são os fluxos de atendimento, com dicas para sua elaboração, aplicação e monitoramento.

 

Base legal e objetivos relacionados ao comitê

A Lei da Escuta Protegida trouxe para o campo dos direitos e das políticas públicas de crianças e adolescentes uma nova sistemática de organização do atendimento às crianças e aos adolescentes vítimas e testemunhas de violência, sobretudo com a instituição do depoimento especial e da escuta especializada, de modo a prevenir a revitimização dos fatos violentos vivenciados e melhorar a qualidade do atendimento pela rede de proteção.

Para alcançar a materialização desta normativa no SGD de cada localidade, em especial nos sistemas de justiça, segurança pública, assistência social, educação e saúde – que são os que, via de regra, atuam mais diretamente com as vítimas e testemunhas de violência, ainda que os indiretamente também devam ser pensados, como esporte, cultura e trabalho – há uma delimitação legal, no artigo 14 da Lei, de que tais entes devem adotar “ações articuladas, coordenadas e efetivas voltadas ao acolhimento e ao atendimento integral 1as vítimas de violência”[2] (itálicos nossos).

As três palavras colocadas em itálico no trecho normativo destacado são, na verdade, desafios cotidianos ao SGD, dado que devem ser constantemente planejados, executados e avaliados para que possam ocorrer em cada caso concreto e numa análise coletiva das situações atendidas em determinado período de tempo e território. No entanto, a Lei da Escuta Protegida não tece informações sobre o comitê, deixando em aberto qual seria o mecanismo utilizado para implementar o preceito definido no artigo 14.  

É no Decreto n. 9.603/2018, criado para regulamentar a Lei da Escuta Protegida, que aparece a caracterização do comitê como espaço prioritário de articulação do SGD para implementação das medidas propostas na nova normativa. No artigo 9º, dispõe:

“Art. 9º Os órgãos, os serviços, os programas e os equipamentos públicos trabalharão de forma integrada e coordenada, garantidos os cuidados necessários e a proteção das crianças e dos adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, os quais deverão, no prazo de cento e oitenta dias, contado da data de publicação deste Decreto:

I - instituir, preferencialmente no âmbito dos conselhos de direitos das crianças e dos adolescentes, o comitê de gestão colegiada da rede de cuidado e de proteção social das crianças e dos adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, com a finalidade de articular, mobilizar, planejar, acompanhar e avaliar as ações da rede intersetorial, além de colaborar para a definição dos fluxos de atendimento e o aprimoramento da integração do referido comitê (....)”[3] (itálicos nossos).

Do texto normativo disposto acima, podemos destacar alguns aspectos. O primeiro, é o prazo de 180 dias, ou seis meses, para a criação dos comitês, o que resultaria, idealmente, com que em junho de 2019 as redes locais pudessem ter os seus comitês estruturados e operando, o que, de fato, não aconteceu na maioria dos municípios. Por certo, não apenas os comitês não foram criados no prazo legal, mas a própria Lei não foi internalizada na grande maioria dos municípios brasileiros, com exceção feita às capitais dos estados.

Até por isso, foi necessário que, em 2019, fosse celebrado um Pacto Nacional[4] que visa justamente assegurar a implementação da Lei n. 13.431/2017 no território nacional, sendo encampado por diversas instituições do governo federal, do Sistema de Justiça e da sociedade civil. Em diversos estados foram celebrados acordos interinstitucionais, a exemplo do Pará, em que houve a elaboração do Termo de Cooperação n. 14.2019, entre instituições do Sistema de Justiça e secretarias e órgãos do governo estadual, visando fomentar a aplicação da Lei “em todas as Comarcas do Estado do Pará, ajustando atividades e operacionalizando fluxos internos e interinstitucionais.”[5]

O segundo aspecto a destacar do artigo 9º, inciso I, é que ele apresenta três elementos metodológicos para a criação do comitê: (1) a constituição, preferencialmente, do comitê como instância interna do Conselho de Direito da Criança e do Adolescente (CDCA), ainda que o termo “preferencial” coloque a possibilidade de que sua criação seja não vinculada ao CDCA, a depender de cada contexto local e, sobretudo, das condições estruturais e humanas de cada CDCA; (2) a finalidade do comitê é o de proceder com a articulação interinstitucional, e o planejamento e monitoramento das ações destinadas à implantação da Lei da Escuta Protegida no território, o que exige um pré-planejamento do próprio comitê para que possa lograr tais objetivos, e que aprofundaremos mais adiante; (3) na parte final do texto normativo estão colocadas duas questões centrais que cada comitê deve se debruçar: a elaboração dos fluxos de atendimento; e, a construção de estratégias e de mecanismos avaliativos da articulação interna do comitê.

Desse modo, o comitê se constitui num espaço interinstitucional para o exercício da democracia e da governança local dos direitos da criança e do adolescente. Isto é particularmente importante e necessário de aplicação em nível municipal, pois o que a presença do comitê propõe é, uma vez mais, colocar em prática o princípio da municipalização do atendimento de crianças e adolescentes, naquilo em que tal princípio, sediado no artigo 88, inciso I, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990), apresenta de mais nobre: o imperativo de pensar toda e qualquer normativa e política pública com base no contexto local e nos agentes que atuam e convivem em determinado território, sendo, por isso, um processo de contextualização da norma aos SGD locais e, ao mesmo tempo, de adequação dos SGD aos ditames normativos.

Para tanto, é preciso exercitar localmente duas perguntas: como construir no município ações referenciais de atendimento e proteção social de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência para tornar operativa a Lei n. 13.431/2017? E, como monitorar as medidas construídas no município para ir aperfeiçoando o atendimento e a proteção social no decorrer da atuação prática dos agentes/serviços em rede? É sobre isso que iremos problematizar nas próximas sessões.

 

Estratégias de implantação do comitê e as lições da metodologia PAIR

O ponto mais importante que devemos considerar é que não existe uma receita única para a implantação do comitê e de sua consequente atuação para aplicação da Lei da Escuta Protegida ao SGD local. Apesar de não existir um caminho único, existem referências metodológicas e experiências interinstitucionais, em relação a outras normativas e políticas públicas que intentavam ou intentam proceder com objetivos semelhantes, que devem ser assumidas como subsídios metodológicos para que os/as agentes pensem o seu contexto, os seus desafios e as suas condições de atuação interna e em rede.

Um destes subsídios metodológicos advém da metodologia PAIR[6], um programa criado em 2002 pelo governo federal para assegurar a implementação do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, criado em 2000. Esta metodologia foi implantada em 22 estados e mais de 500 municípios brasileiros. Conduzi alguns projetos na cidade de Altamira, no Pará, e em outros municípios da chamada região do Xingu, entre 2012 e 2016, de adoção desta metodologia para enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes decorrente do processo de implantação da hidrelétrica de Belo Monte na região[7]. As lições aprendidas ao longo da execução destes projetos e a análise da própria metodologia PAIR são os subsídios que me parecem importantes usar para refletir sobre os passos estratégicos a serem tomados para a operacionalização do comitê de gestão local da Lei da Escuta Protegida.

 

Estratégias para a implantação e a composição do comitê

O artigo 9º, inciso I, do Decreto 9.603/2018, define como não obrigatória a vinculação do comitê ao CDCA, ou seja, é opcional, a depender de cada contexto. Pela experiência obtida nos projetos de implantação das comissões operativas locais, dentro da metodologia PAIR (ligada à primeira etapa, de articulação político-institucional), parece-me importante que os SGD locais façam um esforço para assegurar que os comitês tenham uma vinculação aos CDCA, e sejam concebidos como um grupo temático deste órgão.

Isto pelo fato do CDCA, na estrutura concebida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e, posteriormente, pela Resoluções ns. 001/1991, 113/2006 e 117/2006[8] do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), ter a função de órgão colegiado de referência para o planejamento e monitoramento das ações socioestatais ligados aos direitos de crianças e adolescentes. Dito de outra forma, toda a forma de planejamento e monitoramento destas ações em determinado território (em nível nacional, estadual, municipal ou distrital) deve convergir para o CDCA, e não ficar dispensa e, até mesmo, rivalizar com o órgão de controle social.

Ainda assim, e independente do comitê ser ou não vinculado ao CDCA, deve ter uma boa comunicação com os membros do CDCA e, ao mesmo tempo, ter uma atuação que não fique amarrada à dinâmica do próprio CDCA. Neste último aspecto, significar dizer que é necessário que tenha certa autonomia na sua gestão, de modo a construir seu planejamento e lógica de atuação com base nas decisões tomadas pelos seus membros, ainda que tenham que ser validadas pelo colegiado do CDCA, quando vinculado a este. Isto é particularmente importante em municípios onde o CDCA está desarticulado ou perdeu a autonomia político-organizacional para o poder público municipal, levando a que o comitê possa atuar para reoxigenar o controle social no território.

Por outro lado, e independente de se vinculado ou não ao CDCA, o comitê precisa ter um ato de formalização de sua criação, podendo ser via resolução do órgão de controle social, decreto do poder executivo ou outro instrumento normativo (portaria, termo de cooperação etc.) para assegurar o respaldo legal do órgão e, com isso, a segurança política e jurídica das decisões a serem tomadas em sua condução. A experiência nos municípios de implantação da metodologia PAIR também indica que as comissões operativas locais que definiram uma coordenação executiva – isto é, um número de membros entre um e cinco que ficam encarregados pela condução político-administrativa do órgão – tiveram mais sucesso na manutenção e no fortalecimento do espaço colegiado no longo prazo, o que serve de subsídio para pensar a aplicação do mesmo mecanismo no comitê de gestão local da Lei da Escuta Protegida. Em paralelo, há de se ponderar a necessidade ou não de elaboração de um regimento interno do comitê, em que possam constar aspectos básicos de funcionamento do órgão, entre os quais as frequências de reuniões, os membros participantes e as formas de destituição dos membros, entre outros aspectos.

Uma última questão é sobre a composição dos membros do comitê. O melhor indicativo é que tal composição seja feita para além dos membros do CDCA, isto é, refletindo uma representatividade adequada das instituições públicas e entidades sociais de caráter estratégico para a implantação da Lei n. 13.431/2017. Além de garantir a participação de uma quantidade adequada de crianças e adolescentes. Logo, não apenas uma ou duas crianças ou adolescentes, mas um quantitativo que permita um peso maior na composição do órgão, respeitando suas diversidades locais e a igualdade de gênero, pois a participação e o protagonismo delas são fundamentais nas decisões a serem tomadas pelo órgão.

 

Estratégias para o funcionamento do comitê

A metodologia PAIR novamente nos ajuda a pensar nas estratégias para o funcionamento do comitê após sua criação e composição dos membros. Nesta metodologia, as decisões a serem tomadas pela comissão operativa local devem estar balizadas pelas informações obtidas no diagnóstico rápido participativo, um tipo de pesquisa concebido para possibilitar um entendimento mais aprofundado – em termos históricos e situacionais – da realidade da violência sexual contra crianças e adolescentes no território, assim como das condições estruturais, humanas e de articulação do SGD. Pois bem, compreendo que há, nisso, uma lição importante para os comitês ligados à Lei da Escuta Protegida: o balizamento da avaliação sobre os serviços e a configuração do atendimento pelo SGD deve ser feito com base num diagnóstico similar ao da metodologia PAIR, buscando identificar as condições reais dos serviços e a caracterização das demandas e da forma de proceder ao atendimento dela pela rede local. Nisso, o conteúdo metodológico do diagnóstico rápido-participativo pode servir como referência para a condução do diagnóstico a balizar as decisões do comitê, pois, em regra, trata-se de utilizar algo que foi pensado para um tipo específico de violência (a violência sexual) para tratar, agora, de todos os tipos de violência que afetam crianças e adolescentes.

Após a elaboração do diagnóstico, é fundamental que o comitê possa estruturar um plano de ação ou de trabalho que contenha, de forma sintética, as metas e as ações a serem desenvolvidas, além dos prazos temporais e as formas de monitoramento, fundamentado no próprio diagnóstico e nos marcos legais. O ideal é que a construção deste documento seja balizada pelos preceitos da participação democrático-dialógica e a simplificação do instrumental, isto permite que haja um grupo adequado de participantes que possam contribuir e dar legitimidade ao documento, além de um instrumental que contenha poucas metas e ações prioritárias, e não uma quantidade enorme de medidas que acabe por se tornar inviável de concretização e monitoramento. Aqui, deve prezar o lema: mais é melhor, para a participação; e, menos é mais, para o resultado: o plano em si.

 

Fluxos de atendimento: dicas para a elaboração e uso

Dentre as ações cabíveis ao comitê de gestão local da implantação da Lei da Escuta Protegida, o Decreto n. 9.603/2018, em seu artigo 9º, inciso I, define como prioritário a definição dos fluxos de atendimento às crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Mas o que são e para que servem tais fluxos?

Costumo trabalhar, em atividades de formação e de construção de fluxos de atendimento com redes de proteção, a metáfora dos fluxos como rios. Por ser do norte do país, os rios, como o Amazonas, me trazem esta referência simbólica, afetiva e socioambiental de ser um caminho por onde a água flui e que possui uma rota não linear, por vezes com pedras, cachoeiras e barrancos, entre outras características, que dificultam ou aceleram o fluir da água. Os fluxos de atendimento podem ser lidos como caminhos similares, pelo qual deve “fluir” a pessoa que está em atendimento e que precisa que os serviços saibam em que momento devem atuar e com quem podem contar para a continuidade da atuação em rede. Os fluxos também podem revelar as dificuldades e as potencialidades do SGD local, sendo, sobretudo, um instrumento de fortalecimento organizacional e de prevenção à revitimização de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.

Para a elaboração do fluxo de atendimento, é importante que os membros do comitê tenham conhecimento das delimitações legais presentes no artigo 9º, inciso II, do Decreto 9.603/2018, com o seguinte conteúdo:

“Art. 9º [...] II - definir o fluxo de atendimento, observados os seguintes requisitos:

a) os atendimentos à criança ou ao adolescente serão feitos de maneira articulada;

b) a superposição de tarefas será evitada;

c) a cooperação entre os órgãos, os serviços, os programas e os equipamentos públicos será priorizada;

d) os mecanismos de compartilhamento das informações serão estabelecidos;

e) o papel de cada instância ou serviço e o profissional de referência que o supervisionará será definido.”[9]

Os cinco requisitos descritos no preceito legal servem de orientação básica para a construção dos fluxos de atendimento, mas não apresentam um caminho metodológico do trabalho para elaboração deles, e sim diretrizes para a confecção dos fluxos em si. A experiência com a implantação da metodologia PAIR, em que os fluxos de atendimento também são instrumentos importantes de elaboração com as redes locais, permitiu-me estruturar quatro subsídios metodológicos para a construção dos fluxos de atendimento.

O primeiro deles é a atenção à metodologia de construção do fluxo, o que passa pela consideração do formato das oficinas como o melhor a ser utilizado, pois estimula a participação e a construção coletiva. Por vezes, mais de uma oficina será necessária, a depender de como for o andamento da atividade para a consecução do objetivo. Na oficina é fundamental a ampla participação de representantes de instituições públicas e entidades sociais que atuam no campo dos direitos de crianças e adolescentes, além de contar com a participação direta de crianças e adolescentes. Além disso, é necessário definir as perguntas orientadoras, e pactuar elas com os/as participantes. Estas perguntas apontam os horizontes de problematização que devem fomentar o debate e o diálogo entre as e os participantes para que avancem na construção coletiva do(s) fluxo(s) de atendimento.

O segundo aspectos são as referências de fluxos pré-existentes, os quais podem servir de subsídios às redes locais para pensar os arranjos organizativos e os conteúdos dos fluxos locais. Na atualidade, a principal referência de fluxo de atendimento é o elaborado numa parceria entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Fundo das Nações Unidas para a Infância no Brasil (UNICEF) e a Childhood Brasil, para servir como referência nacional de fluxo de atendimento de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Este fluxo foi lançado em julho de 2020, em conjunto com o lançamento do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense[10]. Em todo caso, outras entidades sociais também possuem modelos de fluxos de atendimento, como os do Cedeca/Bahia, Ibdcria-Abmp, além de fluxos de âmbito municipais e estaduais. Mas friso, devem ser usados como subsídios para a apropriação e a reconstrução local, e não para serem copiados. 

O terceiro aspecto é a modelagem do fluxo, em que cada rede local deve decidir se o fluxo que se pretende construir será: (1) ideal ou real, no primeiro caso sendo um fluxo da articulação e forma de atendimento que se quer alcançar, enquanto a segunda opção considera a elaboração do fluxo com base nas condições reais da rede local, incluindo a explicitação de suas dificuldades e carências dentro do próprio arranjo do fluxo; (2) geral e/ou interno, no primeiro caso sendo um fluxo que abranja várias instituições, e no segundo é fluxo interno de cada instituição, sendo que os dois podem ser mesclados; (3) trabalhar todas as violências num único fluxo ou definir fluxos específicos para cada violência (por exemplo: sexual; física; psicológica; e, institucional).

Além disso, é importante que as redes locais possam avaliar a necessidade de construção de fluxos diferenciados para determinadas diversidades do ser criança e adolescente, como aquelas pertencentes aos povos e comunidades tradicionais, as que são pessoas com deficiência e as que compõe o grupo LGBTI+. Cada uma destas diversidades, e elas reunidas nos sujeitos de maneira interseccional, tornam ainda mais complexa a abordagem de atendimento, e devem considerar direitos específicos ligados ao pertencimento identitário de cada sujeito.

Este é um exercício que está em andamento no âmbito do Fórum Nacional de Infância e Juventude (FONINJ) do CNJ, por meio da constituição de um grupo de trabalho com a finalidade de estabelecer diretrizes de adequação intercultural do depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, quando pertencentes a povo ou comunidade tradicional. Neste grupo de trabalho, do qual participo, foi proposta a criação de um fluxo específico para o atendimento de crianças e adolescentes de povos e comunidades tradicionais, com base na referência nacional adotada pelo CNJ.

Este fluxo intercultural foi construído com a participação de representantes de organizações de caráter nacional de alguns destes povos e comunidades tradicionais, e apresenta como elementos diferenciadores: (1) o respeito às instâncias internas e às práticas tradicionais de atendimento de povos e comunidades tradicionais, articulado ao direito à autonomia; (2) o reconhecimento do direito à autoidentificação como requisito de apropriação pelos profissionais no atendimento de vítimas ou testemunhas de violência, em especial no Conselho Tutelar de Direitos; (3) e, o dever de consulta a representantes do povo ou comunidade tradicional de pertencimento do sujeito atendido, procedimento realizado em diferentes momentos/etapas do atendimento no fluxo, de modo a possibilitar com que tais sujeitos possam contribuir ativamente com as decisões a serem tomadas no atendimento. Tudo isto embasado em preceitos normativos, como a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Constituição Federal de 1988.

Por último, há um quarto aspecto, o da organização do arranjo ou desenho do fluxo, que é basicamente o de “por a mão na massa” para a construção efetiva do passo a passo do fluxo. Ou seja, de pensar desde o momento da denúncia dos casos até o dos atendimentos pós-judicialização da situação, visando um atendimento integral às vítimas, testemunhas e seus familiares.

Aqui, é importante reforçar a necessidade de que os fluxos sejam elaborados de maneira coletiva, democrática e dialógica, e sempre referenciados normativa e tecnicamente. Também, devem ser identificados os momentos e as instâncias que vão desenvolver o depoimento especial e a escuta especializada, de modo a que todos saibam os órgãos competentes para estes dois procedimentos cruciais definidos na Lei da Escuta Protegida.

Devo, uma vez mais, enfatizar a necessidade de que os fluxos sejam simplificados, para o fácil entendimento e uso pelos profissionais do SGD. É preciso pensar que os profissionais e as equipes mudam ao longo do tempo, e os novos profissionais que vão chegando à rede de proteção necessitam de informações sobre os fluxos de atendimento que sejam de fácil entendimento e uso, de modo a garantir com que os instrumentos tenham continuidade de uso.

Ao mesmo tempo, é importante que o comitê defina estratégias para a divulgação e o monitoramento da aplicação dos fluxos de atendimento. Em termos de divulgação, algumas dicas são: produzir banners de cada fluxo e afixar em local facilmente visível nos órgãos estratégicos de atendimento às crianças e aos adolescentes; colocar os arquivos dos fluxos nos sites e páginas em redes sociais do CDCA, de secretarias e de órgãos do sistema de justiça, segurança pública, saúde, assistência social e educação, além do Conselho Tutelar; o comitê, em parceria com o CDCA, enviar ofício com a cópia dos documentos para cada órgão da rede de proteção; e, a realização de evento público para a apresentação e o debate sobre o(s) fluxo(s) elaborado(s), assegurando a ampla participação de profissionais do SGD e a divulgação pelos meios de comunicação social.

Cabe lembrar que a Resolução n. 299/2019 do CNJ, que regulamenta a atuação do SGD no atendimento de criança e adolescente vítima ou testemunha de violência, destaca, nos seus artigos 3º e 4º, a obrigação dos tribunais estaduais e federais adotarem como atividade inerente à função judicial a participação de magistrados na concretização dos fluxos locais de atendimento e o empenho na divulgação destes instrumentos à sociedade em geral e aos órgãos de atendimento às crianças e adolescentes.

O engajamento de juízes e juízas, e não apenas de suas equipes multiprofissionais, é fundamental para que não apenas os fluxos de atendimento sejam efetivamente aplicados, mas que a própria Lei da Escuta Protegida tenha adoção pelos SGD locais. Mas este engajamento deve ocorrer como parte da articulação desenvolvida pelos comitês e o CDCA, e não se sobrepondo ou conflitando com estes espaços/órgãos.

Ao final, o que se deseja é que os fluxos de atendimento sejam efetivamente usados pelas e pelos profissionais do SGD, e que a cada período temporal (entre 1 e 3 anos, via de regra) seja avaliado pelo comitê para que possam ser feitos ajustes no conteúdo do fluxo e/ou na formação de aplicação pela rede de proteção.

 

Notas e Referências

[1] As ideias centrais deste artigo foram expostas em palestra que ministrei, em dezembro de 2020, no curso de formação “Crianças e Adolescentes Refugiadas e Migrantes: o Papel do Conselho Tutelar”, organizado pela OIM, ACNUR, UNICEF e R4V. Agradeço às contribuições dos participantes com perguntas e questionamentos, além da moderação e reflexões do professor Benedito Rodrigues dos Santos.

mais especificamente no “Módulo 5 – Resposta Integrada dos Atores do Sistema de Garantias de Direitos”,

[2] Cf. Brasil. Lei n. 13.431, de 4 de abril de 2017. Brasília: Casa Civil, 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13431.htm

[3] Cf. Brasil. Decreto n. 9.603, de 10 de dezembro de 2018. Brasília: Casa Civil, 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Decreto/D9603.htm

[4] Conferir a íntegra do documento pelo link: https://www.justica.gov.br/seus-direitos/politicas-de-justica/EJUS/arquivos/pacto-nacional-lei-1-431-de-04-04-2017-assinado.pdf

[5] Conferir a íntegra do documento pelo link: http://www.mppa.mp.br/data/files/DA/11/FF/D5/44F1F6107E4491F6180808FF/TERMO%20DE%20COOPERACAO%20TECNICA%20N.%20014-2019%20-%20Implementacao%20LEI%20N.%2013.431-2017.pdf

[6] A metodologia PAIR consiste na realização de seis etapas de ações: articulação político-institucional, na qual se destaca a criação da comissão operativa local; diagnóstico rápido-participativo, em que é desenvolvida uma análise quanti-qualitativa da violência sexual contra crianças e adolescentes, assim como das condições do SGD; elaboração do plano operativo local, um documento que visa estabelecer as metas e as ações para o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes; a capacitação da rede local, centrada em temas ligados ao assunto central da metodologia; assessoria técnica, em que são desenvolvidas atividades formativas e de orientação técnico-profissional voltadas para a prática do atendimento e a organização da rede de proteção; e, por último, o monitoramento do plano local, no qual é feita a avaliação de seu cumprimento com base em indicadores. Para aprofundamento da metodologia PAIR, conferir: http://www.escoladeconselhospe.com.br/site/livro/pair-2-metodologia-do-pair/

[7] Para outras informações sobre estes projetos, conferir as publicações: (1) Oliveira, Assis da Costa (org.) Crianças e adolescentes: violência sexual e políticas públicas no contexto da região do Xingu. Belém/PA: Editora Supercores, 2017; Oliveira, Assis da Costa; Pinho, Vilma Aparecida de (orgs.). Direitos das crianças e dos adolescentes: violência sexual, medidas socioeducativas, diversidade etnicorraciais e movimentos populares. Belém/PA: Editora Supercores, 2014; (3) Oliveira, Assis da Costa (org.). Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes: cenários amazônicos, rede de proteção e responsabilidade empresarial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. Os dois primeiros livros estão acessíveis para download em minha página no ResearchGate. O último livro está a venda no site da editora Lumen Juris.

[8] A Resolução n. 001/1191 disciplina o funcionamento do próprio Conanda. As duas outras resoluções (ns. 113/2006 e 117/2006) disciplinam a organização do SGD e as competências de cada um de seus eixos (proteção, promoção e controle social).

[9] Cf. Op. Cit.

[10] Sobre o assunto, consultar a notícia do lançamento, pelo link: https://www.cnj.jus.br/protocolo-nacional-reforca-combate-a-revitimizacao-de-criancas-em-depoimentos/

 

Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ronmacphotos/8704611597

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura