O cidadão de bem, esse desconhecido – Por André Sampaio

22/01/2017

É muito frequente que em um debate acerca da questão criminal alguém traga à tona a figura do “cidadão de bem” para contrapô-la à do “bandido”. Dois pontos óbvios surgem desde já: o maniqueísmo que traça uma linha demarcatória na sociedade separando todos os seus integrantes em uma de duas espécies e a própria utilização de categorias universais, consequentemente simplificadoras, para a abordagem de tema de tamanha complexidade.

Entretanto, não visamos por ora analisar a implementação de uma estratégia discursiva, apenas de modo menos epidérmico conseguir esboçar conceitualmente o que se quer dizer quando se refere ao “cidadão de bem”. Parece-nos que nesse lexema o termo “cidadão” cumpre uma função de menor expressividade, relacionada tão somente ao indivíduo que habita determinado espaço urbano, articulando direitos e deveres, enquanto que o complemento “de bem” é dotado de maior polivalência.

Assim, o que se quer dizer com o complemento “de bem”? Em um primeiro momento se pensa no indivíduo que respeita os limites de seus direitos e cumpre corretamente seus deveres – não é a toa que usualmente se emenda a locução “cidadão de bem” com qualquer menção ao pagamento dos impostos devidos.  Porém, se assumirmos a correição dessa hipótese, poderíamos afirmar que a figura ora examinada pode incorrer em pecados e desvios de ordem ética e moral e continuar usufruindo do rótulo. Logo, irrompe-se um fator relevante à análise: as dimensões de controle, estaríamos diante de uma figura relacionada a instâncias disciplinares, por conseguinte.

É possível afirmar, então, que o cidadão de bem é o que, resumidamente, respeita os limites impostos pelo direito, religião, moral e ética? Provavelmente não. Caso assumamos que sim nós finalmente encontraríamos a resposta: ele é o servil, o que obedece e talvez até o que tenha desenvolvido alguma dependência pela obediência (afinal a liberdade é sufocante). Esse indivíduo mítico não viola direitos e nem deveres, se se encontra insatisfeito com algum deles basicamente se vale dos meios legalmente dispostos (leia-se, “colocados à disposição pelo mesmo sistema de regras que se quer questionar”) para, no momento em que tenha autorização, expor seus questionamentos e torcer para ser escutado. Ele não pode pecar, visto não haver espaço negocial com a(s) divindade(s), e necessita de uma postura proba e moralmente adequada.

Não obstante, alguns questionamentos emergem: caso os preceitos de sua divindade sejam divergentes aos das alheias qual deles seguir? A resposta parece ser óbvia: aos da divindade de cada um, claro! Mas isso torna o outro um “não-cidadão de bem”? Ou seja, a religião precisa ser sacada de fora dessa equação, visto que sua pluralidade provocaria uma de duas consequências possíveis: ou ter-se-ia de adotar uma “religião oficial” – figura democraticamente inadequada – ou seria necessário pulverizar a figura analisada em subespécies: cidadão de bem católico, cidadão de bem umbandista, cidadão de bem vaishnava, cidadão de bem evangélico... e a partir daqui uma nova fragmentação (batista, adventista, da assembleia, da universal...).

Desde essa perspectiva, não poderíamos dizer o mesmo da moral e da ética? Se ambas operam de modo eminentemente subjetivo não seria possível falar de “morais” ou de “éticas”? E isso não significaria que eventualmente o cidadão de bem teria que resolver eventuais conflitos entre elas? Em suma, para encontrarmos uma linha demarcatória mais ou menos precisa do que ele seria teríamos que procurá-la em uma instância genérica, abstrata, coercitiva e imperativa, ou seja, no direito.

Com efeito, o cidadão de bem é o que obedece ao direito, ou, para não exigirmos tanto dele, é o que não comete crimes, tarefa já demasiadamente severa, em um universo de cerca de 1.800 tipos penais. “Hipócritas!”, gritariam alguns desses cidadãos, “é claro que não dá para comparar quem mata e quem falsifica carteira de estudante, quem estupra e quem compra ou vende votos!”, e, diante desses gritos, talvez nos encontremos mais perto da compreensão do conceito: trata-se daqueles que não cometem crimes graves... mas quem afirma o que é ou não grave? Com base em quais critérios? Vender uma planta é mais ou menos gravoso que violar as regras eleitorais? Subtrair um celular é mais ou menos gravoso que camuflar a sonegação do imposto de renda?

O que nos parece é que se trata de conceito escorregadio, intangível, cuja proximidade de captura apenas existe para revelar, logo em seguida, sua habilidade de inapreensão; conceito entrecortado, que quanto mais traços usamos para o demarcarmos ainda mais demanda, em um recorte ao infinito. Conceito móvel, deslocável ao bel prazer do enunciador...

Quem é, enfim, o cidadão de bem? É o idêntico, é o que compartilha de meus valores, da minha religião, da minha moral, da minha ética, preferentemente de modo que esse compartilhamento não me traga prejuízos, ou seja, é o outro menos outro possível, de modo que uma maior alteridade só é admissível se se sintonizar com a subserviência.

Em outras palavras, o cidadão de bem vem em dois modelos: ou ele fala mais ou menos como eu, veste-se mais ou menos como eu, age mais ou menos como eu, cheira mais ou menos como eu, parece mais ou menos comigo, ou ele é o outro manso, pacato, que “sabe o seu lugar”; aquele que pode até se dirigir a mim, claro, ainda que não para me servir, mas que saiba os limites dessa relação, de modo que a qualquer tempo um “você sabe com quem está falando?” possa lembrar-lhe de seu lugar.

Nessa senda o termo “cidadão” se contrapõe muito bem à sua contraface: o bandido, de matriz etimológica relacionada ao “banido”, ou seja, o que não compartilha do meu espaço, o que está fora do con-vivere, o excluído. Ou, da forma mais didática possível, quem é, afinal, o cidadão de bem? Sou eu, é claro.


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