O chargeback e as compras coletivas

20/06/2016

Por Vitor Vilela Guglinski – 20/06/2016

1. Introdução

As compras coletivas, realidade recentemente instaurada no âmbito do comércio eletrônico, são uma modalidade de contratação de produtos e serviços em que é exigida a aderência de um número mínimo de consumidores à respectiva oferta, de modo a baratear o acesso aos bens de consumo comercializados através de sites da internet, criados especificamente para esse fim, através de parcerias junto a diversos fornecedores.

Apontando a origem dessa modalidade de negócio, Guilherme Gavioli informa:

Este modelo de negócio foi criado nos Estados Unidos por Andrew Mason, quando lançou o primeiro site do gênero em novembro de 2008, o Groupon. Aqui no Brasil o pioneiro foi o Peixe Urbano, iniciando suas atividades em março de 2010.

Desde então, a Compra Coletiva se consolidou entre os brasileiros, beneficiando tanto as empresas que podem vender suas mercadorias em maior volume por conta de seu baixo preço, assim como os consumidores, que poderão adquirir bens com generosos descontos por estarem realizando uma Compra Coletiva (Disponível em: http://ecommercenews.com.br/glossario/o-que-e-compra-coletiva. Acesso em 12/04/2012).

Atualmente, são inúmeras as opções de aquisição de produtos e serviços fora do estabelecimento comercial (internet, telefone, reembolso postal etc.), sendo que, muitos empresários sequer possuem pontos físicos onde exercem a empresa, preferindo a comodidade do ambiente virtual e, principalmente, a agilidade das transações concretizadas virtualmente. Nada obstante a diversidade de formas de pagamento ofertadas ao consumidor, destacam-se as operações envolvendo pagamentos por meio de cartões de crédito e débito automático.

De fato, o comércio virtual trouxe conforto e comodidade a empresários e, principalmente, aos consumidores, que, no caso de aquisição de produtos, podem satisfazer suas necessidades de consumo sem enfrentar os transtornos envolvendo o deslocamento até o estabelecimento comercial, bastando que selecione os bens que melhor lhe atendam, através de um simples click no mouse. No caso de contratação de serviços, procede-se da mesma forma, bastando que o consumidor manifeste sua vontade de contratar, restando somente a fruição do serviço após a concretização do negócio.

Sem embargo, se é correto afirmar a existência de inúmeras vantagens a ambas as partes da relação de consumo nesse modelo negocial, não menos verdadeira é a afirmação de que sérias fraudes ocorrem em razão dessa prática, dadas as fragilidades que caracterizam a contratação à distância, especialmente no ambiente da internet, sendo que uma das práticas que vem se tornando comum nesse nicho é o chargeback.

Em interessante editorial publicado em seu site, no dia 17/01/2012, o eminente civilista Pablo Stolze Gagliano nos convidou a refletir sobre essa prática do chargeback, que vem se tornando bastante comum no ambiente digital, e que tem sido considerado por muitos empresários como um dos atuais vilões do comércio eletrônico (disponível em: http://pablostolze.ning.com/).

Já tivemos a oportunidade de realizar um breve estudo sobre o assunto[1], do qual conseguimos extrair algumas conclusões envolvendo o conceito de chargeback, sua diferença em relação ao direito de arrependimento previsto no art. 49 do Código de Defesa do Consumidor, as respectivas sanções, e o sistema de responsabilidade civil a ser observado em cada caso.

Avançando no estudo do tema, nessa oportunidade passaremos a investigar as repercussões do chargeback, analisando as situações acima no contexto das compras coletivas.

2. O Conceito de chargeback e as diferenças em relação ao direito de arrependimento previsto no art. 49 do Código de Defesa do Consumidor

Afinal, o que é chargeback? Por que essa prática é considerada uma das graves adversidades enfrentadas pelo comércio eletrônico?

O chargeback pode ser definido como o cancelamento de uma venda cujo pagamento seja feito através de cartões de crédito ou débito, em decorrência do não reconhecimento da compra por parte do titular do cartão, ou ainda, no caso de a transação não obedecer às regras previstas nos contratos, termos, aditivos e manuais editados pelas administradoras de cartões.

No primeiro caso estaremos diante da figura do consumidor, que poderá manifestar o não reconhecimento da transação, tanto em relação ao comerciante quanto à administradora do cartão utilizado. De seu turno, a segunda hipótese verifica-se quando o próprio comerciante não observa as normas contidas no contrato que mantém junto à administradora de cartões. Em síntese, no primeiro caso há relação de consumo (relação entre desiguais); no segundo, relação empresarial (relação entre iguais).

Embora no momento em que escrevemos este trabalho não tenhamos notícias de julgados analisando a ocorrência de chargeback por parte do consumidor, a ilustrar a ocorrência dessa prática entre comerciante e administradora de cartões, colacionamos julgado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, conforme ementa que se transcreve:

Ação declaratória c/c repetição de indébito c/c indenizatória.Trata-se de ação envolvendo operação de 'chargeback', ou seja, cancelamento de uma venda feita com cartão de débito ou crédito, que pode acontecer por dois motivos: o não reconhecimento da compra por parte do titular do cartão, e pelo fato de a transação não obedecer às regulamentações previstas no Contrato de credenciamento.Hipótese em que a fornecedora do produto e o titular do cartão pediram inicialmente o cancelamento da compra cerca de vinte dias após a realização do negócio, tendo a emissora do cartão suscitado dúvida sobre o mesmo em carta remetida à Apelante, cerca de um mês após o pedido de cancelamento. Embora tenha a Apelada afirmado que a Apelante descumpriu as cláusulas contratuais quanto à forma exigida para a manutenção do negócio e desconsideração do cancelamento, não trouxe aos autos o contrato firmado entre as partes, nem comprovou ter pago à Apelante, fornecedora do produto, a quantia objeto da transação, embora o ônus lhe pertencesse, na forma do artigo 333, inciso II do CPC, por se tratar de fato extintivo do direito da Autora.Inexistência de causa idônea a justificar a retenção feita pela emissora do cartão e a cobrança do valor relativo à diferença da operação. Não há, todavia, que se falar em devolução em dobro da quantia retida, eis que não se trata de cobrança indevida, mas de retenção, o que impõe a sua restituição na forma simples, com atualização monetária desde a retenção e juros a contar da citação.Conhecimento e provimento parcial do recurso para reconhecer a inexistência do débito (APL 0011268-26.2008.8.19.0209, 16ª Câm. Civ., Rel. Des. Mário Robert Manheimmer, DJ. 03/08/2010).

Há quem confunda o chargeback com o direito de arrependimento previsto no art. 49 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), dispositivo segundo o qual o consumidor desiste de uma contratação, obtendo a devolução do valor pago ao fornecedor, monetariamente corrigido. Vejamos o que diz o dispositivo:

Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.

Entretanto, essas situações não se confundem, e guardam diferenças sensíveis.

Em comum, o chargeback e o direito de arrependimento só possuem uma característica: a devolução, ao consumidor, de valores por ele despendidos. A semelhança acaba aí.

A prática em estudo não se confunde com o direito de arrependimento, pois, nesse caso, o consumidor não está obrigado a declinar o motivo do cancelamento do negócio. A esse respeito, Nelson Nery Júnior anota:

“O Código consagra o direito de o consumidor arrepender-se e voltar atrás em declaração de vontade que haja manifestado celebrando relação jurídica de consumo. O direito de arrependimento existe per se, sem que seja necessária qualquer justificativa do porquê da atitude do consumidor. Basta que o contrato de consumo tenha sido concluído fora do estabelecimento comercial para que incida, plenamente, o direito de o consumidor arrepender-se”.

Corroborando a lição do eminente autor, Leonardo de Medeiros Garcia registra:

“O direito de arrependimento não está vinculado a qualquer vício do produto ou serviço ou ainda a qualquer justificativa por parte do consumidor. Ou seja, o direito de desistir do negócio celebrado é imotivado. Qualquer explicação que o consumidor der a respeito dos motivos da desistência, além de ser voluntário, servirá apenas para que o fornecedor saiba, a título de coleta de dados e para sua pesquisa, o porquê do consumidor estar desistindo do produto e serviço”.

De seu turno, no chargeback existe uma causa (ou causas) específica que o justifica. Deve haver, então, relevante razão de direito para que seja legítimo, pois, do contrário, haverá abuso de direito por parte do consumidor ou da própria administradora de cartões de crédito ao cancelar a contratação. Caso reste verificado o abuso de direito por parte de qualquer dos sujeitos envolvidos na transação, certamente estará configurado o dever de indenizar previsto no art. 187 do Código Civil, que diz:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Ademais, abre-se um breve parêntese para registrar que, nas relações de consumo, o princípio da boa-fé objetiva é via de mão dupla, isto é, a boa-fé deve ser regra de conduta a ser observada também pelo consumidor, nos termos do art. 4º, III, do CDC. Vejamos o que diz a regra:

 Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: 

(omissis) 

 III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica, sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores (grifo nosso).

No tocante ao direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC, cumpre-nos esclarecer que é um direito potestativo, exercido livremente pelo consumidor, dentro do chamado prazo de reflexão, em que o consumidor tem sete dias para desistir do contrato, contados de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, ao qual o fornecedor estará obrigatoriamente sujeito, independentemente da ocorrência de alguma causa. Nesse caso, não é necessária a ocorrência de qualquer evento, bastando a vontade de não mais prosseguir com o negócio. Sendo assim, a razão de existência das normas é diversa.

Por parte do consumidor, pode ocorrer chargeback quando terceiro se apoderar do número e da senha de seu cartão (captura do número pela ação de hackers, furto ou roubo do cartão etc.), e então passar a realizar compras em nome daquele. Como não foi o titular do cartão quem realizou a transação, poderá, legitimamente, contestá-la, devendo obter o ressarcimento do que lhe for eventualmente cobrado, inclusive valendo-se da regra do parágrafo único do art. 42 do CDC, que lhe confere o direito à repetição do indébito. Eis o teor da regra:

Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

Deve-se atentar para a parte final do dispositivo, pois, o fornecedor desavisado poderá alegar que houve engano justificável na venda ou até mesmo que agiu com boa-fé, uma vez que confiou que portador do cartão era de fato seu titular, o que é um engano crasso.

Tendo o CDC consagrado o sistema de responsabilidade civil objetiva, com fundamento na teoria do risco do empreendimento, o fornecedor deverá arcar com eventuais prejuízos causados ao consumidor, pois, aventurando-se a adotar um sistema de vendas mais informal, estará sujeito ao risco de negociar com uma pessoa que não é efetivamente a titular do cartão de crédito ou débito. Para fins didáticos, lembremos o personagem Severino, incorporado pelo brilhante ator Paulo Silvino, para visualizar que, nas vendas à distância é praticamente impossível realizar o “cara–crachá”, fazendo com que o fornecedor de produtos e serviços deva suportar os riscos nessa modalidade de negócio e, portanto, o dever de indenizar, caso a transação comercial resulte em prejuízo para o consumidor.

Por sua vez, a ratio da norma estampada no art. 49 do CDC é a vulnerabilidade do consumidor, evidenciada pela ausência de contato direto com o produto ou serviço que irá adquirir ou contratar. Fora do estabelecimento comercial, o consumidor não exerce contato físico com o produto; não tem condições de verificar se a cor corresponde à desejada, se o tamanho do produto é de fato o esperado etc. Por outro lado, examinando pessoalmente o produto, reúne condições de verificar se este realmente corresponde à suas expectativas, pode testá-lo no local da aquisição, consultar outros consumidores que adquiriram o mesmo produto, obtendo opiniões etc., e assim tem mais chances de consumir refletidamente, conscientemente, firme na ideia de que está contratando o que quer e como quer.

Lado outro, se contrata à distância, correrá o risco de o objeto do negócio não corresponder ao que espera, tendo e vista as diversas técnicas de “maquiagem” do produto para torná-lo mais atraente (vide hambúrgueres de redes de fast food), publicidades com apelo emocional, mostrando famílias sorridentes, felizes, de vida aparentemente perfeita, como ocorre com publicidade de planos de saúde, seguros, contratos de time sharing etc.

Esta é, portanto, a razão de ser do direito de arrependimento, a ser exercido no prazo de reflexão: leva-se em conta o aumento da vulnerabilidade do consumidor, em razão da ausência de contato direto com o objeto do negócio.

3. Repetição de indébito e responsabilidade civil por chargeback

Em elucidativo artigo[2] sobre compras coletivas, Patrícia Peck Pinheiro traça algumas considerações envolvendo a responsabilidade civil dos sujeitos envolvidos nessas relações jurídicas. São suas palavras:

A relação jurídica gera responsabilidades para as três partes envolvidas: o site de compra coletiva (que deve conseguir fechar a proposta ou devolver o dinheiro, buscando parceiros que honrem com a oferta apresentada, bem como garantir que não haja fraude do cupom), o estabelecimento (que precisa cumprir com a venda do produto ou serviço no prazo, condições, preço e qualidade acordados em que toda e qualquer restrição deve estar clara no ato da venda e no próprio cupom) e o consumidor (que precisa estar atento para saber o que está contratando de fato).

Cabe destacar que, nesse caso, a autora se refere, claramente, à responsabilidade dos sujeitos da relação no tocante aos termos da oferta anunciada pelos fornecedores (site de compras e estabelecimento conveniado). Em relação ao consumidor não há, propriamente, responsabilidade, pois não há qualquer dever jurídico que lhe imponha tal ônus, pois, obviamente, qualquer desatenção de sua parte importará somente em prejuízo seu, por fato próprio, com o qual o site e o estabelecimento não guardam relação.

Contudo, nada impede que analisemos a responsabilidade das partes envolvidas em uma compra coletiva, caso ocorra chargeback. É o que passamos a detalhar.

Veja-se, inicialmente, a posição do consumidor nessa cadeia de eventos.

Caso seja imputada ao consumidor a responsabilidade por uma compra concretizada por meio de fraude praticada por terceiro, decorrente de furto, roubo ou qualquer forma de apoderamento dos dados do cartão de propriedade do consumidor etc., o consumidor eventualmente cobrado ou que tiver quitado o que não devia terá, como dissemos, direito à repetição do indébito, nos exatos termos do parágrafo único do art. 42 do CDC.

A natureza jurídica dessa medida, como aponta a melhor doutrina, é de caráter sancionatório, isto é, é uma espécie de “pena” aplicada ao fornecedor que age canhestramente, cobrando o consumidor por algo que não é devido ou cobrando-o em excesso, isto é, mais do que ele efetivamente deve. Portanto, é medida de caráter pedagógico, imposta ao fornecedor com o escopo de educá-lo para que não volte a atuar da mesma forma.

No caso de má-fé do consumidor, isto é, naquelas hipóteses em que este comunica falsamente uma fraude, diz não reconhecer uma compra que ele mesmo efetuou etc., e em decorrência disso tem os valores indevidamente estornados para o seu cartão, certamente poderá ser punido, inclusive criminalmente, a depender do caso. Na órbita civil, deverá ser condenado a ressarcir o fornecedor lesado por sua prática, sendo que, nesse caso, a medida tem caráter indenizatório, e não sancionatório, já que visa restituir ao lesado o status quo ante, indenizando-o verdadeiramente.

Analise-se, agora, com base nos interessantes questionamentos articulados pelo professor Pablo Stolze Gagliano, no editorial referido no início de nossas explanações, a responsabilidade dos fornecedores envolvidos nessa complexa relação. O eminente civilista indaga:

Em caso de cancelamento da compra, pelo não reconhecimento do consumidor, seria juridicamente possível a repartição dos riscos e dos prejuízos entre o lojista e administradora de cartões de crédito ou débito, em virtude da própria atividade lucrativa que exercem no mercado de venda de produtos a distância? Afigurar-se-ia, em tese, viável que o lojista não arcasse sozinho com o risco e o ônus do chargeback? A administradora de cartões poderia ser considerada co-responsável pela venda frustrada?

Para responder a estas questões, antes é necessário identificar as relações envolvidas em um contrato de cartão de crédito. André Luiz Santa Cruz Ramos nos explica o que é um contrato de cartão de crédito, bem como as relações que o cercam:

Trata-se de contato por meio do qual uma instituição financeira, a operadora do cartão, permite aos seus clientes a compra de bens e serviços em estabelecimentos comerciais cadastrados, que receberão os valores das compras diretamente da operadora. Esta, por sua vez, cobra dos clientes, mensalmente, o valor de todas as suas compras realizadas num determinado período. Chama-se cartão de crédito, então, o documento por meio do qual o cliente realiza a compra, apresentando-o ao estabelecimento comercial cadastrado.

Do que foi exposto, pode-se então distinguir três relações jurídicas distintas numa operação com carta de crédito: (i) a da operadora com o seu cliente; (ii) a do cliente com o estabelecimento comercial; (iii)  do esabelecimento comercial com a operadora (Direito Empresarial Esquematizado. 1ª Ed. São Paulo: Método, 2011, p. 485).   

Considerando o articulado, é possível afirmar que a relação da operadora com o seu cliente, e a deste com o comerciante, são relações de consumo, portanto sujeitas às regras do Código do Consumidor, e por isso submetem-se à regra da responsabilidade civil objetiva, agasalhada do sistema consumerista. Assim, perante o consumidor, tanto o comerciante quanto a administradora do cartão responderão, independentemente da existência de culpa por eventuais danos causados ao consumidor em razão de chargeback, pois ambos se enquadram no conceito de fornecedor (art. 3º do CDC).

Assim, respondendo à primeira indagação, é “juridicamente possível a repartição dos riscos e dos prejuízos entre o lojista e administradora de cartões de crédito ou débito, em virtude da própria atividade lucrativa que exercem no mercado de venda de produtos a distância”, uma vez que estaremos de vício na prestação do serviço, sujeito à regra do art. 19 do CDC (salvo comprovada má-fé do próprio consumidor, obviamente, o que caracteriza sua culpa exclusiva), “embora seja mais comum a verificação de um único fornecedor na cadeia de consumo, no caso o que prestou o serviço”, como nos informa Leonardo de Medeiros Garcia (Direito do Consumidor: código comentado e jurisprudência. 7ª ed. rev. amp. e atual. Niterói: Impetus, 2011, p. 179).

Destarte, a responsabilidade por vício do serviço é solidária e objetiva, fundada na teoria do risco do empreendimento. Se o comerciante adere às vendas por meio de cartão de crédito e débito, já sabendo que atualmente o volume de fraudes na utilização desses cartões é grande, sujeitar-se-á aos riscos inerentes.

Isto posto, perante o consumidor, haverá repartição dos riscos, devendo tanto a operadora de cartões quanto o comerciante, responderem.

Passando ao segundo questionamento, observe-se que a relação entre o comerciante e a operadora de cartões é eminentemente empresarial, ou seja, uma relação entre sujeitos que se encontra em situação de igualdade.

Num primeiro momento, é possível afirmar que, por estarem em pé de igualdade, o comerciante e a operadora de cartão de crédito gozam de plena liberdade de contratar (faculdade de realizar ou não o negócio) e de liberdade contratual (relacionada ao conteúdo da avença), em homenagem ao princípio da autonomia da vontade.

Assim, por serem, em tese, iguais, e embora o contrato firmado entre o comerciante e a operadora de cartões seja de adesão, não se vislumbra a vulnerabilidade que caracteriza o consumidor. Como informa o citado comercialista, “no âmbito do direito empresarial, o norte interpretativo deve ser sempre, na nossa modesta opinião, a autonomia da vontade das partes. Caso contrário, o que se instaura é a insegurança jurídica, que se manifesta especificamente nas atividades econômicas como um obstáculo ao desenvolvimento” (Op. cit., pág. 435).

Destarte, nesse primeiro momento, sendo de adesão o contrato empresarial, embora presente, em tese, a autonomia da vontade, dificilmente o comerciante conseguirá discutir os termos envolvendo os riscos de chargeback. Sabe-se que contratos dessa natureza são leoninos, por praticamente só conferir vantagens às operadoras de cartão, e ônus aos comerciantes; por isso, penso que o correto seria o compartilhamento de riscos entre esses dois sujeitos. Contudo, dificilmente isso ocorrerá. Certamente, as operadores de cartão de crédito não passarão a assumir um risco que as tirará da zona de conforto em que se encontram, a não ser que os comerciantes deixem de adotar essa modalidade de pagamento, o que, talvez, faria com que as operadoras de cartão repensassem seu modelo de compartilhamento de riscos.

Contudo, tal atitude por parte dos comerciantes pode significar o insucesso do empreendimento, já que o volume de contratações por meio de cartão de crédito é bastante grande. O mais interessante é que, da mesma forma, igual insucesso poderá experimentar, já que o volume de fraudes também é considerável, podendo levar ao fechamento do negócio.

Concluindo, possíveis soluções para a diminuição do chargeback são apontadas por especialistas em e-commerce. Uma delas seria o uso de intermediários de pagamento como os conhecidos Pagseguro (UOL), Pagamento Digital, Mercadopago (Mercado Livre), pois, nesse caso, a venda seria garantida. Todavia, essa medida importa em aumento de custos, que serão repassados ao consumidor pelo comerciante. Outra alternativa seria a contratação de uma empresa especializada em análise de risco, atitude adotada por grandes empresas atualmente.

4. O princípio da boa-fé e a obrigatoriedade de cumprimento da oferta em caso de chargeback

Nada obstante o dever geral de boa-fé, a ser observado nos negócios jurídicos, em julho de 2011, a Câmara Brasileira de Comércio eletrônico aprovou o denominado Código de Ética do Comitê de Compras Coletivas da camara-e.net. Segundo consta do respectivo texto, o documento define as regras básicas de conduta dos sites de compras coletivas e dos fornecedores parceiros, sendo que, no art. 3º do código, está expresso o dever imposto aos associados no sentido de proceder com boa-fé nos relacionamentos comerciais travados no contexto das compras coletivas. Vejamos o que diz o preceito:

Artigo 3º - Todo associado deve se conduzir de acordo com os  preceitos de moral, conduta e responsabilidade, obedecendo a Constituição Federal do Brasil, a legislação nacional vigente, em especial ao Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da camara-e.net, o Regimento Interno do Comitê de Compras Coletivas e o presente Código de Ética, resguardando e defendendo o Sistema de Compras Coletivas, através do conceito de parceria  e boa-fé inerentes aos relacionamentos comerciais.

Adiante, no art. 9º, há regra dispondo sobre a conduta dos sites de compras coletivas no sentido de se esforçarem ao máximo para que seus parceiros cumpram as ofertas veiculadas. Eis o teor do dispositivo:

Artigo 9º - Os SITES se comprometem a envidar seus melhores esforços para que seus parceiros cumpram com o objeto da oferta, em seus exatos termos, para que os usuários possam usufruir de forma integral o serviço e/ou produto adquirido.

Chama atenção a seguinte questão: em caso de chargeback, estará o fornecedor participante do sistema de compras coletivas obrigado a cumprir a oferta? A resposta a essa indagação dependerá da análise de duas situações distintas que veremos adiante.

Como visto no tópico anterior, somos da opinião de que, ocorrendo chargeback, os riscos entre o comerciante e a administradora de cartões de crédito ou débito devem ser repartidos entre esses dois sujeitos, uma vez que atuam no mercado de consumo assumindo os riscos do empreendimento, sendo que, nesse universo de riscos que envolvem a empresa, está o de suportar eventuais fraudes cometidas por terceiros, em razão da fragilidade que caracteriza o sistema de contratação mais informal, em que se exige tão somente, via de regra, que o titular do cartão informe seu número e código de segurança.

No microssistema consumerista, a oferta está disciplinada na Seção II, do Capítulo V, do CDC, a qual é inaugurada pelo art. 30, que assim dispõe:

Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.

Adiante, no art. 35, o Código de Defesa do Consumidor arrola as alternativas do consumidor nos casos em que o fornecedor se recusa a cumprir a oferta. Vejamos quais são elas:

Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha:

I - exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade;

II - aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente;

III - rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos.

Anote-se, desde já, que as hipóteses etiquetadas nos incisos do dispositivo em comento são de livre escolha do consumidor; são direitos potestativos, eis que, feita a escolha pelo consumidor, ao fornecedor restará tão somente a ela se sujeitar.

Pois bem, o sistema de compras coletivas estabelece, basicamente, que a oferta do produto ou serviço somente se efetiva quando o número de aquisições efetuadas através do website for igual ou superior ao número mínimo de aquisições pré-estabelecido para cada oferta de produto ou serviço.

Percebe-se, claramente, que os fornecedores fixam uma condição de eficácia do negócio jurídico (art. 121 do CC/2002). Assim, a oferta somente será exigível caso haja a aderência de um número mínimo de consumidores pré estabelecido pelo fornecedor à oferta.

Da leitura dos termos de uso dos principais sites de compras coletivas é possível verificar que estes não tratam, expressamente, das causas do não atingimento desse número mínimo de consumidores. Simplesmente dizem que caso a oferta não seja validada, os usuários que manifestaram interesse em adquirir o produto ou serviço serão reembolsados automaticamente, e sem incorrer em qualquer custo, no exato valor do pagamento realizado.

Nesse contexto, pode-se visualizar duas situações distintas, e de notável importância prática: (i) simples desistência de um ou alguns consumidores em prosseguir na contratação; (ii) ocorrência de chargeback.

Na primeira situação, entendemos que não haverá, de fato, a possibilidade de os consumidores que já haviam aderido à oferta exigir-lhe o cumprimento forçado, pois estes já sabiam da condição estabelecida pelos fornecedores, no sentido do cancelamento da oferta por insuficiência de consumidores aderentes. Nesse caso, sequer haverá a emissão dos cupons, uma vez que o numerário necessário a viabilizar o preço mais baixo por parte do fornecedor não será alcançado. Assim, a oferta poderá ser legitimamente cancelada.

Contudo, no caso de chargeback, a depender do caso, pensamos que os consumidores remanescentes poderão exigir o cumprimento forçado da oferta, nos termos do inciso I do art. 35 do CDC, pois há que se respeitar a boa-fé desses consumidores, pois, reafirmamos, o chargeback faz parte dos riscos do empreendimento do fornecedor. Vejamos detalhadamente cada uma das situações.

Os cupons relativos às ofertas veiculadas pelos sites de compras coletivas somente são emitidos após a validação da respectiva oferta, isto é, após a confirmação do pagamento do preço pelos usuários aderentes. Contudo, pode ocorrer de um ou alguns consumidores que aderiram à oferta simplesmente desistirem de usufruir do produto ou serviço ofertado. Isto é, o consumidor adere à oferta, paga o respectivo preço, mas simplesmente não chega a consumir o bem contratado, seja produto ou serviço. Nessa situação, nenhuma responsabilidade recairá sobre o fornecedor, pois este terá atingido o seu objetivo, que é o de reunir o numerário necessário para que tenha condições de oferecer o produto ou serviço a preço mais baixo, dentro do que vir a propor na oferta. Sendo assim, para o fornecedor não interessa se o consumidor vai, efetivamente, consumir o bem adquirido. Não haverá, portanto, reclamação do consumidor no sentido de que lhe seja estornado o valor investido na oferta. O consumidor simplesmente perderá o valor pago.

Todavia, situações distintas podem ser observadas no caso de chargeback, pois nesse caso haverá, necessariamente, o estorno de valores ao consumidor, uma vez que, como visto no conceito de chargeback, o consumidor ou a própria administradora do cartão de crédito ou débito eventualmente usado na aquisição fraudulenta estará exercitando um direito legítimo, fundado em relevante razão de direito, ao cancelar a contratação, o que, inexoravelmente, poderá resultar em duas situações distintas: (i) não se alcançar o número mínimo de aderentes antes de finalizada a oferta; (ii) o não  atingimento, depois de finalizada a oferta, do número mínimo de consumidores necessários à exigibilidade da oferta. Essas duas hipóteses geram consequências jurídicas distintas, como veremos.

No primeiro caso, a consequência será a mesma prevista nos termos de uso dos sites de compras coletivas, ou seja, a oferta será simplesmente cancelada, pois, de alguma forma, não se terá atingido o quorum necessário a viabilizar a sua manutenção e o seu cumprimento. Nessa situação não há dificuldades em concluir que nenhuma obrigação será imposta ao fornecedor no sentido de cumprir a oferta, que será simplesmente cancelada.

No entanto, a situação muda se, em momento posterior à emissão dos cupons, isto é, depois de finalizada a oferta, o fornecedor for surpreendido pelo cancelamento de uma compra por chargeback. Nessa hipótese, diversos consumidores já estarão de posse do cupom adquirido, mas será que poderão ser despojados do direito de usufruí-lo?

Note-se que, na prática, após o cancelamento e consequente estorno do valor debitado no cartão de titularidade do consumidor, o fornecedor não terá efetivamente reunido o valor que tornaria viável o cumprimento da oferta, nos termos em que foi veiculada, pois, mesmo após a emissão dos cupons será obrigado a estornar o valor cobrado indevidamente ao consumidor que teve seu cartão utilizado por terceiros. Contudo, pensamos que, nessa situação, deverá o fornecedor manter a oferta em relação aos demais consumidores, eis que já estarão de posse do respectivo cupom, portanto nutridos da legítima expectativa de ter a oferta cumprida. Em resumo, são consumidores de boa-fé, e com base nesse mesmo princípio é que o fornecedor, embora também tenha sido lesado, deverá se orientar, pois, repita-se, desenvolve empresa assumindo os riscos do empreendimento.

O tema não se esgota aqui; é um assunto novo, atual, complexo e instigante. Como afirmado pelo professor Pablo Stolze no editorial citado neste texto, “ainda não temos repostas consolidadas na jurisprudência. Mas o tema, em respeito aos próprios empresários e aos consumidores, merece ser trazido à luz dos debates acadêmicos”.


Notas e Referências:

[1] O que é chargeback? Revista Jurídica Consulex nº 363 – março/2012, p. 48-51.

[2] Disponível em: http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/63/compras-coletivas-aspectos-legais-direitos-e-deveres-das-partes-225438-1.asp. Acesso em 14/05/2012.

GAGLIANO, Pablo Stolze. Chargeback? Disponível em: http://pablostolze.ning.com/. Acesso em: 17/01/2012

GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor: Código Comentado e Jurisprudência. 7ª ed. Niterói: Impetus, 2011.

GAVIOLI, Gilherme.  Compra Coletiva. Disponível em: http://ecommercenews.com.br/glossario/o-que-e-compra-coletiva. Acesso em 12/04/2012

GUGLINSKI, Vitor Vilela.  O que é chargeback? Revista Jurídica Consulex nº 363 – março/2012.

NERY JÚNIOR, Nelson; WATANABE, Kazuo; GRINOVER, Ada Pelegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. São Paulo: Forense Universitária, 2004.

PINHEIRO, Patrícia Peck. Compras coletivas: Aspectos legais, direitos e deveres das partes para que a compra seja bem-sucedida. Disponível em: http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/63/compras-coletivas-aspectos-legais-direitos-e-deveres-das-partes-225438-1.asp. Acesso em 14/05/2012.

RAMOS, André Luiz Santa Cruz.  Direito Empresarial Esquematizado. 1ª ed. São Paulo: Método, 2011


Vitor Vilela Guglinski. Vitor Vilela Guglinski é Advogado. Pós-graduado com especialização em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Ex-assessor jurídico da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora (MG). Autor colaborador dos principais periódicos jurídicos especializados do país. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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