O caos do sistema carcerário é também responsabilidade do Poder Judiciário e do Ministério Público

27/01/2017

Por João Paulo Orsini Martinelli – 27/01/2017

As recentes rebeliões ocorridas em alguns presídios brasileiros escancararam algo que já era de conhecimento de quem tem um mínimo de preocupação com a execução penal: o Estado não tem controle sobre os estabelecimentos prisionais. Aqueles não pensam com o fígado lamentam a carnificina em que dezenas de presidiários morreram, num verdadeiro espetáculo de horror. Para aqueles que já saíram da pré-história, episódios como esses são lamentáveis, considerando que a segurança pública e a execução penal são atividades típicas da Administração Pública, responsável pela custódia de todos os presos do país, sejam os condenados, sejam os que ainda aguardam julgamento. A responsabilidade pelo caos do sistema carcerário é de todos os poderes e envolvidos no sistema de justiça: Poder Executivo, Poder Legislativo, Poder Judiciário e Ministério Público.

Em entrevista ao portal Jota[1], o corregedor-geral de Justiça, João Otávio de Noronha, afirmou: “A situação não envolve juízes e sim gestão dos presídios, que é um problema do Executivo e não do Judiciário”. Com todo respeito ao ministro do STJ, sua opinião é falaciosa. Em pelo menos três aspectos podemos apontar a parcela de responsabilidade do Poder Judiciário, e também do Ministério Público, em três aspectos: (a) a demora no julgamento; (b) o excesso de aprisionamento; (c) ausência de fiscalização dos estabelecimentos prisionais. É latente que há omissão e displicência de todos os envolvidos e a pior e mais repugnante estratégia é tirar o corpo fora em vez de fazer uma autoavaliação e corrigir os próprios erros.

Prevalece no ordenamento jurídico brasileiro, orientado pelos valores constitucionais, o princípio da presunção de inocência. Apesar da distorcida visão predominante no STF, ninguém poderá ser preso antes de condenação definitiva, salvo em casos excepcionais em que o réu não possa responder ao processo em liberdade. Nosso Código de Processo Penal possui suas raízes num sistema ditatorial, pois sua edição se deu durante o Estado Novo, na vigência da denominada Constituição “polaca”. A partir da Carta Magna de 1988, todos os dispositivos processuais devem ser interpretados conforme a nova ordem constitucional, não se permitindo mais a mera aplicação da letra da lei. Nesse sentido, a denominação “liberdade provisória” caiu por terra e seu significado não mais se aplica. A quem ainda não foi condenado, a liberdade deve ser a regra; provisória é apenas a prisão.

No Brasil, 40% dos presos são provisórios, ou seja, ainda considerados inocentes. Segundo dados do Infopen, 60% deles aguardam por mais de 90 dias o julgamento, tempo considerado minimamente razoável para a primeira decisão. Em relação ao julgamento dos recursos, não há dados disponíveis. Em síntese, o Poder Judiciário não cumpre seu papel de julgar em tempo aceitável, infringindo dispositivos da Constituição Federal e da Convenção Americana de Direitos Humanos que preveem o direito à duração razoável do processo. Ao considerar que nem todos os réus sejam condenados, fica evidente o inchaço dos estabelecimentos prisionais pela demora nas decisões.

Ademais, há uma cultura de encarceramento enraizada tanto no Poder Judiciário quanto no Ministério Público. Inverte-se a lógico do processo acusatório, no qual a prisão provisória deveria ser exceção. Prende-se por qualquer coisa, desde uma tentativa de furto, na qual a coisa é recuperada, até graves crimes violentos. É claro que há situações em que a prisão provisória é inevitável, não obstante, em muitos casos esta é desnecessária. A própria legislação prevê as medidas cautelares alternativas à prisão, cujo cumprimento cabe ao Ministério Público. Há, também, verdadeiras ilegalidades provenientes dos próprios órgãos judiciais. No final de 2016, por determinação do Tribunal de Justiça de São Paulo, estavam proibidas as audiências de custódia durante o recesso de final de ano. Ora, uma norma editada por um tribunal não pode violar um dispositivo previsto num tratado internacional de direitos humanos, no caso, a Convenção Americana de Direitos Humanos. A audiência de custódia mostra-se importante instrumento para evitar prisões provisórias desnecessárias e a corte paulista a proibiu de maneira arbitrária.

Cabe, ainda, destacar que a Lei de Execução Penal determina que o juiz e o representante do Ministério Público responsáveis pela execução possuem obrigação de “inspecionar, mensalmente, os estabelecimentos penais, tomando providências para o adequado funcionamento e promovendo, quando for o caso, a apuração de responsabilidade” (arts. 66 e 68 da LEP). A lei obriga as autoridades citadas a fazerem a fiscalização dos estabelecimentos e tomarem as medidas necessárias para que estes estejam adequados aos preceitos legais. O preso está apenas privado de liberdade, não de dignidade. Qualquer situação que esteja em desacordo com a lei, com a Constituição Federal e com os tratados internacionais de direitos humanos deve ser objeto de ação imediata do Ministério Público e do Poder Judiciário, mesmo que isso implique atrito com os demais poderes, principalmente o Executivo.

É fato notório que os estabelecimentos prisionais estão fora do controle do Estado. A Constituição Federal atribui a execução penal ao Estado, não às facções criminosas. Aos Poderes Executivo e Legislativo soma-se à responsabilidade, por omissão, do Poder Judiciário e do Ministério Público pela ausência do poder público na administração penitenciária. Não há nada mais contrário à lei que o controle privado das prisões por grupos criminosos e, certamente, a omissão de todas as autoridades, sem exceção, contribuiu para isso. Se todos cumprissem devidamente seu papel, a realidade seria bem diferente. O próprio STF já reconheceu a legitimidade de o Poder Judiciário intervir nos casos de violação massiva de direitos fundamentais, com o uso da lei para obrigar o Poder Executivo a cumprir os preceitos para a tutela da pessoa humana. O ideal, é claro, seria cada poder exercer devidamente sua função, entretanto, quando houver falhas, o Ministério Público e o Poder Judiciário podem, e devem, exigir o cumprimento da lei.

Viver num mundo corporativista, sem enxergar os próprios defeitos, não resolve o estado caótico dos cárceres. Se cada instituição jogar a culpa nas costas de outra, a situação somente se agravará e a população, como um todo, sairá perdedora. Corporativismo tem limites e os agentes públicos não podem se esquecer de que devem prestar contas com quem banca seus salários – a sociedade. O Brasil possui excelentes leis e basta que estas sejam cumpridas para termos um sistema de justiça penal eficiente. Só haverá expectativa de melhorias para a população carcerária quando todos os envolvidos assumirem seu papel e cumprirem suas obrigações.


Notas e Referências:

[1] Disponível em <http://jota.info/justica/crise-carceraria-nao-e-questao-judiciario-diz-noronha-16012017>


João Paulo Orsini Martinelli. João Paulo Orsini Martinelli é Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre e Doutor em Direito Penal (Universidade de São Paulo), Pós-Doutor em Direitos Humanos (Universidade de Coimbra), Advogado Criminalista, Coordenador-adjunto no IBCCRIM no Rio de Janeiro. .


Imagem Ilustrativa do Post: Vistoria no presídio central - Créditos: Rodney Silva OAB/RS // Foto de: OAB/RS Seccional Rio Grande do Sul // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/oab-rs/11519721655

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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