A Associação Nacional da Advocacia Criminal (Anacrim) pediu que o Supremo Tribunal Federal reconheça a não recepção do artigo 385 do Código de Processo Penal pela Constituição de 1988, pois a possibilidade de o juiz condenar o réu em ação penal pública mesmo após o Ministério Público pugnar pela absolvição viola os princípios do devido processo legal e do contraditório.
A arguição de descumprimento de preceito fundamental foi protocolizada no último dia 29 de janeiro, assinada pelos advogados Lenio Streck, Jacinto Coutinho, James Walker (presidente da Anacrim), Marcio Berti e Victor Quintiere e distribuída ao ministro Luiz Edson Fachin.
Segundo os termos da peça inicial, o artigo 385 do Código de Processo Penal - cuja redação estabelece que “nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada” - é incompatível com o Estado Democrático de Direito e com a Constituição de 1988 que adotou, como sistema processual penal, o sistema acusatório.
Aponta a autora, que “o modelo é baseado nos princípios do contraditório, ampla defesa, devido processo legal e isonomia entre as partes. E destoa do sistema inquisitório, base do CPP, que foi outorgado em 1941, enquanto o país vivia a ditadura do Estado Novo. ”
Segundo a associação, “desde a promulgação da Constituição de 1988, a legislação processual brasileira tenta se adaptar aos preceitos do sistema acusatório. Se esse é o modelo escolhido para o país e, em um processo, o titular da ação penal pública pede a absolvição, não cabe ao juiz condenar ou reconhecer agravantes não suscitadas pela acusação, sob pena de violação ao devido processo legal.”
Para os subscritores da ação, “se o dominus litis não quer a condenação, por qual razão o juiz, que não é inquisidor, pode contrariar um pedido da parte legítima?” Para os juristas, “na estrutura acusatória, o órgão jurisdicional está para decidir casos e questões; se não há quaisquer delas (quando o Ministério Público pede a absolvição, por exemplo), ele, juiz, não tem o que decidir. O impulso inicial — sempre na estrutura acusatória — não é suficiente para ele, Juiz, decidir quando não há questão ou mesmo o caso penal. Tanto é que se o Ministério Público quiser (e for permitido pela legislação) pode retirar a acusação e o processo deve ser arquivado.”
Como consta da petição inicial, é assim que funciona nos processos decorrentes da ação penal de iniciativa privada e no processo civil, quando o processo é extinto após a desistência do autor: “destarte, se o juiz condena mesmo que o Ministério Público tenha requerido a absolvição, ele o faz na condição de inquisidor, ferindo o sistema acusatório, o devido processo legal e o contraditório.”
Reportando-se ao direito comparado, a Anacrim ressalta que em países como Itália, Espanha, Chile e Argentina, o juiz se vincula à opinião do Ministério Público e mesmo nos Estados Unidos, onde há um “criticável uso exacerbado da justiça penal negociada, o titular da ação tem o direito de retirar a acusação, e o magistrado se submete a tal ato.”
A entidade afirma que manter o artigo 385 do Código de Processo Penal em vigor significa aceitar “a possibilidade de o Estado ser parcial, o que é inadmissível, registrando-se, ademais, que admitir que um juiz possa condenar quando a acusação pede a absolvição é admitir a participação no processo de um juiz que baseia sua decisão para além dos limites deduzidos pela parte, com fundamento em convicções próprias como exteriorização de sua vontade. Logo, por este lado também há violação do sistema acusatório, que não permite que o juiz decida para além daquilo que é pedido.”
No pedido inicial, lembra-se que a Suprema Corte, ao declarar a constitucionalidade do juiz das garantias (ADIs 6.928, 6.300 e 6.305), validou o artigo 3º-A do Código de Processo Penal, que tem a seguinte redação: “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.
“Ora, isso tem consequências jurídicas. Se é acusatório, não pode haver resquícios inquisitórios. Esta premissa fixada vincula o sistema como um todo. Não se pode esquecer que decisões em controle concentrado possuem efeito vinculante. Assim, se o STF aceita a constitucionalidade do artigo 3º-A do CPP, todos os dispositivos inquisitoriais que remanescem no CPP devem ser adaptados. É o caso do artigo 385, que deve ser expungido, para não funcionar como antípoda do princípio-sistema acusatório”, argumenta a Anacrim.[1]
Sem dúvidas é chegada a hora de, finalmente, decidir-se pela incompatibilidade do artigo 385, pois, induvidosamente, viola o sistema acusatório.[2]
Com efeito, o juiz não pode atuar ex officio e condenar o réu quando o Ministério Público entender que não foram coligidas provas suficientes para uma condenação, haja vista o sistema processual penal (acusatório) acolhido pela Constituição Federal de 1988, que não recepcionou o art. 385 do Código de Processo Penal, razão pela qual um pedido absolutório formulado pelo Ministério Público nas alegações finais impede a prolação de uma sentença condenatória.
A propósito, vejamos a lição de Paulo de Souza Queiroz: “De acordo com o artigo 385 do CPP, o juiz pode condenar ainda que o Ministério Público proponha a absolvição. Temos, porém, esse dispositivo não foi recepcionado pela Constituição de 1988, a qual adotou, ainda que de modo sumário, o sistema acusatório de processo penal, que distingue, claramente, as funções de acusar, defender e julgar (actum trium personarum), razão pela qual compete ao Ministério Público, como regra, e ao ofendido, como exceção, promover a ação penal pública, na forma da lei (CF, art. 129, I, art. 5°, LIX). (...) Em suma, o artigo 385 do CPP só faz sentido num sistema inquisitório ou tendencialmente inquisitório, próprio de modelos autoritários de processo penal (no caso, ditadura Vargas), não num sistema de tipo acusatório, tampouco acusatório-garantista-democrático de processo penal, que atribui a órgãos distintos e independentes as funções de acusar, defender e julgar, e que prima, ou deve primar, pela imparcialidade dos julgamentos, como garantia fundamental dos acusados, essencial à realização do due process of law, formal e substancial.”[3]
Ora, se o Ministério Público, titular da ação penal, não está mais acusando, pois entendeu no sentido da absolvição do réu, não cabe ao magistrado assumir a posição de órgão acusador, violando a Constituição Federal (art. 129, I) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8º., nº 1), e condenar ou pronunciar o réu, pois incompatível com o nosso sistema processual.
Como se sabe, o sistema acusatório é o que melhor encontra respaldo em uma democracia, pois distingue perfeitamente as três funções precípuas em uma ação penal, a saber: o julgador, o acusador e a defesa. Tais sujeitos processuais devem estar absolutamente separados (no que diz respeito às respectivas atribuições e competência), de forma que o julgador não acuse, nem defenda (preservando a sua necessária imparcialidade), o acusador não julgue e o defensor cumpra a sua missão constitucional de exercer a chamada defesa técnica.[4]
Observa-se que no sistema acusatório estão perfeitamente definidas as funções de acusar, de defender e a de julgar (mas não somente isso), sendo vedado ao Juiz proceder como órgão persecutório e, principalmente, ter a gestão da prova. É conhecido o princípio do ne procedat judex ex officio, verdadeiro dogma do sistema acusatório.
A propósito, é de José Frederico Marques esta observação: “A titularidade da pretensão punitiva pertence ao Estado, representado pelo Ministério Público, e não ao juiz, órgão estatal, tão somente, da aplicação imparcial da lei para dirimir os conflitos entre o jus puniendi e a liberdade do réu. Não há, em nosso processo penal, a figura do juiz inquisitivo. Separadas estão, no Direito pátrio, a função de acusar e a função jurisdicional. O juiz exerce o poder de julgar e as funções inerentes à atividade jurisdicional: atribuições persecutórias, ele as tem muito restritas, e assim mesmo confinadas ao campo da notitia criminis. No que tange com a ação penal e à função de acusar, sua atividade é praticamente nula, visto que ambas foram adjudicadas ao Ministério Público.”[5]
Tratando da impossibilidade de o juiz condenar quando o Ministério Público opina pela absolvição, José Carrazzoni Jr. assevera que se “equivocam aqueles que dão razão à aplicação do artigo 385 do Código de Processo Penal contextualmente de matriz fascista. Ora, bem se sabe que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 firmou como sistema processual o de cunho acusatório. Assim, se torna inadmissível consoante o artigo 129, inciso I da CF, admitir que o julgador acuse. Considerando-se assim, que nosso processo penal se erige pelo sistema acusatório, mormente o amparo constitucional, que faz o reparte das funções de acusador e julgador, colocando em xeque o positivismo do diploma dos ritos penais. O juiz do processo penal (que queremos), inserido no Estado Democrático de Direito, tem na sua atuação, não uma visão politizada, mas voltada para o acordo constitucional”.[6]
Por seu turno, e para concluir, veja-se a lição de Aury Lopes Jr.: “o artigo 385 do CPP vem sendo há décadas aplicado sem maior reflexão e, o que é mais grave, contribuindo para a manutenção da cultura inquisitória e a desconsideração do objeto do processo penal, um tema árido, pouco discutido, mas fundamental.”[7]
Notas e referências
[1] Para ler a petição inicial, clique aqui: https://www.conjur.com.br/2024-jan-29/stf-julgara-se-juiz-pode-condenar-mesmo-apos-pedido-de-absolvicao-do-mp/. Acesso em 29 de janeiro de 2024.
[2] Como Procurador de Justiça sempre defendi nos pareceres de segundo grau a incompatibilidade do artigo 385 com o sistema acusatório e, consequentemente, com a Constituição Federal.
[3] QUEIROZ, Paulo de Souza. “Pode o juiz condenar sem que haja pedido de condenação?” Disponível em: https://www.pauloqueiroz.net/pode-o-juiz-condenar-sem-que-haja-pedido-de-condenacao/#:~:text=Condenar%20sem%20pedido%20de%20condena%C3%A7%C3%A3o,a%20defesa%20e%20a%20senten%C3%A7a. Acesso em dia 16 de julho de 2020.
[4] Como se sabe, o defensor exerce a chamada defesa técnica, específica, profissional ou processual, que exige a capacidade postulatória e o conhecimento técnico. O acusado, por sua vez, exercita ao longo do processo (quando, por exemplo, é interrogado) a denominada autodefesa ou defesa material ou genérica. Ambas, juntas, compõem a ampla defesa.
[5] MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Rio de Janeiro: Forense, p. 64.
[6] CARRAZONI JR., José. “Sobre a impossibilidade de o juiz condenar quando o Ministério Público opina pela absolvição: mais uma do embate, positivismo versus constitucionalismo”. Disponível em: https://arquivo.ibccrim.org.br/artigo/8555-Artigo-Sobre-a-impossibilidade-de-o-juiz-condenar-quando-o-Ministerio-Publico-opina-pela-absolvicao-mais-uma-do-embate-positivismo-versus-constitucionalismo. Acesso em 31 de março de 2006.
[7] LOPES JR., Aury. “Por que o juiz não pode condenar quando o Ministério Público pedir a absolvição?” Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-dez-05/limite-penal-juiz-nao-condenar-quando-mp-pedir-absolvicao. Acesso em dia 30 de janeiro de 2017.
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