O art. 489 do NCPC e o pilar da fundamentação

15/08/2016

Por Quitéria Péres - 15/08/2016

O dever de fundamentação das decisões judiciais não traduz qualquer novidade, sobretudo porque está previsto na Constituição Federal (art. 93, inc. IX), porém tem suscitado discussões em razão da regulamentação conferida pelo art. 489 do NCPC, especialmente em seu §1º. Sinceramente, não vejo razão para qualquer celeuma.

Afinal, a fundamentação da decisão judicial constitui condição inerente ao devido processo legal, o qual não pode ser “devido” se a parte não compreender as razões pelas quais sua pretensão ou defesa, submetida a julgamento pelo órgão competente, fora acolhida ou rejeitada. Isso é bem compreendido por todos, advogados e juízes. Pois bem. Firmada esta premissa, entendo que a exteriorização das razões que levaram o julgador a formar sua convicção, num ou noutro sentido, culmina por estampar nítido dever de lealdade que deriva, por decorrência lógica, do princípio do contraditório, sendo pressuposto ao exercício do duplo grau de jurisdição.

De fato, ampliando o olhar ao processo como um todo, especialmente sob o prisma da atuação de cada operador do Direito, percebe-se que tal transparência é exigida ao longo de toda a sua tramitação, a iniciar pela elaboração da petição inicial. Nela, deverá o Advogado indicar claramente os fatos e os fundamentos jurídicos, bem como o pedido com as suas especificações (NCPC, art. 319, in. III e IV). Ou seja, lhe caberá bem delinear os contornos da causa de pedir que motivou a formulação daquela pretensão como forma de permitir que a parte adversa possa promover sua defesa e, assim, o processo reúna condições para se desenvolver validamente. Com isso, respeitar-se-á a salutar postura dialética em relação aos fatos discutidos, à luz da prova produzida, viabilizando-se, após, a aplicação do Direito ao caso concreto. O mesmo dever de transparência, em prol da melhor qualidade da prestação jurisdicional, exige que, ao determinar eventual emenda da exordial, o juiz desde logo indique com precisão o que deve ser corrigido ou completado (NCPC, art. 321). Nesta mesma linha, ao formular sua defesa, deverá o réu alegar na contestação toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir (NCPC, art. 336).

Tais preceitos dão sustentação às garantias processuais cuja observância assegurará a qualidade da tutela jurisdicional a ser prestada. Bem por isso, o novo Código de Processo Civil dedicou especial atenção ao dever de fundamentação das decisões judiciais, daí porque, após apontar os elementos essenciais da sentença (a saber: o relatório, os fundamentos e o dispositivo), fez constar a seguinte regulamentação em seu art. 489: “(...) § 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. (...)”.

Apesar de meticulosa tal enumeração, capaz de impressionar o intérprete numa primeira leitura, tem-se em suas exigências nada além daquilo que sempre constituiu o dever de bem fundamentar. Mais que apontar a direção do julgamento, o ato decisório deve permitir a compreensão, pelo leitor (quiçá o seja pelo próprio jurisdicionado, seu legítimo destinatário), das razões que compuseram o processo de formação da convicção do juiz (donde se depreende, por conseguinte, que nenhuma que tenha influído pode ser ocultada). Não por outra razão, para ser considerada validamente fundamentada, a decisão deverá enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo que, em tese, seriam capazes de infirmar a conclusão adotada pelo julgador. Vale lembrar que infirmar significa invalidar, eliminar, afastar a tese então sustentada por uma das partes. Ou seja, se configurada a importância do argumento (a ponto de admitir que, se acolhido fosse, seria capaz de modificar a direção do julgamento), sobre ele não poderá o juiz silenciar, incumbindo-lhe articular, no desenvolvimento de sua fundamentação, as razões pelas quais o rejeitou. Prestigia-se, assim, máxima lealdade também nesta via, a processual, que, como em todo relacionamento, é de mão dupla e por isso exige boa comunicabilidade, sem a qual não se pode esperar compreensão, base da harmonia sob todos os aspectos, jurídicos e sociais. Por via lógica, referido dever de fundamentação não precisa, nem deve, contemplar eventual argumento que se afigure desimportante processualmente (referindo-me, é claro, àquele que, nem em tese, seria capaz de impactar a conclusão judicialmente adotada), o que pode ser facilmente retratado na própria decisão.

A propósito, decisão recente (após a vigência do NCPC) prolatada pelo Ministro Og Fernandes, do e. Superior Tribunal de Justiça, em sede de Embargos de Declaração, assim foi ementada: PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ART. 1.022 DO CPC. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO, OBSCURIDADE, ERRO MATERIAL. AUSÊNCIA. 1. Os embargos de declaração, conforme dispõe o art. 1.022 do CPC, destinam-se a suprir omissão, afastar obscuridade, eliminar contradição ou corrigir erro material existente no julgado, o que não ocorre na hipótese em apreço. 2. Argumenta-se que as questões levantadas no agravo denegado, capazes, em tese, de infirmar a conclusão adotada monocraticamente, não foram analisadas pelo acórdão embargado (art. 489 do CPC/2015). Entende-se, ainda, que o art. 1.021, § 3º, do CPC/2015 veda ao relator limitar-se à reprodução dos fundamentos da decisão agravada para julgar improcedente o agravo interno. 3. O julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão. A prescrição trazida pelo art. 489 do CPC/2015 veio confirmar a jurisprudência já sedimentada pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, sendo dever do julgador apenas enfrentar as questões capazes de infirmar a conclusão adotada na decisão recorrida. 4.Embargos de declaração rejeitados. (EDcl no AgRg nos EREsp 1483155/BA, Rel. Ministro OG FERNANDES, CORTE ESPECIAL, julgado em 15/06/2016, DJe 03/08/2016).

Em que pese, numa apressada análise, se possa pensar que tal decisão aparenta flexibilizar o rigor da abrangência exigida em relação à fundamentação (NCPC, art. 459, §1º), atenta leitura, especialmente das razões que constam no acórdão respectivo, denotam que tal não ocorreu. Isso porque, como constou na parte final do item 3 da referida ementa, é dever do julgador enfrentar as questões capazes de infirmar a conclusão adotada na decisão recorrida. Não por outra razão, no teor do acórdão respectivo constou ponderação específica acerca da divergência observada entre os substratos fáticos daquele caso e os acórdãos paradigmas invocados, daí decorrendo a conclusão firmada no sentido de que “negou-se provimento ao agravo regimental em razão da não semelhança entre as situações fáticas em que a regra processual está sendo aplicada, nos acórdãos paradigmas e recorrido”.

Em prestígio ao princípio da eficiência (NCPC, art. 8º), ao presidir a condução do processo, o juiz não deve permitir a prática de atos inúteis ou desnecessários. Logo, não deve também fazê-lo por ocasião da prolação de uma decisão, premissa com base na qual, por amor à coerência, se dispensa o enfrentamento, na fundamentação, dos argumentos que, por serem irrelevantes ou impertinentes (articulados de modo não correlacionado às teses invocadas como causa de pedir, pelo autor, ou como defesa, pelo réu), sequer teriam o condão de modificar a lógica do raciocínio desenvolvido na decisão. Contudo, um alerta se faz necessário: para identificar a relevância jurídica da referida espécie de argumento (se relevante ou não), há que se ponderar, ainda que em tese, sobre o resultado que acarretaria ao julgamento se acolhido fosse.

Conclui-se, portanto, que todos os argumentos relevantes devem ser enfrentados no âmbito da fundamentação, assim entendidos aqueles cujo acolhimento seja capaz (ou seria, se o fosse) de impactar o resultado do julgamento. Logo, ainda que já tenha formado sua convicção, fundamentando-a com os argumentos reputados (a seu ver) suficientes para sustentar sua conclusão, deve o juiz abordar também os demais, desde que considerados relevantes, justamente para desvelar as razões pelas quais não os acolheu. Afinal, não se pode negar que a transparência das razões de decidir impacta diretamente no exercício do duplo grau de jurisdição, pois, somente conhecendo as razões pelas quais determinado argumento não foi acolhido, é que a parte prejudicada conseguirá manifestar sua insurgência, sobretudo porque lhe é atribuído o ônus de articular as razões recursais respectivas. Esta premissa nos concita a lembrar que a decisão de primeiro grau necessariamente não será a última, já que o julgado pode ser reformado na instância recursal, sendo esta razão igualmente importante para justificar a apreciação, na fundamentação da decisão, também dos argumentos que, embora rejeitados, não perdem sua relevância (porquanto sabido que se, em tese, fossem acolhidos, poderiam conduzir o julgamento a outra direção). A propósito, interposto eventual recurso, justamente estes últimos argumentos serão enfatizados pelo recorrente, ao passo em todos relacionados à matéria recorrida são submetidos ao crivo do novo julgamento e não apenas aqueles acolhidos e por isso adotados na decisão prolatada na inferior instância.

Contudo, como já salientado, não há qualquer novidade nisso, pois, embora não houvesse antes previsão legislativa com tal detalhamento, estes sempre foram os parâmetros da fundamentação qualificada esperada num julgamento. Não são diferentes os parâmetros esperados por parte do Advogado em sua tarefa de articular suas razões, seja para respaldar uma pretensão, seja para impugná-la. Em assim agindo, os operadores do Direito, cada qual em seu papel, prestigiarão o bom encadeamento processual, pois a clareza e transparência dos argumentos são a base para o contraditório e este o é para a ampla defesa, ao tempo em que ambos são os principais pilares sobre os quais se edifica o tão decantado devido processo legal, pressuposto do próprio Estado Democrático de Direito.


quiteria-peresQuitéria Tamanini Vieira Péres é Graduada em Direito (FURB - Universidade Regional de Blumenau). Concluiu os Cursos de Pós-Graduação “lato sensu” em: (1) Direito Civil (UNIVALI); (2) Direito Penal e Processual Penal (FURB) e (3) Gestão e Controle no Setor Público (convênio UDESC/ESAG/TJSC). Concluiu o Curso de Mestrado, área de concentração: instituições jurídico-políticas (UFSC). Ingressou na Magistratura do Estado de Santa Catarina em 1998, tendo atuado, como titular, nas comarcas de Rio do Oeste, Jaraguá do Sul, Brusque, encontrando-se atualmente lotada em Blumenau desde julho de 2009 (na 1a Vara Cível). Atualmente, é Juíza Eleitoral, respondendo pela 3ª Zona Eleitoral de Blumenau. Lecionou na FAE, FURB, UNIFEBE e UNERJ e também na Escola da Magistratura deste Estado (Capital e extensões de Joinville, Blumenau, Rio do Sul, Itajaí, Tubarão, Lages e Bal. Camboriú), na área de Direito Processual Civil. É professora, também, da Academia Judicial (vinculada ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina). É autora do curso online sobre Sentença Cível Descomplicada, disponível no site da Livraria Concursar (livrariaconcursar.com.br)..


Imagem Ilustrativa do Post: Arquivo próprio // Foto de: Quitéria Tamanini Vieira Péres // Sem alterações
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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