O acusado é culpado pela conduta ou por existir? Deslizamentos autoritário e trampas cognitivas

31/05/2015

 Por Alexandre Morais da Rosa e Giseli Caroline Tobler - 31/05/2015

A pergunta correta sobre culpabilidade:

A tomada de decisão pelo magistrado, diante do caso penal, na maioria das vezes, demanda reflexão sobre a culpabilidade ou não do agente. A indagação, então, seria: o acusado é culpado ou inocente em face da conduta imputada? Embora essa pergunta pareça óbvia e se confunda com o próprio objeto do processo penal, a resposta nem sempre estará em concordância com aquilo que de fato foi questionado. Aliás, esta forma de indagar está errada, ainda que seja o padrão, pois deve-se perguntar se o acusado é culpado pela conduta imputada. O julgamento é da conduta e não do acusado, sob pena de incidirmos em Direito Penal do Autor, já que a culpabilidade deveria se vincular, segundo Ferrajoli “a) que o proibido decorra de uma comissão/omissão verificável numa ação regulativa e não da subjetividade do agente; e b) que ex ante haja possibilidade desta comissão/omissão.” (aqui).

No artigo de hoje, portanto, falaremos propriamente sobre a temática referente às heurísticas, ou seja, a nossa capacidade de substituir questões difíceis por questões mais facilmente compreensíveis, mas que na maior parte do tempo não são capazes de responder satisfatoriamente a pergunta-alvo[i]. Trata-se de um desvio cognitivo facilitador da conclusão, embora tangencie, algumas vezes, a questão correta. Um deslizamento facilitador da decisão que, no fundo, não é deliberada adequadamente.

O Bacamarte Mental

A premissa das heurísticas se reporta ao que Dani Kahneman chama de bacamarte mental. Conforme já tratamos anteriormente (aqui), cabe sublinhar a influência dos já mencionados Sistemas de decisão S1 e S2, uma vez que esse fenômeno está diretamente ligado aos nossos comportamentos deliberativos. Assim é que no momento em que o juiz se depara com uma questão de alta complexidade, com múltiplas possibilidades de deliberação e carência de informação adequada, cuja resposta não se apresenta prontamente elaborada, pode cair na armadilha cognitiva de simplificá-la. Pode, não raro, deslizar a resposta sobre a culpabilidade para o entorno, ou seja, para consultar a ficha de antecedentes do acusado, seus familiares, ausência de vínculo laboral, residência e ambiente de vida do acusado, suas vestimentas e aparência, etc., enfim, fatores que fogem à legalidade e que operam nos códigos não ditos da tomada de decisão. A abstração decorrente da necessidade de esforço mental (S2) rapidamente é alterada para questões mais concretas que servem de mecanismo de facilitação da decisão. Todos esses fatores, dentre outros, dependendo da subjetividade ilegítima do magistrado no espaço decisório, afinal deveria ser julgado com base nas provas, serão transformados em perguntas-heurísticas[ii] com o intuito de responder a pergunta-chave. Substituem a pergunta complexa por uma simples e antecipam a resposta, tangenciando a questão fundamental.

Os estereótipos roubam a cena? 

Aqui prevalece, muitas vezes, o discurso fácil dos estereótipos (Goffman, Warat e Carlos Bacila), em que as trampas cognitivas do S1 roubam a cena do S2, prevalecendo pré-conceitos, pré-noções, ficções e estereótipos[iii], escamoteados em nome da segurança jurídica, por padrões de significação impostos.[iv] Os estereótipos são verdadeiras próteses linguísticas: os cúmulos de artifício[v]. É certo que em alguns casos, as heurísticas, ou seja, essas perguntas mais fáceis que tendem a simplificar as questões mais complexas, são capazes de confirmar a conclusão, mas não poderiam, jamais, substituir a compreensão do caso penal. Aliás, jamais deveriam ser consideradas, dado não se acolher, pelo menos no discurso manifesto, o Direito Penal do Autor. O derrapamento autoritário é uma constante na tomada de decisão no Processo Penal, por se adotar o indutivismo ingênuo, próprio do nosso “jurista peru”, apresentado anteriormente (aqui).

E a decisão penal como fica com o Bacamarte Mental?

Como já dissemos em semanas anteriores, a decisão com fundamento no S2 é mais complicada por demandar tempo, atividade mental e luta contra a lei do menor esforço, bem assim aos mantras cristalizados no decisionismo do julgador (Lenio Streck). A postura matreira consistente em se valer do S1, sem o controle reflexivo do S2, no que Kahneman chama de “bacamarte mental”, provocando erros graves de deliberação.

Explicando por partes, o bacamarte mental provém do sistema de decisão S1 que, nas palavras de Kahneman significa um "excesso de cálculo"[vi], ou seja, analisar além daquilo que se tenciona. Nosso Sistema S1, por ser involuntário, capta toda e qualquer informação a todo o momento, sem se preocupar em elaborar uma linha de pensamento coerente. Assim, tudo o que é captado pelo S1 não exige nenhum esforço mental, sejam questões complexas ou compreensíveis. É por essa razão que o “bacamarte  mental” quando entra em ação tende a nos proporcionar mais opções de respostas do que o necessário, tendo como consequência desse fator as heurísticas, uma vez que em meio as diversas opções todas provenientes do Sistema S1 a maior probabilidade é de que a resposta mais compreensível e não necessariamente a mais correta seja a escolhida.

Fernando Nogueira Costa explica: “Substituir uma pergunta por outra pode ser uma boa estratégia para resolver problemas difíceis. “Se você não consegue resolver um problema, então há um problema mais fácil que você pode resolver: encontre-o”. Mas acautele-se contra o auto engano. As heurísticas são uma consequência do bacamarte mental, isto é, o controle impreciso que temos ao mirar respostas para nossas perguntas.” (aqui)

Assim é que o problema do bacamarte mental e consequentemente das heurísticas está basicamente nas influências que permeiam a questão principal. Quando o magistrado se questiona - culpado ou inocente -, ainda que permaneça atento aos autos, conforme sua análise se desenvolve na trajetória processual, diversas outras informações (conscientes e inconscientes) se agregam e, diante do viés do menor esforço, muitas vezes, tende a substituir o questionamento complexo por alguma pergunta mais simples, mais fácil, cuja resposta provavelmente já obteve em outros casos, semelhantes ou não. A doxa maquiada de episteme, diria Warat.

A pergunta correta, então?

Desta forma, ganha importância a pergunta correta. Ao invés de se perguntar se “o acusado é culpado”, deve-se indagar: “o acusado é culpado pela conduta imputada.” Parece simples e óbvio, entretanto, diante dos deslizamentos do S1, estar-se atento ao julgamento da conduta e não do autor pode fazer toda a diferença. Por mais que não se tenha empatia pelo acusado, sua vida pregressa, pela imputação, não é isto que está em questão no caso em julgamento. Daí a importância da pergunta correta. A isto denomina-se equiparação de intensidade[vii], a saber, não se deve questionar se o acusado deve/merece ser condenado, pois traz na enunciação uma carga de intensidade muito mais elevada do que simplesmente perguntar quais foram as condutas comprovadas em relação ao acusado. A equiparação de intensidade assim como o bacamarte mental, também tem como consequência a ocorrência das heurísticas.

Como resultado dessa infinidade de respostas proporcionada pelo bacamarte mental juntamente com a facilidade e rapidez com que nosso cérebro é capaz de substituir perguntas-alvo[viii] por perguntas-heurísticas muitas decisões estão alicerçadas em verdadeiras regras de bolso, criadas pelo senso comum, sem fundamento democrático, deslegitimando o modelo de tomada de decisão de todos os dias.

Ficamos por aqui, quem sabe colocando uma pulga atrás da orelha dos sujeitos que se pensam donos da razão, conscientes e cientes das armadilhas da percepção, justamente porque quem se acha acima de qualquer possibilidade de erro, de fato, não sabe o quanto erra.


Notas e Referências:

[i] KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar: Duas formas de pensar. Trad. Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 128.

[ii] KAHNEMAN, 2012, p. 128.

[iii] BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: Cultrix, 1978, p. 57: “O estereótipo é a palavra repetida, fora de toda magia, de todo entusiasmo, como se fosse natural, como se por milagre essa palavra que retorna fosse a cada vez adequada por razões diferentes, como se imitar pudesse deixar de ser sentido como uma imitação: palavra sem-cerimônia, que pretende a consistência e ignora sua própria insistência (...) de acordo com isso, o estereótipo é a via atual da ‘verdade’, o traço palpável que faz transitar o ornamento inventado para a forma canonical, coercitiva, do significado.”

[iv] WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: a epistemologia jurídica da modernidade. Trad. José Luís Bolzan de Morais. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1995, p. 13: “Nas atividades cotidianas – teóricas, práticas e acadêmicas – os juristas encontram-se fortemente influenciados por uma constelação de representações, imagens, pré-conceitos, crenças, ficções, habitus de censura enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas que governam e disciplinam anonimamente seus atos de decisão e enunciação.”

[v] WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem..., p. 102: “Pode-se afirmar, juntamente com Barthes, que a semiologia política deve se ocupar da linguagem que se produz e se espalha sob a proteção do poder. Este tipo de linguagem tem uma instituição como interlocutor privilegiado. As instituições sociais são, por sua vez, instituições que oficializam as linguagens, expropriando e reduzindo as significações enunciadas. A estereotipação discursiva cumpre um papel fundamental, pois sutilmente reveste as significações de uma forma canônica, as recupera para a metafísica institucional dominante, as ornamenta de verdades, as torna ahistóricas e, enfim, as rouba do sentido original de sua enunciação. Daí, a palavra ou discurso estereotipado ser um dado político. Ignorar isto é contribuir para a própria conservação do discurso como estereótipo.”

[vi] KAHNEMAN, 2012, p. 123.

[vii] KAHNEMAN, 2012, p. 129.

[viii] KAHNEMAN, 2012, p. 128.


Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui     


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Giseli Caroline Tobler é Acadêmica de Direito da UFSC.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              


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