O abismo entre a paixão e o controle

14/04/2016

Por Fernanda Pacheco Amorim - 14/04/2016

Nós, enquanto sociedade, acreditamos que só vive relacionamento abusivo quem quer. Existe a ideia de que se livrar das amarras de um relacionamento abusivo é muito simples, que é fácil perceber quando vivemos um. Usa-se, comumente, a expressão “mulher de malandro” para se referir a quem passa por este tipo de situação.

Comecei a namorar cedo e meu primeiro namoro foi um relacionamento abusivo. Ele me pedia para que telefonasse diversas vezes por dia para conversarmos, e esta era apenas uma das atitudes que ele tomava que demonstrava o tipo de relacionamento que tínhamos. Na época, entendia esta atitude como cuidado da parte dele, achava que ele sentia saudades. Hoje, depois de começar a estudar os feminismos, é possível perceber que isto era controle.

Este relacionamento durou mais de quatro anos e eu não percebia a gravidade daquilo que vivia. Isto tudo aconteceu num contexto de uma garota criada de maneira liberal, com pai filósofo e mãe contadora, que aprendeu, desde pequena, a ser dona de sua própria vontade.

Há vários relatos de mulheres que sofreram, ou ainda sofrem, com relacionamentos abusivos. Se pararmos para conversar com amigas, parentes, etc. será fácil identificar algumas que já viveram este tipo de situação.

Alguns relacionamentos terminam relativamente bem, “apenas” com sequelas emocionais, outros nem tanto. Noticiou-se que dia 29 de março o corpo de uma mulher foi encontrado na Serra Dona Francisca em Joinville/SC[1]. A vítima era Terezinha Moraes Soave de 63 anos e foi morta por asfixia pelo seu esposo Maximino Vicente de 43 anos. Segundo Maximino, a briga que resultou na morte de Terezinha começou porque ela queria ler livros que, na opinião dele, não eram condizentes com a religião cristã.

Terezinha vivia um relacionamento abusivo, onde o esposo se achava no direito de controlar até os livros que ela lia!

Nos ensinam que a sociedade foi criada através de um contrato: o contrato social. A teoria contratualista teve como principais pensadores Hobbes, Locke e Rousseau. Segundo esta teoria, vivíamos uma guerra de todos contra todos e foi através do contrato social que aceitamos limitar nossa capacidade de revide em favor do “grande Leviatã”: o Estado.

O que não nos ensinam é que para que o contrato social pudesse existir foi necessário firmar também o contrato sexual. Lecionou Carole Pateman:

Mas as mulheres não nascem livres, elas não têm liberdade natural. As descrições clássicas do estado natural também contêm um tipo de sujeição – entre homens e mulheres. Com exceção de Hobbes, os teóricos clássicos argumentam que as mulheres naturalmente não têm os atributos e as capacidades dos “indivíduos”. A diferença sexual é uma diferença política; a diferença sexual é a diferença entre liberdade e sujeição. As mulheres não participam do contrato original através do qual os homens transformam sua liberdade natural na segurança da liberdade civil. As mulheres são o objeto do contrato. O contrato sexual é o meio pelo qual os homens transformam seu direito natural sobre as mulheres na segurança do direito patriarcal civil[2].

Segundo Pateman, a sujeição feminina começa juntamente com a sociedade. Desde há muito tempo somos vistas, conforme Simone de Beauvoir, como o Outro, a antítese do homem. Beauvoir afirmou “Condenada a desempenhar o papel do Outro, a mulher estava também condenada a possuir apenas uma força precária: escrava ou ídolo, nunca é ela que escolhe seu destino”[3].

Somos então condenadas à sujeição. Limitadas pela cultura vigente, condicionadas ao papel que a sociedade espera que desempenhemos. Segundo Beauvoir: não nascemos, tornamo-nos mulheres[4].

E dentro desta sujeição encontra-se a ideia de relacionamentos abusivos. Devemos nos submeter aos homens, somos naturalmente inferiores, precisamos obedecê-los e manter a ordem “normal” das coisas. Os nossos namorados, maridos, consortes, etc. sabem o que é melhor para nós. Fazemos parte do espaço privado e este é refletido no espaço público, ajudamos a montar a imagem de nossos cônjuges perante a sociedade, por isto a ideia de subversão é inimaginável.

Desta maneira, vendo através das lentes da nossa cultura machista, não há que se falar em relacionamentos abusivos, pois a submissão feminina é uma realidade natural.

Chimamanda escreveu:

Quanto mais duro um homem acha que deve ser, mais fraco será seu ego. E criamos as meninas de uma maneira bastante perniciosa, porque as ensinamos a cuidar do ego frágil do sexo masculino. Ensinamos as meninas a se encolher, a se diminuir, dizendo-lhes: “Você pode ter ambição, mas não muita. Deve almejar o sucesso, mas não muito. Senão você ameaça o homem. Se você é a provedora da família, finja que não é, sobretudo em público. Senão você estará emasculando o homem”[5].

Nossa diminuição em relação ao homem é algo tão entranhado na sociedade que se torna difícil perceber as extensões disso. Por este motivo que as vezes é tão complicado conseguirmos perceber que estamos em relacionamentos abusivos, que estamos sendo maltratadas, diminuídas, abusadas, estupradas, etc.

Terezinha Moraes foi morta em razão de livros que queria ler, seu esposo não gostou das suas escolhas e se entendeu no direito de matá-la. Provavelmente Terezinha não foi alertada sobre os relacionamentos abusivos e suas consequências devastadoras. E este artigo está sendo escrito para as incontáveis “Terezinhas” que estão em relacionamentos que só lhes fazem mal. Para que estas mulheres consigam perceber e entender que isto não é normal.

Você é linda, você escolhe o tamanho e a cor do seu cabelo, você decide quais livros vai ler (sendo cristãos ou não), você escolhe a cor do seu batom, você quem sabe se vai ou não usar salto alto, você coloca vestidos no comprimento que quiser. E ninguém, além de você mesma, tem nada a ver com isso!

Não é fácil livrar-se das amarras de um relacionamento abusivo, envolve diversas variáveis: a capacidade de percepção de cada uma, conseguir retirar os óculos de lentes machistas, empoderamento, e tantas outras que dependerão da particularidade de cada caso. É difícil, mas não impossível e extrremamente libertador.

Terezinha não teve oportunidade de saber, mas várias outras mulheres têm: Você não está sozinha! Sua família pode te apoiar, seus amigos podem te ajudar, seus colegas de trabalho podem te prestar auxílio. Mas se nenhuma destas pessoas estiver presente, saiba: há milhares de outras mulheres no mundo que poderão compartilhar da sua dor e lhe ajudar a passar por cima de tudo isso. Empodere-se e desate as amarras!


Notas e Referências:

[1] Veja a notícia completa em http://anoticia.clicrbs.com.br/sc/seguranca/noticia/2016/04/identificado-corpo-encontrado-na-serra-dona-francisca-em-joinville-5756547.html

[2] PATEMAN, Carole. O contrato sexual; tradução Marta Avancini. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p. 21.

[3] BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo; tradução Sérgio Milliet. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 117.

[4] Ibidem, p. 361.

[5] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas; tradução de Christina Baum. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 30.


Fernanda Pacheco Amorim

. . Fernanda Pacheco Amorim é formada em Direito, feminista e professora em construção. . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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