Notas sobre a responsabilidade civil na “saidinha bancária”

24/04/2017

Por G. Couto de Novaes – 24/04/2017

A “saidinha bancária” é modalidade de roubo (art. 157, Código Penal), em que, no geral, um criminoso, dentro da agência bancária, observando cliente que sacou dinheiro, avisa ao comparsa, posicionado no exterior da agência, a fim de que se persiga a vítima e a assalte, seja ainda nas dependências do banco ou mesmo em via pública.

Levantamentos da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro apontam que a expansão da “saidinha bancária” ocorre descontroladamente no Brasil. Dados publicados em 2014 demonstram que 62,5% das mortes advindas dos assaltos envolvendo bancos originaram-se desta prática criminosa, significando assustador acréscimo de clientes dentre as vítimas. Essa situação alarmante, segundo as estatísticas, deve-se ao fato de os bancos realizarem baixos investimentos na segurança das agências.

E a propósito da chamada “bancarização da sociedade brasileira”, onde, diariamente, milhões de pessoas realizam operações financeiras em agências bancárias, não é demais repisar que a natureza da relação jurídica levada entre os bancos e a maioria daqueles que tomam contato com suas agências é a de típica relação de consumo (Lei nº 8.078/90 - Código de Defesa do Consumidor - CDC, art. 2º c/c art. 17, caput do art. 3º c/c §2º c/c caput do art. 14 c/c súmula nº 297, do STJ).

Bem por isso, a evidente necessidade de proteção da integridade física e moral do consumidor do serviço bancário, nos moldes do art. 6º do CDC, que estabelece direitos básicos ao consumidor: o direito à proteção da vida (art. 6º, I); direito à proteção da saúde e à segurança (art. 6º, I); e direito a prevenção de danos (art. 6º, VI). E em consequência desses direitos, surge aos bancos o dever jurídico de proteção à vida, à pessoa e ao patrimônio do consumidor.

No tocante ao direito à proteção da vida, surge oportuna a lição de Antonio Herman V. Benjamin, Claudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa (2013, p. 70): “O inciso I do art. 6º assegura um direito de proteção “da vida, saúde e segurança”, o mais básico e mais importante dos direitos do consumidor, ainda mais tendo em vista que nossa sociedade é uma sociedade de riscos, muitos produtos, muitos serviços e mesmo práticas comerciais são efetivamente perigosos e danosos para os consumidores.”

Ainda nesta senda, Bruno Miragem (2013, p. 189) observa: “O reconhecimento deste direito subjetivo admite múltiplas eficácias. Por um lado, determina a proteção da vida do consumidor individualmente considerado em uma relação de consumo específica, o que indica a necessidade de proteção de sua integridade física e moral e, neste sentido, o vínculo de dependência da efetividade deste direito com os demais de proteção da saúde e da segurança, igualmente previstos no CDC.”

Já Cristiano Chaves de Farias, Felipe P. B. Netto e Nelson Rosenvald (2014, p. 799) complementam: “A segurança é vetor fundamental nas relações de consumo. A responsabilidade civil – por danos morais, materiais e estéticos – resulta, com alguma frequência, de problemas relacionados à ausência da segurança esperada em relação a produtos e serviços postos no mercado. Ao fornecedor cabe assegurar que tais produtos ou serviços sejam seguros, não causem danos, de qualquer espécie, aos consumidores.”

Desse modo, do Princípio da segurança (art.4º, CDC), bem como do art. 14 do CDC, emana que cabe ao fornecedor (o banco) disponibilizar serviços seguros no mercado de consumo, e a não observância desse dever jurídico importa em objetiva responsabilização civil da instituição financeira pelos eventuais danos sofridos pelos consumidores.

Em outras palavras, uma vez que a atividade exercida é, em si mesma, potencialmente geradora de altos riscos (Teoria do risco do empreendimento, subteoria do risco criado, que atribui ao banco, objetivamente, o dever ex ante de segurança, e o dever ex post de ressarcimento diante de eventos danosos), cabe aos bancos a assunção do risco do negócio, sendo seu dever atuar para reduzir as possibilidades de acidente de consumo, garantindo-se, assim, a segurança legitimamente esperada pelo consumidor (Princípio da Confiança).

No caso das “saidinhas de banco”, na maioria das ocorrências, quando da análise da responsabilização civil, verifica-se que os eventos danosos às vítimas são fruto da inobservância, por parte dessas instituições bancárias, dos deveres anexos de proteção e cuidado para com a pessoa e patrimônio do consumidor.

E nesse contexto vislumbra-se o “fato do serviço” (também denominado por parte da doutrina de “acidente de consumo”) que é o dano (material ou moral) causado ao consumidor por um serviço; dano provocado (fato) por um serviço, em decorrência de um defeito a ele inerente (BENJAMIN; BESSA; E MARQUES, 2013, p. 153).

Assim, em tais casos, o banco poderá ser responsabilizado pelo fato do serviço, porquanto o serviço prestado ao consumidor revelou-se eivado de defeito (art. 14, §1º, CDC), manifestado pela não observância dos deveres de segurança, inerentes àqueles que atuam como agentes econômicos no mercado de consumo.

Dessa maneira, dentre os denominados pressupostos da responsabilidade civil pelo fato do serviço ou acidente de consumo, o “defeito” é o elemento-primordial à determinação da responsabilização civil objetiva do banco prestador de serviço. O que implica dizer: Se comprovado o DANO ao consumidor vítima da “saidinha bancária”; o DEFEITO na prestação do serviço (a ausência de adequado aparato de segurança no interior da agência bancária) e o NEXO DE CAUSALIDADE entre ambos, nasce o dever de o banco indenizar.

Todavia, o elemento-chave à configuração da responsabilidade civil pelo fato do serviço, no caso da “saidinha de banco”, é a demonstração, nos autos de processo judicial, da RELAÇÃO DE CAUSALIDADE entre o defeito do serviço e o evento danoso. Nessa conjuntura, notadamente, destaca-se a teoria da causalidade direta e imediata, especificamente nos moldes da ‘subteoria da causalidade necessária’ (adotada pelo STF, tendo como principal precedente o julgamento do Recurso Especial Extraordinário 130.764-1/PR, de 12 de maio de 1992).

A teoria da necessariedade da causa significa um critério técnico altamente satisfatório para se investigar a relação de necessariedade lógica entre a falha de segurança do banco (o defeito) e o dano sofrido pela vítima da saidinha bancária.

Assim, corrobora Anderson Schreiber (2013, p. 62): “Desenvolve-se, desse modo, no âmbito da própria teoria da causalidade direta e imediata, a chamada subteoria da necessariedade causal, que entende as expressões dano direto e dano imediato de forma substancial, como reveladoras de um liame de necessariedade – e não de simples proximidade – entre a causa e o efeito. Haverá, assim, dever de reparar, quando o evento danoso for efeito necessário de determinada causa”.

Na mesma trilha, o magistério de Carolina Bellini Arantes de Paula (2007, p. 46 e 47): “Na doutrina interna, ressalta-se a teoria da causalidade necessária, proposta por Agostinho Alvin. (...) a causa do dano assim o é, pois ele filia-se necessariamente a ela. A causa pode ser próxima ou remota ao dano, mas deve atrelar-se diretamente a ele, como sua causa exclusiva. Assim, conclui, “é indenizável todo o dano que se filia a uma causa, ainda que remota, desde que ela lhe seja causa necessária por não existir outra que explique o mesmo dano”.

Sendo assim, a teoria da causa necessária impõe a seguinte pergunta: no caso concreto em que se deu a “saidinha de banco”, a falha na segurança interna da agência foi, necessariamente, a causa do evento danoso? Dito de outra maneira, o dano teria ocorrido sem a existência do defeito no serviço bancário? Se o delito se deu em ato contínuo (o que implica reconhecer que na situação não houve concausas) e a resposta àquela última indagação for negativa, dever-se-á, pois, considerar a falha na segurança bancária (defeito) como a causa necessária do dano, e a instituição financeira terá o dever sucessivo de indenizar o consumidor.

E cabe nesta ordem de ideias ao fornecedor dos serviços bancários provar as excludentes de responsabilidade pelo fato do serviço, e só não será responsabilizado se conseguir prová-las. Ordinariamente, o banco, em sua defesa, traz à baila teses preferencialmente de ‘culpa exclusiva da vítima ou de terceiro’; ‘caso fortuito’; e, bem compreensivelmente, apenas lança a tese de ‘inexistência do defeito’ em último caso.

É importante notar que caso comprovada a excludente ‘inexistência do defeito’, a responsabilização do banco pelo acidente de consumo se torna prejudicada de plano, sendo mesmo desnecessária a verificação das demais excludentes. Contudo, o ônus da prova é do fornecedor, a quem cabe provar a inexistência do defeito. Pois, conforme o art. 14, §3º, CDC, não é o consumidor que está obrigado a provar que o defeito existe.

Mas, como na maioria das vezes a existência do defeito é patente, os bancos apegam-se às argumentações de culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro e/ou às teses de caso fortuito. Notadamente, essas instituições tentam sustentar exclusão do nexo causal aduzindo caso fortuito. Ocorre que com o advento da súmula n° 479, do STJ, consolidou-se em nosso Ordenamento oportuna visão conceitual que bifurcou o denominado ‘caso fortuito’ em: fortuito externo (que não se relaciona com a dinâmica do empreendimento) e fortuito interno (que se relaciona com a dinâmica do empreendimento).

Portanto, a súmula nº 479 relativizou a imprevisibilidade e inevitabilidade inerentes à excludente do caso fortuito, consolidando a ‘teoria do fortuito interno’ no âmbito das atividades bancárias, pois, em verdade, dada a experiência cotidiana, não mais é razoável que os bancos aleguem em seu favor o “escudo” do caso fortuito, diante de estatísticas que corroboram a necessidade de esse tipo de empreendimento financeiro prestar mais atenção ao dever de garantia de segurança no âmbito de suas atividades.

Assim, há atualmente reconhecimento jurisprudencial pacificado da responsabilidade bancária pelo chamado fortuito interno, que não mais significa hipótese de exclusão do nexo causal. É dizer, sempre que o dano apresenta conexão com a atividade do banco a excludente relativa ao caso fortuito não poderá ser aceita, porquanto caracteriza hipótese de fortuito interno, e não externo.

Infelizmente, na medida em que se multiplicam os registros de saidinhas bancárias em todo o território brasileiro, enfileirando-se vítimas e volumosos prejuízos, nota-se que muitos intérpretes insistem em fazer temerária leitura restritiva, espacial, daquilo que a súmula 479 do STJ denominou de “fortuito interno”; ou seja, nessa ótica deturpada, apenas seria caso de responsabilização civil dos bancos quando o delito de saidinha bancária tivesse ocorrido no interior da agência ou em suas dependências, a exemplo de estacionamentos.

Porém, é cristalino que a expressão “âmbito de operações bancárias”, albergada na multicitada súmula, não traduz-se por mera acepção espacial, pois, como já dito, o fortuito interno relaciona-se diretamente com a organização que o fornecedor imprime ao seu negócio, diz respeito às especificidades dos riscos da atividade desempenhada pelas mencionadas instituições financeiras. Dito de outro modo: ‘Delito praticado no âmbito das relações bancárias’ (substância da súmula nº 479) não quer significar ‘delito praticado no âmbito espacial dos estabelecimentos bancários’.

Isso implica que, na esteira da teoria do fortuito interno, mesmo diante de hipótese onde a “saidinha de banco” ocorra fora das dependências da agência bancária, ainda assim, não se poderá afastar de plano a responsabilidade civil objetiva do fornecedor bancário. E nos casos em que o banco não desincumbir-se de provar a inexistência do defeito do serviço, há de se reconhecer o fortuito interno, mesmo nas situações em que o dano à vítima for perpetrado na calçada, no quarteirão vizinho ou mesmo já nas proximidades de outro bairro, desde que o delito tenha ocorrido em ato contínuo ao defeito apresentado na segurança da agência.

Interpretação diversa levaria ao reconhecimento de rompimento do nexo de causalidade na maioria das ocorrências verificadas de “saidinha bancária” e acabaria por isentar, injustificadamente, os bancos do dever jurídico de zelar pela segurança dos consumidores. E, ainda por coseguinte, ter-se-ia uma responsabilização indevida e desmedida para o Estado, cenário que se revelaria deveras incongruente, pois, como demonstram as estatísticas, a “saidinha” tem seu nascedouro no “intra muros” da reiterada desídia dos bancos para com a segurança do consumidor.


Notas e Referências:

BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. MANUAL DE DIREITO DO CONSUMIDOR. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

BRAGA NETO, Felipe; FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. CURSO DE DIREITO CIVIL: Responsabilidade Civil. Salvador: Editora Juspodium, 2014, V. 3.

BRASIL. Lei 8078, do dia 1 de Setembro de 1990. Sobre a proteção do consumidor e outra providências. Brasília, DF. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccvil/leis/l18078.htm) Acesso em: 07/11/2014

BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. Súmula 297. Brasília, DF. Disponível em: <www.stj.jus.br/docs.internt/verbetesstj.asc.txt> Acesso em: 07/11/2014

BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. Súmula 479. Brasília, DF. Disponível em:<www.stj.jus/scon/sumulas/luejipivindo=sumue/çeusaur=juridico. Aceso: 07/11/2014

CONTRAF, Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro. Pesquisa nacional de mortes em assaltos envolvendo bancos. Disponível em: http://www.contrafcut.org.br/download/Arquivo/14129104153.pdf. Acesso em: 02 de out. 2014

MIRAGEM, Bruno. CURSO DE DIREITO DO CONSUMIDOR. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

SCHREIBER, Anderson. NOVOS PARADIGMAS DA RESPONSABILIDADE CIVIL. Da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013.

VAZ, Carolina. FUNÇÕES DA RESPONSABILIDADE CIVIL – da reparação à punição e dissuasão – Os punitive damages no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.


G. Couto de Novaes. . G. Couto de Novaes é Advogado, sócio no Pereira & Couto Advocacia, em Salvador. Bacharel em Direito pela UNIFACS. hcoutodenovaes@gmail.com . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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