Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
“Hábitos não são necessidades”
Desde o início de 2020 – quando o mundo lentamente começou a se recolher em seus lares, acreditando todos que emergiriam ao sol em poucas semanas, com um novo senso de gratidão após uma tenebrosa temeridade potencialmente epidemiológica - a sociedade passou por diversas fases. Quando a catástrofe ainda parecia longe das Américas, observamos os italianos cantando em suas sacadas, partilhando o pão com o vizinho, enquanto taxistas chineses transportavam passageiros gratuitamente para supermercados, farmácias e hospitais, mostrando que a solidariedade é o que há de melhor no ser humano: “andrà tutto bene”, diziam os italianos. “em tempos como esses, nos damos conta de que tudo o que temos são uns aos outros”[1], comentou um cidadão chinês residente em Wuhan. Quando sairmos dessa, faremos tudo diferente.
Hoje, um ano e meio após o início da pandemia, “non va tutto bene”. É claro, nem tudo foi amargo. Na dor e na fome, quem sempre foi solidário manteve suas práticas. No Brasil, por exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) doou 3.800 toneladas de alimentos e 700 mil marmitas em 2020[2]. Padre Júlio Lancellotti, conhecido por suas ações em prol dos moradores de rua da cidade de São Paulo, seguiu seu trabalho de distribuição de alimentos para a população, juntamente com itens de higiene e materiais de proteção contra a COVID-19. Voluntários no Rio de Janeiro criaram a plataforma “Onde tem máscara”, buscando conectar organizadores de iniciativas de doação de máscaras do tipo PFF2 ou N95 (consideradas melhores para proteção contra a COVID-19), com o objetivo de fornecer máscaras às populações das periferias[3].
Contudo, entre honrosas ações solidárias, infelizmente não podemos dizer que, de modo geral – como sociedade – somos hoje seres humanos melhores nem consumidores mais conscientes, muito pelo contrário. Como brilhantemente destacado pela colega Suzana nesta coluna[4], a imagem de um “novo normal” utópico, baseado em um consumo ético e minimalista, se mostrou mais uma encenação que uma efetiva mudança de paradigma. A desigualdade social segue cada vez mais latente, mesmo com a pandemia o número de bilionários no mundo bate recorde (com um aumento de 44% apenas no Brasil)[5] e não emergimos de nossas casas para uma “Nova Era”, um mundo limpo e curado da degradação humana. Os números não mentem: o planeta está (literalmente) queimando.
Em 09 de agosto de 2021, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) apresentou seu mais atual relatório sobre mudanças climáticas[6], trazendo dados alarmantes sobre a influência humana no aumento de temperatura da superfície global. Entre as atividades mais danosas, destacam-se aquelas que provocam emissões de gases de efeito estufa, como o gás carbônico (CO2) e o metano[7]. Mas como os seres humanos (e seus padrões de consumo) influenciam tanto nas mudanças climáticas? Qual a responsabilidade humana pela pandemia em que vivemos? As respostas para estas perguntas estão em nossos pratos.
Nossos hábitos alimentares, longe de meras escolhas individuais, possuem potencial devastador ao meio ambiente. Cada um dos seis bilhões de animais terrestres abatidos por ano no Brasil precisam de quantidades consideráveis de terra, água, energia e alimento para cumprirem seus curtos e miseráveis ciclos de vida como animais para consumo. Ao mesmo tempo que necessitam destes recursos, também produzem dejetos com capacidade de poluir o solo, a água e o ar[8], com destaque para a liberação de gás metano através de seu sistema digestivo: estima-se que cada vaca produza entre 250 a 500 litros de metano por dia[9] e, segundo a Food and Agriculture Organization (FAO)[10], órgão vinculado à ONU, o rebanho mundial é atualmente de 1,4 bilhão de vacas no mundo, o que resultaria em uma produção diária entre 350 bilhões a 700 bilhões de litros de gás metano.
Porém, o consumo de carne não penaliza o meio ambiente “apenas” pela emissão de gás metano dos rebanhos, considerando que há emissões de gás carbônico em todas as etapas da produção de carne, desde a queimada para gerar pasto para o alimento dos animais até ao filé que chega ao prato do consumidor final. Quando penso em como conhecemos pouco do que consumimos (ou simplesmente fingimos não ver) e do processo de produção da nossa comida, lembro de uma comédia brasileira que reassisti durante esta eterna quarentena, o filme chamado “Minha Vida em Marte”. No enredo, Tom, marido da protagonista Fernanda, é considerado um “grande ambientalista”: instalou um sistema em sua casa que corta o funcionamento do banho após quatro minutos, evitando assim o desperdício de água. Algumas cenas depois, o mesmo aparece comendo um filé com queijo, enquanto esbraveja: “sabe quantos litros de água a gente gasta em um minuto de banho? Nove litros! Todo mundo deveria saber a importância de se racionar água”. Tom não sabe (ou finge não saber, mas darei um desconto, já que se trata de um personagem fictício!) que, para produzir um quilo de carne bovina – a mesma da refeição que ele saboreava enquanto se orgulhava de seus banhos curtos – são necessários 15 mil litros de água[11].
Enquanto o Brasil utiliza mais água para a criação de animais para consumo do que os setores de mineração, abastecimento rural e termoelétrica juntos[12], nossas florestas são desmatadas para a criação de pastos destinados ao gado de corte e a monocultura, grande maioria convertida em ração: 97% do farelo de soja e 60% da produção global de cevada e milho são destinados ao alimento destes animais[13]. Ao passo que destruímos nossas florestas e recursos naturais, também nunca tivemos um risco tão grande de zoonoses, que são doenças infecciosas (de patógenos bacterianos, virais ou parasitários) transmitidas entre animais e pessoas. O relatório Fleischatlas 2021[14], apresentado pela Fundação Heinrich-Boll, pela organização ambientalista Bund e pela edição alemã do jornal Le Monde Diplomatique aponta que 70% das enfermidades surgidas desde a década de 1940 são de origem animal, algumas com potencial pandêmico, como a COVID-19 que enfrentamos hoje. Entre as zoonoses conhecidas, o relatório aponta que 75% são provenientes de animais selvagens, que estão cada vez mais em contato com os humanos não apenas pelo consumo de sua carne, mas pela destruição de seus habitats naturais para a produção agrícola. Embora ainda não confirmada a origem da pandemia de COVID-19, salienta-se a grande probabilidade de ter se originado no mercado de animais selvagens na cidade chinesa de Wuhan, sendo o morcego o reservatório da SARS-CoV-2, transmitida ao homem através do animal selvagem pangolim.
Assim, o consumo de carne animal possui relação direta com o desmatamento de nossas florestas, com a emissão de gases causadores do efeito estufa, a escassez de recursos naturais e degradação do meio ambiente, ampliando ainda a proporção de doenças humanas causadas por zoonoses, o que só tende a piorar – com cada vez mais zoonoses com potenciais pandêmicos – se não revermos nossos padrões de consumo. O que fizemos nestes 18 meses de pandemia? Não repensamos hábitos alimentares. Não planejamos o que fazer para que isso não se repita. Não pensamos como o peso das nossas próprias ações individuais podem mexer na estrutura. “Ah, mas o consumo de carne animal reduziu no Brasil durante a pandemia[15]”. Não por uma livre escolha de indivíduos com plena agência motivados por uma conscientização individual, mas sim pelo aumento dos preços globais dos alimentos (com o risco do Brasil voltar ao “Mapa da Fome”), inflação, desemprego e ausência de um auxílio emergencial que permita ao menos a compra de uma cesta básica. Isto não é o tão debatido “consumo consciente” do “novo normal”, mas sim insegurança alimentar, que atinge aqueles mais economicamente vulneráveis na sociedade e algo que jamais deve ser comemorado, mas sim combatido.
A socióloga Sabrina Fernandes apresentou um interessante debate em seu Twitter[16] este mês de agosto, falando justamente de como devemos mediar a discussão entre “mudança individual” X “mudança estrutural”, para não cairmos no erro de acreditar que o individual é separado da estrutura e, por esta razão, não gera impacto. Isso significa dizer que o consumo de carne animal está acabando com o planeta porque o agronegócio é uma estrutura capitalista gigantesca, com uma imensurável capacidade destrutiva. Uma pessoa que decide não apoiar mais essa indústria (ao não consumir carne animal, ovos, leite e seus derivados) não vai conseguir, sozinha, mudar a realidade de toda uma indústria exploradora. Porém, como ensina a Sabrina, “a estrutura limita agência individual, mas agência coletiva mexe estruturas”. A pandemia nos mostra isso, principalmente nas ações individuais que são compromissos coletivos de saúde pública, como a vacinação, uso de equipamentos de proteção individual (EPIs) e distanciamento social.
Vencer a pandemia é um compromisso coletivo que depende de ações individuais, mas algumas – como a indústria agropecuária – são mais difíceis de balançar as estruturas, pois são o cerne do sistema capitalista. Até o momento, o “novo normal” se mostrou uma mera encenação cara de um consumo com estética clean, mas que de consciente não tem nada. Enquanto bilionários brincam de voar pelo espaço, o nosso planeta (ainda único habitável, mas se comprovada a viabilidade de vida em outro, logo um bilionário o comprará) está em chamas, mais de 4 milhões de pessoas morreram de COVID-19 e outros esperam a pandemia acabar para “comemorar com um grande churrasco”. A sobrevivência está no prato de cada um de nós e a verdade sobre o tal “novo normal” é uma só: não devemos voltar a normalidade porque a normalidade era o problema.[17]
Notas e Referências
[1] Ações solidárias emocionam e unem chineses no combate ao surto de coronavírus: https://gauchazh.clicrbs.com.br/saude/noticia/2020/02/acoes-solidarias-emocionam-e-unem-chineses-no-combate-ao-surto-de-coronavirus-ck6ceezzh0f5e01mv25geks5d.html
[2] Ações de solidariedade durante pandemia deixam legado de esperança para 2021: https://www.brasildefato.com.br/2020/12/31/acoes-de-solidariedade-durante-pandemia-deixam-legado-de-esperanca-para-2021
[3] VICK, Mariana. A Plataforma sobre ações de doação de máscaras PFF2. 2021. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/05/26/A-plataforma-sobre-a%C3%A7%C3%B5es-de-doa%C3%A7%C3%A3o-de-m%C3%A1scaras-PFF2 Acesso em: 09.08.2021.
[4] GERCHMANN, Suzana Rahde. O Novo Normal. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/o-novo-normal Acesso em: 02.08.2021.
[5] Mesmo com a pandemia, número de bilionários bate recorde, 65 no Brasil: https://www.istoedinheiro.com.br/mesmo-com-pandemia-numero-de-bilionarios-bate-recorde-65-no-brasil-veja-a-lista/
[6] Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC). AR6 Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Disponível em: https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg1/#FullReport Acesso em: 10.08.2021.
[7] Para uma versão didática e menos técnica do extenso relatório, recomendo a reportagem em português sobre o mesmo: GIRARDI, Giovana. Relatório do IPCC comprova: o aquecimento global já está aqui. Disponível em: https://apublica.org/2021/08/relatorio-do-ipcc-comprova-o-aquecimento-global-ja-esta-aqui/ Acesso em: 10.08.2021.
[8] SCHUCK, Cynthia; RIBEIRO, Raquel. Comendo o Planeta: Impactos Ambientais da Criação e Consumo de Animais. 2º Relatório SVB sobre os Impactos Ambientais da Criação e Consumo de Animais. 3 ed., 2015.
[9] Johnson KA, Johnson DE. Methane emissions from cattle. J Anim Sci. 1995 Aug;73(8):2483-92.
[10] Todos os dados da FAO encontram-se disponíveis no site: http://www.fao.org/faostat/en/#data/QL/visualize
[11] ECYCLE. Muito além da exploração animal: criação de gado promove consumo de recursos naturais e danos ambientais em escala estratosférica, 2016. Disponível em: https://www.ecycle.com.br/muito-alem-da-exploracao-animal-criacao-gado-promove-gastos-recursos-naturais-danos-ambientais-em-escala-estratosferica-emissoes-gases-uso-agua-terra-alimento-desmatamento-pastagem-residuos-contaminac/ Acesso em: 08.08.2021.
[12] AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS (ANA). Manual de Usos Consuntivos da Água no Brasil. Ministério Do Desenvolvimento Regional (MDR). Superintendência De Planejamento De Recursos Hídricos (SPR). Brasília, 2019. Disponível em: http://www.snirh.gov.br/portal/snirh/centrais-de-conteudos/central-depublicacoes/ana_manual_de_usos_consuntivos_da_agua_no_brasil.pdf?fbclid=IwAR3sVJ4L8CZRinWNOiBVxatH9nJJzLQyigAyUGyO_C3Nsn74mhd2HV-ZGkA. Acesso em: 08.08.2021.
[13] FAO. Livestock's Long Shadow: environmental issues and options. Roma, 2006. Disponível em: http://www.fao.org/3/a0701e/a0701e00.htm. Acesso em 10.08.2021.
[14] FLEISCHATLAS 2021. Daten und Fakten uber Tiere als Nahrungsmittel. Berlim, 2021. Disponível em: https://www.boell.de/sites/default/files/202101/Fleischatlas2021_0.pdf?dimension1=ds_fleischatlas_202. Acesso em: 10.08.2021.
[15] The Good Food Institute (GFI): O Consumidor Brasileiro e o Mercado Plant-Based. Disponível em: https://gfi.org.br/2020/12/07/50-dos-brasileiros-afirmam-reduzir-o-consumo-de-carne/ Acesso em: 10.10.2021.
[16] Sabrina Fernandes é doutora em Sociologia, divulgadora científica e política no canal do Youtube “Tese Onze” e autora dos livros “Sintomas Mórbidos: A Encruzilhada da Esquerda Brasileira” e “Se Quiser Mudar o Mundo”. Seus tweets citados podem ser vistos em: https://twitter.com/teseonze
[17] Do original em espanhol: “No volveremos a la normalidad porque la normalidad era el problema”, mensagem projetada em um muro de edifício em Santiago, Chile, durante protestos em janeiro de 2020.
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