O novo normal

21/08/2020

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

A expressão “novo normal” tem sido utilizada à exaustão para se referir à vida que segue à pandemia. Quase uma utopia, uma Nova Era, o sonho que viria após Woodstock, uma comunidade consciente, um governo olhando por todos e não só pelas minorias mais ricas, uma vida pausada, com respeito ao tempo de cada um, menos trânsito, menos correria, menos poluição. Imagens dos canais de Veneza translúcidos, com direito à participação de golfinhos e outros animais nas fotos para demonstrar que nem tudo está perdido, o meio ambiente também pode ser salvo. Um inédito comportamento impera: sem turismo de massa e com consumo ético.

Tal como ocorreu após o fim da Segunda Guerra, com a pandemia, ganhou força uma retórica anticonsumista[1], mas, como é típico da sociedade de consumo, esse “novo normal” parece mais uma das promessas do Mercado. O canto das sereias de Ulisses, que um dia chamou para o hiperconsumo e para o crédito em profusão[2], muda um pouco de entonação e passa a pregar uma ideia de simplicidade, de vida real, mais humana. Mas, ao menos em grande parte, não passa de espetáculo. É, enfim, mais uma encenação do que, efetivamente, uma mudança de paradigma.

São muitos os exemplos da falácia da promessa de um utópico novo normal e seria preciso muito mais do que uma coluna para os citar. Para começar, a capa de uma notória revista de moda retratou nada menos que a supermodelo Gisele Bündchen, defendendo, de sua mansão e com roupas de grife, a ideia de um mundo menos afetado. Além disso, em alguns lugares onde houve a reabertura do comércio, enquanto os pequenos negócios lutam para sobreviver, as filas de consumidores formam-se à frente de imensas redes. Lojas de luxo batem recordes e oferecem bens inalcançáveis para imensa maioria[3], que luta para não ser esmagada pela realidade de quem precisa sair de casa para trabalhar, que teve o salário reduzido ou perdeu o emprego.

São sinais de que o individualismo que acompanha a Humanidade desde as Revoluções da Modernidade não parece ter cedido espaço ao idílico novo — simples e justo — normal. Afinal, as contradições são muitas. De início, há a defesa da bandeira da simplicidade baseada em artigos caros e de grife que, não nos enganemos, estão na capa de uma revista ou em uma vitrine para serem vendidos. Mais do que isso: quantos terão condições de sustentar o minimalismo quando tantos governos apostam no consumo para manter a economia viva? E, no mundo do crédito que é o Brasil, quantos terão deixado de adimplir as suas prestações ante a crise econômica? Haverá também a pregação de minimalismo, novo normal e maior generosidade entre os credores, para que cumpram com os deveres atinentes à boa-fé objetiva de renegociação ou o sacrifício das conquistas até aqui alcançadas pelos consumidores?

Não é difícil de encontrar a tônica da resposta, já que foram suspensos alguns direitos dos consumidores durante a pandemia, como o de arrependimento nas compras online[4]. Justamente quando, mais do que nunca, se consumiu por esse meio[5]. Que boa notícia haverá quanto à proteção dos que já são, por serem consumidores, vulneráveis[6] ou, dependendo do caso, hipervulneráveis[7]?

Com tanto ocorrendo e as relações econômicas e pessoais, é necessário pensar, então, como ficará o consumidor. Num plano ideal (do qual estamos longe), haveria a consciência de que, na economia, os consumidores possuem um papel essencial, papel que pode ser inclusive político, especialmente no que tange às escolhas feitas, mais ou menos sustentáveis, feitas pelo consumidor[8].

Ante a emergência de uma crise econômica, cabe àqueles que operam o Direito, endossar as promessas da Constituição, que acarretaram, dentre outros diplomas, o Código de Defesa do Consumidor e não permitir retrocessos. No âmbito do direito do consumidor, tão intrínseco à economia, é imperioso especial cuidado, pois é fácil acreditar nas reclamações do Mercado e extinguir direitos sob o pretexto de manter a economia funcionando.

Não se está, aqui, defendendo que as relações de comércio não devam existir, nem que haja abandono das sociedades pelos Governos, apenas se pede respeito às garantias conquistadas, sem que haja um retorno à pretensa liberdade da Era Moderna, em que apenas aqueles figuras jurídicas eternizadas pelas codificações (o proprietário, o empresário, o pai de família, o indivíduo, para citar alguns exemplos) recebiam alguma proteção.

Mais do que o minimalismo ou uma nova forma de consumo, o porvir reserva, ao meu ver, tempos difíceis, com mortes para serem choradas, desemprego e dívidas que não poderão ser quitadas se mantidas as condições inicialmente previstas. Nesse novo — e duríssimo — normal, cabe, com muita força, preconizar a solidariedade social, valor previsto na Constituição Federal, a qual deve ser o guia para todas as relações, incluindo nelas as contratuais, especialmente aquelas que versam sobre bens e serviços existenciais, e, claro, de consumo. Será necessária a cooperação de todos para manter esses pactos equilibrados, visando ao seu cumprimento. Talvez assim se alcance a idílica normalidade, sem espetáculo, mas com efetiva cooperação.

 

Notas e Referências

[1] “Según la retórica anticonsumista — que fue particularmente influente en la segunda posguerra —, el consumo, reprobado en su ropaje moderno como ‘consumismo’ o ‘cultura de consumo’ (consumer culture), trajo aparentado un empobrecimiento espiritual, por el cual se recurre a los bienes materiales como sustitutos de aquellos otros tradicionales modos de satisfacción, autorrealización e identificación que tenían lugar en la esfera del trabajo y de la participación política”. SASSATELLI, Roberta. Consumo, cultura y sociedad. 1. ed. Trad.: Heber Cardoso. Buenos Aires: Amorrortu, 2012. p. 166.

[2] CATALAN, Marcos; UEQUED PITOL, Yasmine, Primeiras linhas acerca do tratamento jurídico do assédio do consumo no Brasil, Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, v. VII, n. 25, p. 137–160, 2017.

[3] DESIDÉRIO, Mariana. “Hermès Reabre Loja Na China e Vende US$ 2,7 Milhões Em Um Dia.” Exame, 15 Abr. 2020, exame.com/negocios/hermes-reabre-loja-na-china-e-vende-us-27-milhoes-em-um-dia/. Acessado em: 5 Ago. 2020.

[4] Já tivemos a oportunidade de nos manifestar sobre isso: CATALAN, Marcos; GERCHMANN, Suzana Rahde Se eu estiver a ser sincero hoje, que importa que tenha de arrepender-me amanhã?. Empório do Direito, Florianópolis, 08 abr. 2020. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/se-eu-estiver-a-ser-sincero-hoje-que-importa-que-tenha-de-arrepender-me-amanha>.

[5] AGÊNCIA BRASIL. Hábito de consumo adquirido na pandemia deve permanecer após covid-19. economia.uol.com.br. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/05/18/habito-de-consumo-adquirido-na-pandemia-deve-permanecer-apos-covid-19.htm>. Acesso em: 8 Aug. 2020.

[6] “(…)Vulnerabilidade, mais que presunção legal criada no intuito de avalizar e orientar a tutela de todo aquele que venha a ocupar situação jurídica de consumidor em uma relação que o ate, direta ou indiretamente, a um agente de mercado, há de ser semioticamente percebida como o axioma que justifica e impõe a efetiva proteção de um grupo deveras heterogêneo de seres humanos e que é responsável por impulsionar, aproximadamente, dois terços de toda a riqueza que circula anualmente no Brasil”. CATALAN, Marcos Jorge. Uma ligeira reflexão acerca da hipervulnerabilidade dos consumidores no Brasil. In: Ricardo Sebastián Danuzzo. (Org.). Derecho de daños y contratos: desafíos frente a las problemáticas del siglo XXI. 1ed.Resistencia: Contexto, 2019, v. 1, p. 35-50. p. 36.

[7] “É preciso ter em mente que, ao redor dessa provocação, gravitam importantes aspectos, dentre os quais merece destaque o fato de que a qualificação de um grupo como hipervulnerável implica na necessária tutela diferenciada — no âmbito consumerista — de toda pessoa que o integre, portanto, de todo aquele que venha a ser tratado pelo Direito como mais vulnerável do que outros”. CATALAN, Marcos Jorge. Uma ligeira reflexão acerca da hipervulnerabilidade dos consumidores no Brasil. In: Ricardo Sebastián Danuzzo. (Org.). Derecho de daños y contratos: desafíos frente a las problemáticas del siglo XXI. 1ed.Resistencia: Contexto, 2019, v. 1, p. 35-50. p. 41.

[8] “The emphasis on regulation and governance in the field of critical consumption studies is timely and well justified. Consumers can be active, but much is not really up to them. Surely one way to stabilise consumer practices, and in particular to internalise concerns for fairness and the environment into the economic calculus, is to regulate commodity circuits so that these concerns are literally taken into account (such as in legal requirements) and, indeed promoted, (such as in the setting of targets and budgets and in established procedures). Consumers’ grassroots ethical initiatives may otherwise be easily subsumed within ‘business as usual’, and the externalising, instrumental, profit-driven market logic”. SASSATELLI, Roberta, Consumer Culture, Sustainability and a New Vision of Consumer Sovereignty, Sociologia Ruralis, v. 55, n. 4, p. 483–496, 2015. p. 488.

 

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