Neoinquisidores perderam ontem e não se deram por vencidos. O dono da bola quer sangue com a redução da “maioridade penal”

01/07/2015

Por Alexandre Morais da Rosa e Maurilio Casas Maia - 01/07/2015

“Há uma coisa apenas que excita os animais mais que o prazer: a dor”

Umberto Eco

A ira e a insatisfação dos perversos e sedentos por punição, no mais lídimo populismo penal, não aceita derrotas. Perdem e querem voltar, com manobras escusas e regimentais. É a estratégia de manter a população entretida enquanto são investigados em outros processos penais. Cada um de nós sabe quem votou e como votou. São, na sua grande maioria, populistas de ocasião, incapazes de perceber a dimensão de suas deliberações. Como já foi dito, trata-se de operação “muda o foco” (aqui). Sabem que com a manobra perderão no Supremo Tribunal Federal, mas querem posar de mocinhos.

Recentemente, os defensores da redução da “maioridade penal” declararam que a falta de condições na cadeia não poderia impedir menor de ser preso – sim, esqueceram totalmente da Constituição com sua dignidade humana e o dever de tutela do melhor interesse da criança, do adolescente e do jovem. Porém, argumentou-se mais em favor da famigerada redução da “maioridade penal”. Sabe quem pagará os custos disso tudo? Nós leitores, dado que toda uma burocracia inexistente deverá ser criada para fazer frente ao disparate do alucinado Congresso Nacional (aqui).

A ideia dos neoinquisidores seria declaradamente tirar de circulação aqueles que cometeram crimes até porque a questão da recuperação social seria pauta "secundária". Ora, “recuperar” seria questão meramente secundária porque o alvo dessa política de guetificação prisional da adolescência não é um filho, parente ou amigo desse “cidadão de bem” e ainda porque esse “good citizen” acredita piamente que jamais seus herdeiros estarão envolvidos em situações tais a exigir reprimenda penal...

A vontade de “tirar de circulação” o adolescente-infrator é nitidamente o que Wacquant (2011, p. 106) chamou de simbiose estrutural e funcional entre o gueto segregador e a prisão que aparta. Em verdade, face ao notório estado fático de inconstitucionalidade do sistema carcerário brasileiro, o gueto prisional deveria mudar de nome e chamar-se, simplesmente, de inferno.

Isso porque se, no passado, a figura divina já foi utilizada pelos inquisidores para justificar o ataque sobre o inimigo daquela época, atualmente, a sociedade passou a ocupar o lugar do divino na justificação de remessa dos inimigos ao inferno – hoje, presídio brasileiro.

Na era do antigo processo inquisitorial, o ofendido era Deus – e o projeto de Estado era enfocado no Deus e no Soberano (CASARA; MELCHIOR, 2013, p. 209). Na atualidade, o maior ofendido dos crimes é a tal sociedade e o enfoque do projeto estatal vem na “pessoa” desse corpo coletivo e em grande parte nos seus representantes eleitos – geralmente integrantes da “elite voadora”, citada por Bauman (2003, p. 106), ou seja, aqueles que conhecem das coisas sociais a partir de uma distante e superficial visão aérea dos fatos.

No passado, o estranho, o inimigo dos inquisidores eram as bruxas, os hereges. No século XIII, o florescer da inquisição veio com o reconhecimento dos crimes de lesa-majestade e a acusação passou a ser obrigatória e pública – leciona Ferrajoli (2014, p. 521). Hoje, têm-se os “crimes de lesa-sociedade” praticados por adolescentes-infratores para os quais o suposto eixo do sistema (o soberano, alguns representantes da sociedade) quer o abandono de possibilidades educativas e despenalizadoras – tais como a remissão (suspensiva ou extintiva), para substituí-la por uma acusação pública e obrigatória do processo penal de herança autoritária, o processo “porta do inferno prisional”. São os bodes expiatórios da vez (René Girard).

Qualquer semelhança com o histórico inquisitorial não é mera coincidência. A alma dos inquisidores permanece viva no (in)consciente dos populistas penais brasileiros e dos entusiastas do processo penal do espetáculo (CASARA, 2015). Para tais sujeitos, vingar é preciso.

A vingança, porém, não vem em nome de Deus, à moda dos antigos inquisidores. O neoinquisidor é um vingador da sociedade, sedento por enviar sua quota-parte de almas pecadoras ao inferno prisional para que encontrem sua redenção e socialização no isolamento gueto infernal – onde não podem incomodar o status quo celestial dos ansiosos por higienização e defesa social a qualquer custo – pouco importando para estes a ocorrência ou não de sacrifício dos termos constitucionais.

Com efeito, o paradigma inquisitorial ainda não foi superado pela sociedade brasileira, mormente por sua natureza autoritária (CASARA; MELCHIOR, 2013, p. 233) – característica essa que remonta das imposições dos colonizadores às mais recentes heranças ditatoriais, perpassando pelo Código de Processo Penal de lastro facista (CASARA; MELCHIOR, 2013, p. 235).

Em suma, para o (in)consciente populista penal dos neoinquisidores entusiastas do processo penal do espetáculo é assim: de Deus à sociedade; dos crimes de lesa-majestade aos crimes de lesa-sociedade; das bruxas ao adolescentes-infratores; das fogueiras às prisões, aliás, corrija-se, ao inferno prisional brasileiro. Enfim, qualquer semelhança não é mera coincidência. Querem tornar o In dubio pro Hell a regra de todas as idades (Alexandre Morais da Rosa e Salah Khaled Jr).


Referências

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

CARVALHO, Salo de. Revisita à desconstrução do modelo jurídico inquisitorial. In: WOLKMER, Antônio Carlos. (Org.) Fundamentos de história do direito. 8ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2014, p. 299-320.

CASARA, Rubens R. R. MELCHIOR, Antônio Pedro. Teoria do Processo Penal Brasileiro: dogmática e crítica – conceitos fundamentais. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

CASARA, Rubens R. R. Processo Penal do Espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo Penal. 4ª ed. São Paulo: RT, 2014.

NASPOLINI, Samyra Haydêe. Aspectos históricos, políticos e legais da inquisição. In: WOLKMER, Antônio Carlos. (Org.) Fundamentos de história do direito. 8ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2014, p. 283-298.

ROSA, Alexandre Morais da. AMARAL, Augusto Jobim. Cultura da punição: A ostentação do horror. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

______. KHALED JR., Salah H.; MORAIS DA ROSA, Alexandre. In dubio pro Hell: profanando o sistema penal. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2014.

______. ______.; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Neopenalismo e constrangimentos democráticos. Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015.­­­

WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. 2ª ed. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

WOLKMER, Antônio Carlos. (Org.) Fundamentos de história do direito. 8ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2014.


Alexandre Morais da Rosa

Alexandre Morais da Rosa é Professor do Curso de Direito da UNIVALI-SC. Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                


Maurilio Casas Maia é Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-Graduado lato sensu em Direito Público: Constitucional e Administrativo; Direitos Civil e Processual Civil. Professor de carreira da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Defensor Público (DPE-AM).

Email:  mauriliocasasmaia@gmail.com                                                                                     


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