“Não temos provas, mas temos convicção”?: o que o clamor na denúncia contra Lula tem em comum com o caso das condenações no Carandiru - Por Jorge Coutinho Paschoal

06/10/2016

Por Jorge Coutinho Paschoal – 06/10/2016

Nas últimas, semanas, muito se falou sobre a frase (a qual, em realidade, não existiu[1]) supostamente proferida pelos Procuradores da “Operação Lava Jato”, ao oferecerem a denúncia contra o Presidente Luis Inácio Lula da Silva: “não temos provas, mas temos convicção”. Muito se criticou esta “asserção”, bem como toda a influência da mídia e o aspecto sensacionalista como foi exposto o caso.

Recentemente, contudo, veio a notícia quanto à anulação do júri no caso dos diversos policiais militares condenados pelo que ficou intitulado (pela própria imprensa) como o massacre do Carandiru.

A decisão tem sido muito criticada, quer pelos meios de comunicação em massa, quer pela comunidade (inclusive a jurídica), contudo, pelo argumento inverso ao usado para se criticar o caso de Lula: o que neste caso se afirma ser fruto do punitivismo (enfim, como pontuam alguns, perseguição a todo o custo, fruto da exploração midiática), no caso do Carandiru (punição dos policiais, ainda que não seja individualizada a conduta de cada um) é visto como normal e até louvável.

Aliás, diferentemente de alguns casos, é raro escrever sobre o caráter sensacionalista da imprensa, sobretudo em casos com os quais o analista concorda com a condenação (independentemente de haver razão ao Ministério Público na sua acusação, ninguém nega a exploração da mídia neste processo, o que nos parece normal – nós não somos refratários à atuação da imprensa, ainda que haja abusos -, pois se trata de um caso de inquestionável interesse público).

Institutos que, em tese, visam a resguardar direitos e garantias fundamentais, focados nos direitos de defesa do acusado (obviamente, reputo, seja ele quem for), criticam a solução aplicada na decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que não se trata de um in dubio pro reo, muito embora, na prática, tenham os Julgadores assim entendido.

Na decisão proferida pelo TJSP, reputou-se inexistirem provas de que todos os policiais militares acusados tivessem participado no que ficou consagrado como um massacre, apontando-se não haver sequer a individualização das condutas, sugerindo-se, neste ponto, até um vício da inépcia, que levaria a extinção do processo.

O Tribunal não chegou a tanto, entendendo por anular o veredicto, tendo-se remetido o caso para novo Júri.

Particularmente, não sei se a decisão foi justa. Tenho a convicção que muitos (o que não significa que todos tenham atuado criminosamente) possam ter se aproveitado da situação para agirem como assassinos.

Alio-me, no ponto, à observação do Professor Titular de Direito Penal da Universidade de São Paulo, Renato de Mello Jorge Silveira, ao expor: “que se diga que o que se deu em 2 de outubro de 1992 foi algo abjeto. A morte de mais de uma centena de presos rebelados por parte da Polícia Militar dificilmente poderia ser justificada. Crimes, erros e equívocos foram, sem dúvida presentes. Enquanto operação de retomada da antiga Casa de Detenção, parece, sim, ter havido alguma sorte de abusos[2]. Contudo, por não ser um juiz do caso, não tenho nem tive contato (ou analisei) as provas.

Seja como for, lendo-se o acórdão, verifica-se que, do ponto de vista técnico, não está equivocada a decisão, pois a fundamentação encontra sustentação em vários livros de Direito e em diversas teses jurídicas defendidas em Direito Penal e Processo Penal, nas mais renomadas Faculdades de Direito do país. Afinal, na vertente de um Direito Penal Mínimo, de Luigi Ferrajoli, havendo dúvidas razoáveis, é preferível a absolvição de um culpado à condenação de um (ou vários) inocente(s). A argumentação que foi posta na decisão faz sentido, tendo em vista o que se aprende na Faculdade de Direito.

Como qualquer cidadão alheio aos autos do processo, é por meio da decisão judicial que se pode fazer um juízo de valor e controle se, a princípio, a solução conferida ao caso parece, ou não, justa. Se ela foi, ou não, justa, só lendo os autos, para se ter essa certeza (e, ainda assim, trata-se de entendimento subjetivo, pois o que é prova para uma pessoa pode não ser suficiente para outra).

Eu não li os autos (reputo que muitos dos críticos também não tenham lido)! Contudo, a motivação que foi exarada tem base sólida, do ponto de vista técnico-jurídico. Se os Desembargadores adota(ra)m a mesma sistemática em outros casos, é uma questão que deve ser indagada, pois nada nem ninguém está acima de questionamentos.

O muito curioso – e é objeto deste artigo - é que a linha da argumentação esposada, no acórdão, está em consonância com muitos dos argumentos usados para se criticar a denúncia que foi oferecida na Lava Jato, objeto de muitas críticas: no caso de Lula, não obstante muitos já concluam ser a acusação inepta, vê-se com perplexidade que vários adeptos desta mesma posição censurem, com toda a certeza, a anulação no caso do Carandiru, tida por incorreta, ainda que, como pontuado no acórdão, não tenha havido a individualização das condutas de todos os envolvidos, condenando-se em bloco.

Não vou fazer juízo de valor de cada um desses casos concretos, nem do Presidente ou de todos os policiais envolvidos no caso do Carandiru (muito embora, eu já tenha as minhas impressões acerca de cada um deles): chama a atenção, entretanto, que os discursos mudem tanto, de forma tão radical, conforme os atores envolvidos.

Muito se fala em Direito Penal Autor, mas, talvez, pouco se entenda, na prática, dessa teoria, já que muitos de seus adeptos se ignoram: afinal, se, de um lado, o acusado é simpático à causa do intérprete, oferece-se ampla proteção, mas se ele é antipático, de algum modo (e, muitos, quando se trata da polícia militar, pressupõem a prática de crime e abusos), aí então se pode tudo: condenação exemplar, ainda que haja dúvidas razoáveis, com a mais ampla e irrestrita execração pública e exploração midiática. Algo não se encaixa em discursos tão inflamados, mas aparentemente antagônicos.

Seja a pessoa investigada ou ré (ou mesmo a vítima) civil ou policial militar, hetero ou homossexual, branco ou negro, letrado ou humilde, rico ou pobre, homem ou mulher, do partido x, y ou z, o ponto que se deve ter é este: não se pode partir de pressupostos e máximas ou dogmas inquestionáveis no processo penal, sejam quais forem.

Aí está o grande mal! Os gestores atípicos da moral, conforme diria o Professor Renato de Mello Jorge Silveira[3], ou as militâncias de todos os tipos, ao incutirem “verdades” absolutas conforme o agressor (ou a vítima) seja(m) A, B ou C (por exemplo, para uma feminista radical, bastaria a alegação de estupro ou de agressão em face um homem para se condená-lo), acabam deturpando os princípios e as linhas que devem reger o processo penal e uma apuração realmente séria e justa.

Não se trata de proteger (tampouco, por outro lado, de perseguir) quem quer que seja! Na verdade, uma boa investigação não pode fechar os seus olhos para qualquer hipótese: se é bastante crível ou provável que possa ter havido um massacre, é ponderável ter em vista que a ação de muitos policiais possa ter sido regular, sendo que nem todos os agentes tenham agido como assassinos.

Eis o ponto cerne do presente artigo: é a possível incongruência com que são tratados os dois casos mencionados. Ora, se no caso do Presidente Lula, muitos clamam por provas “plenas”, já no momento da DENÚNCIA, parece incongruente que, no caso do Carandiru, quando do momento da SENTENÇA, critique-se a absolvição proferida, por se entender, neste caso, que bastaria a “dúvida para se condenar” (frise-se, condenar todos os réus, ainda que não individualizadas as condutas), afinal, a rigor, haveria uma convicção de cada qual de que o que se deu foi um massacre!

Precisa-se de mais coerência (e menos militância), para não incorrer em contradições.


Notas e Referências:

[1] Cf.: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/09/1813692-frase-de-procurador-sobre-provas-e-conviccao-nao-foi-dita-como-divulgado.shtml.

[2] SILVEIRA, Renato Jorge Mello. Dejá vu Penal. In: http://jota.uol.com.br/deja-vu-penal.

[3] Que, aliás, concluir acerca do caso do Carandiru: “...Dez anos depois, as discussões são em tom muito similar. Outros tantos atores judiciais também, à época, se manifestaram. Todos, como hoje, merecem respeito. Mas, talvez, fosse fundamental recordar a diferença entre as colocações técnicas e as emocionais ou políticas, sob pena de sempre se voltar ao mesmo estado de discussão que um dia anterior. Mais do que tudo, por qualquer parte que se pretenda simpatizar, é forçoso dizer que convicções não podem sustentar nenhum julgamento, nem mesmo em massacres” (SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Dejá vu Penal. In: http://jota.uol.com.br/deja-vu-penal).


Jorge Coutinho Paschoal. . Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .


Imagem Ilustrativa do Post: Teresa Margolles, Muro Baleado / Shot-Up Wall, 2008 // Foto de: Andrew Russeth // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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