Mulheres refugiadas: o grau negativo da humanidade

15/07/2016

Por Thais Silveira Pertille – 15/07/2016

“O refugiado é o grau zero da humanidade” (DOUZINAS, 2009, p. 155). Se a máxima de Costas Douzinas define a condição humana em meio à crise migratória internacional, ser mulher e refugiada, então, é padecer em graus negativos de humanidade.

Conforme Avaliação de Campo realizada pelo Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), em parceria com outras organizações internacionais, “Mulheres e meninas refugiadas e migrantes que se deslocam pela Europa enfrentam graves riscos de violência sexual e de gênero” (ACNUR, 2016). De acordo com estudos realizados em 2015 por essa organização, o gênero feminino representa o grupo mais vulnerável dentre os refugiados, corroborando a necessidade de especial atenção às vias de proteção às mulheres refugiadas.

No Brasil, o Comitê Nacional de Refugiados (CONARE), criado pela Lei 9.474/97, apresenta-se como órgão responsável pelo reconhecimento do status de refugiado aos solicitantes. Segundo André de Carvalho Ramos, trata-se do principal órgão de proteção aos refugiados, com uma função de fundamental importância na orientação e coordenação de todas as ações necessárias para prover eficácia à proteção, assistência e apoio às pessoas nessa situação (2010, p. 349). Ainda assim, o ACNUR entende que o Comitê brasileiro precisa melhorar sua atenção em relação aos grupos de maior vulnerabilidade, mostrando-se imprescindível a criação de procedimentos específicos que se revelem aptos a atender determinadas peculiaridades. Ressalta a importância de oferecer proteção distinta diante de demandas naturalmente diferentes que certas pessoas apresentam, dando sustento à noção de universalização da dignidade humana a partir de contextos concretos. Conforme Luigi Ferrajoli, a lei cega ao gênero ignora e desvaloriza as diferenças em nome de uma abstrata afirmação de igualdade que se baseia em uma falsa universalização do sujeito masculino e na igualdade das mulheres por assimilação (1999, p. 173).

Acerca da universalidade dos direitos humanos pensada sob uma perspectiva real de atuação, Joaquin Herrera Flores trabalha um universalismo de confluência, o qual vai de encontro à ideia tradicional dos direitos humanos que tem o universalismo como um ponto de partida. Na visão do autor, é possível que a humanidade desfrute desses direitos em todos os pontos do globo, no entanto, terá que partir de uma construção rumo à universalidade. A universalidade é, então, objetivo, não parâmetro para aplicação de categorias genéricas e abstratas. Sustenta ao autor que sua negativa está em “considerar o universal como um ponto de partida ou um campo de desencontros. Ao universal há que se chegar – universalismo de chegada ou de confluência – depois (não antes de) um processo conflitivo, discursivo de diálogo” (2009, p. 77).

Nesse contexto, mesmo que o Brasil conte com a existência de uma lei específica para a proteção dos refugiados (sempre importante enfatizar que a Lei 9.474/97 é tida como referência internacional), a proteção específica que a necessidade feminina demanda pressupõe adaptações do sistema jurídico nacional para que se estabeleça o funcionamento deste diante das próprias questões que envolvem o tratamento de gêneros. Segundo a autora Carmem Miguel Juan, por muito tempo o “problema” de gênero foi tratado em termos de igualdade e diferença, como se fosse suficiente entender o que é diferente nas mulheres para conseguir igualdade material com os homens. Porém, nas últimas décadas, a questão tem sido transladada da concepção de domínio e subordinação, deixando-se de lado as diferenças, passando-se a compreender que as diferenças são criadas pelas diversas pelas formas de se administrar o convívio social, sendo uma delas o próprio direito (2016, p. 104). Em outras palavras, o problema da discriminação de gênero pode ser visto consequência do processo de positivação, concluindo-se, portanto, que o estado de exceção sobre o qual se debruça o humanismo jurídico talvez não seja, de fato, excepcional, mas sim consequência natural e, arrisca-se dizer, até mesmo prevista pelo Direito.

São muitas as demandas específicas que envolvem as mulheres no âmbito dos refugiados, proporcionais à diversidade dos modos de violência que sofre o gênero, pois não bastasse o enfrentamento das questões naturais que envolvem a diáspora, a simples razão de pertencerem ao sexo feminino as fragiliza ainda mais. A condição de mulher, em situação que logicamente não se limita ao ambiente das refugiadas, potencializa a exposição dessas pessoas àquilo que Marcia Tiburi classifica como “seres estupráveis”. Sustenta a autora que ser mulher em muitos contextos sociais é condição autorizadora do machismo. Aliás, parecer-se com uma já preenche requisito para ser estuprável, o que parece legitimar muitos homens a uma espécie de “direito” arcaico de estuprar, uma forma de punição imposta para aquelas que ultrapassam os limites estabelecidos pelo macho organizador das regras.

Em entrevista realizada por representantes da ONU, refugiadas relatam “terem sido forçadas a manter relações sexuais como moeda de troca para "pagar" pelas documentações necessárias para viajar ou mesmo pela própria viagem” (ACNUR, 2016). Em muitos desses casos a urgência em deixar o local de origem era tão grande que mulheres nem sequer relataram os abusos, temendo arriscar suas vidas e as de seus familiares. É nessa perspectiva de medo que as refugiadas têm potencializadas as violações aos seus direitos, sofrendo, desde a decisão de deixar para trás o que lhes era de afeto, até os abusos praticados contra si durante o caminho.

A cultura do estupro diz respeito às “maneiras em que a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos homens” (ONU, 2016), padrão no qual o consentimento da mulher não é valorizado, e em todo ato o que conta é a satisfação masculina, contexto no qual o homem atua “com o aval da falta de reconhecimento, de respeito e até de empatia para com o outro” (Tiburi, 2015, p. 101).

O Outro, esse ser que, conforme Emmanuel Levinas, está infinitamente distante do Eu, assim como infinita a responsabilidade que há entre eles, uma vez que, só no Outro o Eu tem capacidade de aprender, evoluir, de exercer humanidade. A tudo que o Eu for interpelado pelo Outro tem o dever de resposta, pois, essa responsabilidade tem ainda a característica de ser indelegável, vez que, Deus não está nas relações humanas e, portanto, não há a quem se transfira o dever do Eu para com o Outro (Levinas, 1997, p. 123).

A ética de alteridade, por conseguinte, acarreta “consciência de uma responsabilidade infinita para com a alteridade do outro” (SIDEKUM, 2013,p. 06) e evidencia a “necessidade do ateísmo como referencial da ruptura da humanidade com seus mitos e da indelegabilidade da responsabilidade pelo outro” (PEREIRA, 2011, p. 165). Conforme Costas Douzinas, essa demanda do Outro pela responsabilidade do Eu “precede minha liberdade ontológica e a torna ética, a aceitação de uma vocação a qual somente eu posso responder quando conclamado. Ser livre é fazer o que ninguém mais pode fazer em meu lugar” (2009, p. 356).

Entende-se, portanto, que a questão da proteção das mulheres refugiadas não deve ser tratada exclusivamente sob a perspectiva legal, dado que a lei, apesar de fator essencial na efetividade dos direitos humanos, tem o condão paradigmático de criar os problemas aos quais se posta a combater. A condição de mulher e refugiada mostra-se como um dos tristes exemplos de como é o próprio direito com seus mecanismos de normatização que acaba por promover as exclusões que, num segundo momento, tenta tutelar sob a justificativa dos direitos humanos. E isso acontece porque a tão propagada universalização dos direitos humanos provém de ideal baseado no homem stricto sensu, o qual desfigura e subjuga a mulher fechando os olhos às suas necessidades particulares em uma tentativa profana de igualdade. Essa situação, no contexto das mulheres refugiadas, fica evidente quando da análise das leis destinadas à proteção dos refugiados, pois desconsideram as nuances específicas dos grupos de vulnerabilidade existentes, especialmente o da mulher que, tendo a sorte de chegar viva ao país de acolhida, talvez jamais recupere a dignidade que lhe foi tomada pelo simples fato de ser mulher, mulher refugiada.


Notas e Referências:

http://www.acnur.org/portugues/noticias/noticia/mulheres-refugiadas-que-se-deslocam-pela-europa-estao-correndo-riscos-afirma-a-onu/ Acesso em: 09/07/2016

https://nacoesunidas.org/por-que-falamos-de-cultura-do-estupro/> Acesso em: 09/07/2016

FERRAJOLI, Luigi. “Igualdade y diferencia”, Derecho y Garantías. La ley del más débil, Madrid, Trotta. 1999.

FLORES, Joaquim Herrera. A (re)invenção dos direitos humanos. Fundação Boiteux. Florianópolis. 2009.

JUAN, Carme Miguel. Refugiadas – Una mirada feminista al derecho internacional. Editora Catarata. Madrid. 2016.

LEVINAS, Emmanuel. Entre nós. Ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1997.

RAMOS, André de Carvalho. Non-refoulement no direito dos refugiados. Revista dos Tribunais. Vol. 892/2010, p. 347 – 376. Fev / 2010.

TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista. Editora Record. Rio de Janeiro. 2015


Thais Silveira Pertille. Thais Silveira Pertille é Acadêmica da décima fase do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina e estagiária do Ministério Público Federal, Procuradoria da República em Santa Catarina. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Darfurians refugees in Eastern Chad // Foto de: EU Humanitarian Aid and Civil Protection // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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