MP 703 é um passo à racionalização dos acordos de leniência

06/02/2017

Por Fernando Hideo I. Lacerda – 06/02/2017

Em artigo publicado na Conjur nesta segunda-feira (11/01), os promotores de justiça Roberto Livianu e Marcelo de Oliveira classificam a Medida Provisória 703 como “aberração jurídica afrontosa à CF”. Convém a reflexão: seriam mesmo as novas disposições uma aberração ou uma tentativa de racionalizar um instituto antes inaplicável?

De plano, cumpre destacar as duas principais alterações: (i) ampliação do âmbito negocial para alcançar a unificação das esferas administrativas (ações de improbidade administrativa e ilícitos relacionados à Lei de Licitações) e os crimes contra a ordem econômica ― o que não é uma novidade, pois tais delitos já são objeto de celebração de acordos com o CADE desde o ano de 2011 ―; e (ii) reforço aos mecanismos de compliance. Em síntese, essas são as duas pernas pelas quais caminha a tentativa de racionalização do sistema.

Não menos importante, é preciso sublinhar que (i) permanece de fora do acordo de leniência a responsabilização penal referente aos crimes contra a administração pública (destaque para as condutas tipificadas como corrupção), (ii) a ampliação do acordo para as demais esferas de responsabilização pressupõe a participação das entidades processantes, inexistindo supressão de competência e (iii) foi intensificado o controle do Tribunal de Contas referente à reparação do dano (art. 6º, § 14). Nessas condições, difícil enxergar a impunidade que os críticos atribuem à reforma legislativa.

Certo é que o direito não pode ser dissociado da realidade e há um fato muito significativo: nos quase dois anos de vigência da chamada Lei Anticorrupção, nenhum acordo de leniência foi celebrado em âmbito federal. Qual será a razão desta inaplicabilidade prática?

Não raro, o distanciamento da situação nos subtrai a capacidade de análise do razoável. Utilizemos, pois, a imaginação: você é o presidente do seu time de coração. Embora haja diversas especulações acerca da manipulação de resultados pela arbitragem no futebol profissional, nunca lhe chegaram quaisquer evidências concretas de que isso poderia estar de fato ocorrendo justamente no seu clube e, ao longo de sua gestão, não houve qualquer denúncia em relação a isso. Rumores há ― desde a época de Charles Miller, dizem alguns ―, mas nada concreto que pudesse dar ensejo a uma apuração.

Certa feita, o sucesso do clube que você preside transcende o já usual incômodo aos adversários e materializa-se em perseguição seletivamente direcionada. Embora haja notícia de que diversos clubes estejam envolvidos em irregularidades, o êxito alcançado nos últimos anos faz com que se torne o alvo a ser perseguido. Já se disse que caso um policial siga um carro por tempo o bastante, encontrará um farol quebrado; e mesmo se não encontrar, é capaz de quebrar um.[1] E lá está o farol quebrado: encontram-se algumas suspeitas de que um executivo do seu clube patrocinava esquema de manipulação dos resultados perante árbitros da federação.

Diante de todo clima de rejeição ao clube forjado pelos adversários e alimentado pela mídia, há clara possibilidade de aplicação de sanções severas e tenebrosas, tal como o banimento definitivo da equipe de todas as competições nacionais e internacionais, ainda que as provas não sejam robustas e muitas delas estejam baseadas nas palavras de inimigos ou traidores.

Nesse contexto, lhe é oferecido um acordo. Seu clube perderá os pontos dos jogos suspeitos, indenizará as outras equipes e os organizadores dos torneios (reparação do dano), ficará proibida de contratar jogadores por duas temporadas, deverá pagar uma multa e será rebaixado de divisão (sanções) e, em contrapartida, a Federação local admitirá que o clube permaneça disputando os torneios que organiza.

Você pensa na paixão que envolve o esporte, no envolvimento dos milhões de torcedores e na perspectiva de possíveis sanções ainda piores caso venha a ser reconhecida a culpa após um processo. As provas são frágeis, mas sabe-se lá o que pode surgir e imagina-se um julgamento tomado pelo clamor à época alimentado pela mídia. Inicialmente, o acordo parece razoável.

Ocorre que a única entidade envolvida na celebração do acordo é a Federação local. A Confederação nacional e as Federações internacionais não estão habilitadas a participar das negociações, implicando na condição de que seu clube poderá disputar o campeonato regional, porém ficará de fora dos torneios nacionais e internacionais por tempo incerto. Ainda assim pareceria justo?

Pouco provável, porque a natureza dos acordos em questão pressupõe uma relação sinalagmaticamente equilibrada, que faça sentido para ambas as partes. Na condição de presidente do seu time de coração, você provavelmente estaria disposto a aceitar a reparação do dano e o cumprimento de sanções sem processo desde que recebesse prestação razoável em contrapartida. No caso, o mínimo que se esperaria é que o acordo devesse valer para todas as entidades e que, desse modo, o seu clube tivesse condições de reerguer e retomar a condição anterior agora de forma digna.

Nesse sentido, o acordo de leniência, que antes se limitava aos atos lesivos à administração pública disciplinados pela Lei Anticorrupção e apurados pela Controladoria Geral da União, passa a ser potencialmente estendido às implicações decorrentes dos mesmos fatos em relação à Lei de Licitações e à Lei de Improbidade Administrativa, desde que as entidades competentes para seu processamento também participem da celebração.

A primeira conclusão, portanto, é que a unificação das esferas administrativas, longe de um estímulo à impunidade, é o mínimo que se pode exigir para alcançar um equilíbrio sinalagmático na celebração dos acordos de leniência. Ao acrescentar expressamente a possibilidade de participação das entidades envolvidas na apuração dos fatos (Ministério Público, CADE, Tribunal de Contas, Advocacia Pública e Ministérios da Justiça e da Fazenda), a MP 703 estrutura de forma mais racional a dinâmica envolvida nas negociações, mantendo a necessidade de reparação dos danos causados e sem interferência na apuração penal dos crimes contra a administração pública.

Dessa forma, a tendência é que finalmente, após quase dois anos de vigência, os acordos de leniência deixem de figurar somente no texto da norma para se tornar realidade. Inegavelmente é um avanço, pois ou bem estruturamos o instituto de forma a viabilizar a sua aplicação ou eliminamos a sua existência jurídica. O êxito obtido no direito internacional, ao compatibilizar a reparação dos danos com o interesse nacional no desenvolvimento econômico e social, aponta para a primeira opção.

Mas não é só. A segunda perna na tentativa de racionalização do sistema passa pelo fortalecimento dos mecanismos de compliance. Na medida em que o objetivo seja, realmente, o combate à corrupção endêmica, mais do que uma caça seletiva às bruxas é necessário fortalecer os mecanismos internos de integridade e fomentar uma cultura política e empresarial ética.

Com relação a este aspecto, são extremamente bem-vindas as alterações que passam a exigir a cooperação com as investigações e o comprometimento da pessoa jurídica na implementação ou melhoria de mecanismos internos de integridade, auditoria, incentivo às denúncias de irregularidades e à aplicação efetiva de código de ética e de conduta como requisito para celebração de acordo de leniência.

Desmerecido por muito tempo em nosso ordenamento jurídico ― embora seja matéria cotidiana no direito alienígena, notadamente por influência estadunidense ― o tema compliance passou a ter maior relevância no julgamento da AP 470 (Mensalão), especialmente em relação ao chamado núcleo financeiro.

No caso, para fundamentar uma das condenações, afirmou-se que a ré “era nada mais nada menos, do que Vice-Presidente do banco; Vice-Presidente de uma área chave, que é a área de compliance. O que é compliance? É, nada mais nada menos, do que a área incumbida de fazer com que se cumpram, dentro da instituição, as normas internas e externas, o ordenamento jurídico nacional pertinente àquela área, que no caso era a área bancária, financeira".[2]

Num contexto de indevida expansão do direito penal a mares dantes pouco navegados, destacando-se a aplicação distorcida da teoria do domínio do fato e a ampliação da relevância penal da omissão imprópria, convém analisarmos com cautela as questões referentes ao compliance, que consiste basicamente no dever de se estar em conformidade com a legislação, estabelecendo e cumprindo normas de conduta que remetem a uma regulação ética e diminuição dos riscos inerentes à atividade.

E por qual razão a dita aplicação distorcida da teoria do domínio do fato, associada à ampliação da relevância penal da omissão, afigura-se com relevância no âmbito do criminal compliance?

Voltemos ao nosso exemplo imaginário. Você, presidente do clube de coração, conseguiu então resolver os problemas administrativos do clube junto às entidades que regulam o futebol, celebrando acordo em que assume obrigações indenizatórias e sancionatórias sem uma condenação derivada de um devido processo legal para que, em contrapartida, seu time volte a disputar os torneios e tenha a chance de retomar dignamente o posto com o qual se habituou.

Mas e a sua situação, enquanto pessoa natural que pode responder criminalmente pelos atos? Ora, dirá o leitor atento, mas já de início havia ficado claro que não fui eu quem arquitetou ― nem participou, sequer tinha conhecimento de ― qualquer esquema de manipulação dos resultados junto aos árbitros da federação!

Todavia, eis a tendência da aplicação distorcida do domínio do fato: você era o presidente, tinha o dever de saber, sua omissão passa a ser identificada como penalmente relevante na medida em que o cargo ocupado estaria acompanhado do dever de vigilância. Diante da assunção de responsabilidade por parte da empresa, os fatos são considerados verdadeiros e caberia a você se defender ― seja como for ― em um processo criminal de exceção (conforme demonstrado aqui).

É aí que a MP 703 desata uma das armadilhas antes inerente ao acordo de leniência, que na redação original previa como requisito a admissão da prática dos ilícitos imputados. Com a reforma, substituiu-se a necessidade de confissão pela constatação de que o caso envolve responsabilização objetiva (art. 16, § 1º, III) e, diante disso, desnecessário se admitir a participação no ilícito apurado.

A segunda conclusão, portanto, é que a MP 703 em boa hora prestigiou os mecanismos de compliance ao exigir, como requisito para celebração de acordo de leniência, a cooperação com as investigações e o comprometimento da pessoa jurídica na implementação ou na melhoria de mecanismos internos de integridade, auditoria, incentivo às denúncias de irregularidades e à aplicação efetiva de código de ética e de conduta, filiando-se à tendência internacional de se fomentar mecanismos preventivos de atuação em face da corrupção. Da mesma forma, andou bem ao substituir a necessidade de confissão da prática do ilícito apurado pela constatação de que se trata de situação envolvendo responsabilidade objetiva.

Contudo, embora a MP 703 traga avanços, é preciso atenção no que diz respeito à responsabilidade penal. Ao contrário dos acordos de leniência celebrados pelo CADE em relação a infrações contra a ordem econômica e demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, que desde 2011 implicam a extinção da punibilidade criminal (Lei 12.529/11), a Lei Anticorrupção não interfere na apuração penal dos fatos tratados em acordo de leniência.

Tratando-se de responsabilidade pessoal e subjetiva, é natural que as condutas devam ser criminalmente apuradas em um processo que assegure a ampla defesa e a presunção de inocência. Isso posto, e apesar de não mais se exigir a confissão da prática de ilícitos para celebrar-se o acordo de leniência, o fantasma do distorcido domínio do fato, somado à ampliação da relevância penal da omissão, assombra os executivos e todos aqueles que desempenham funções de gerência na atividade empresarial.

Com efeito, os remédios dos quais dispomos no momento são encontrados no compliance, fomentados pela Lei Anticorrupção, especialmente após a MP 703, quais sejam: a instituição e fortalecimento de programas de integridade e a realização de apurações internas na forma de investigações privadas (que devem ser encaradas como verdadeiras investigações defensivas).

Ao fixar como um dos requisitos para celebração de acordo de leniência a implementação ou aprimoramento dos mecanismos internos de integridade, auditoria, incentivo às denúncias de irregularidades e aplicação efetiva de código de ética e de conduta, a MP 703 traz à tona a necessidade de se estabelecerem mecanismos de prevenção à corrupção.

Nesse sentido, a instituição de programas de integridade e a adoção de políticas anticorrupção são essenciais para o enfrentamento da tendência de criminalização indevida de condutas omissivas. A existência de um código de ética que integre políticas anticorrupção à estrutura organizacional da empresa e delimite responsabilidades é fator essencial para afastar a possibilidade de se imputar crimes omissivos impróprios em razão do não exercício de um dever de cuidado supostamente inerente aos cargos de gestão empresarial.

Mas não é suficiente. De nada adiantaria a existência de um programa de integridade ao qual não se possa demonstrar aplicabilidade e efetividade. Portanto, diante de suspeitas práticas ilícitas ― sejam oriundas de denúncias incentivadas pela política da empresa, quer em função de um monitoramento constante ― é imprescindível que se efetive uma investigação interna para se apurar responsabilidades, cooperando-se com o poder público e, consequentemente, impedindo que a imputação criminal atinja aqueles que ocupam cargos de gerência em função de um suposto domínio do fato.

Diante desse cenário — somando-se à necessidade de cooperação da pessoa jurídica com as investigações, fortalecida pela MP 703 ― afigura-se como imprescindível o aprimoramento das investigações particulares, a serem conduzidas internamente pelas empresas que identifiquem práticas suspeitas em relação à sua atividade, como legítimas investigações defensivas no contexto de uma possível (embora juridicamente questionável) responsabilização dos gestores empresariais.

O tema da investigação defensiva é pouco explorado pela doutrina nacional e dá ensejo a diversos questionamentos que as limitações de propósito do presente artigo não autorizam, porém é fundamental que se reconheça a legitimidade da produção de provas ― sejam elas testemunhais, documentais ou periciais ― paralelamente a investigações oficiais conduzidas por órgãos estatais, a serem documentadas em procedimentos de investigação privada e com o duplo objetivo de (i) cooperar com o poder público e (ii) evitar a indevida responsabilização criminal daqueles que exercem funções de gerência na atividade empresarial.[3]

Dessa forma, agindo preventivamente mediante o estabelecimento de programas de integridade, cuja eficácia e aplicabilidade sejam garantidas por procedimentos de investigações privadas, fomenta-se um ambiente empresarial ético, contribui-se para a apuração oficial de irregularidades e protegem-se os executivos contra imputações criminais indevidas.

Nessas condições, percebe-se que as duas pernas pelas quais caminha a MP 703 (unificação das esferas administrativas e reforço aos mecanismos de compliance) materializam-se em relevante avanço no campo legislativo, embora ainda não sejam suficientes para garantir total segurança jurídica à matéria. É preciso cautela especialmente no que diz respeito à responsabilidade penal, passando-se pela instituição de mecanismos efetivos de compliance e pelo reconhecimento da legitimidade e incentivo a investigações particulares defensivas. Em todo caso, é importante reconhecer que a medida provisória analisada, antes de uma aberração, é um primeiro ― e significativo ― passo para a racionalização do sistema anticorrupção e aprimoramento dos até então inaplicáveis acordos de leniência.


Notas e Referências:

[1] Suits – Temporada 4, episódio 9, na fala de Harvey Specter.

[2] Fls. 2677 do Acórdão. Para mais detalhes, conferir excelente artigo de autoria de Helena Regina Lobo da Costa e Marina Pinhão Coelho Araújo em Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 106/2014 | p. 215 230| Jan Mar / 2014 DTR\2014\298

[3] Das poucas referências doutrinárias existentes, merece destaque o artigo do Professor Edson Baldan: Investigação defensiva: o direito de defender-se provando - Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 64/2007 | p. 253 273 | Jan Fev / 2007 Doutrinas Essenciais Processo Penal | vol. 3 | p. 451 467 | Jun / 2012 DTR\2007\724


Fernando Hideo I. LacerdaFernando Hideo I. Lacerda é Advogado criminal e Professor de Direito Penal e Processual Penal em curso de graduação e pós-graduação. Doutorando em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2016) e Mestre em Direito Processual Penal pela mesma instituição (2013). Professor convidado no curso de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Escola Paulista de Direito e outros. Professor da cadeira de Direito Processual Penal da Escola Paulista de Direito no curso de graduação em Direito. Membro do Conselho Editorial do IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e associado ao Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD. Contato: fhilacerda@gmail.com


Imagem Ilustrativa do Post: Handshake with smile // Foto de: Vilmos Vincze // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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