Moralismo e democracia no julgamento da Ação Penal 470: um desafio constitucional em aberto

01/02/2016

Por Martonio Mont’Alverne Barreto Lima - 01/02/2016

Tem sido recorrente a observação de que a crítica sobre as atividades do Supremo Tribunal Federal, da parte da academia, não é muito exercitada. Nos últimos tempos não há mais como se pensar desta forma, principalmente após decisões polêmicas como as da interrupção da gravidez, das células-tronco, da extradição de Cesare Battisti, do julgamento da Ação Penal 470 (mais conhecida por “julgamento do mensalão”), intervenção no processo legislativo e proposta de emenda constitucional de limitação do próprio Supremo Tribunal Federal. A profusão de rápidos – porém, em grande medida, percucientes - textos produzidos por juristas e intelectuais sobre estas e outras decisões parece não ter deixado dúvidas de que a “vigilância intelectual” sobre o Supremo Tribunal Federal cresceu, a provocar impacto na discussão sobre a própria Corte e sobre seus integrantes[1]. Avalio como positiva a publicação deste volume pela Revista dos Tribunais, a trazer conjunto de reflexões, ainda que breves, sobre o acórdão da Ação Penal nº 470, e a desencadear, na busca da frieza da razão, uma primeira avaliação do comportamento do Supremo Tribunal Federal no caso.

Num momento inicial, devo ressaltar a distinção entre a qualidade dos pensamentos esboçados neste volume e o lugar-comum da crítica meramente política: a primeira advinda, repito, da racionalidade e do esforço conjugado de compreender o julgamento a partir da objetividade da Constituição e das leis[2] ; a segunda, produto bem mais afeto aos apelos desingênuos da política e do moralismo, os quais, numa democracia, não deveriam compor o ambiente dos conclusões judiciais, não somente no Supremo Tribunal Federal mas em qualquer dos níveis da justiça brasileira. Será neste sentido minha rápida contribuição a este debate. A indagação central que enfrentarei será, pois: o apelo à moral como fundamento, presente em diversos instantes dos votos do julgamento da Ação Penal nº 470[3], é legítimo à racionalidade inerente às decisões judiciais numa democracia como a brasileira? Num primeiro instante, procurarei identificar o conceito da moralidade como definido pelo art. 37 da Constituição Federal (foi este o princípio invocado nos votos do julgamento). Num momento posterior, o acúmulo da filosofia da modernidade sobre a moralidade e seu papel da democracia.

I.

O princípio da moralidade definido na Constituição da República não pode ser compreendido como um dado aleatório, no qual tudo é possível, submetido ao convencimento pessoal daquele que o aplica, isto é, do julgador[4]. Haverá que vincular-se às razões concretas de cada sociedade, explicitadas devidamente em cada caso e articuladas com a normatividade existente. Singelamente, a esta operação corresponde a república e o estado de direito, ou seja: todos são iguais perante a lei. Por quais motivos a moralidade não pode ser compreendida e, menos ainda, aplicada em abstrato, sem a demonstração concreta do que consiste ela? Igualmente simples: se a legislação estabeleceu pena privativa da liberdade – esta, a liberdade de ir e vir, a consistir no primeiro dos direitos fundamentais individuais – deve o julgador acercar-se de toda certeza possível para não cometer ilegalidades julgando conforme o seu particular entendimento ou emoções, e não conforme a constituição e as leis. Decorre daí também o consolidado pensamento de que a dúvida haverá de beneficiar o réu. Esta operação é tão conhecida que sua aplicação não provoca surpresa alguma até ao desatento leitor ou cidadão. Se é verdade que não há, na legislação brasileira, uma definição objetiva de moralidade e do que seria sua inobservância efetivamente praticada por quem ocupa cargos na administração pública[5][6], por outro lado não há como se esperar que a mais alta Corte de Justiça de qualquer sociedade aplique tal preceito para condenação à pena privativa de liberdade, ao sabor das preferência pessoais dos julgadores e de seus apelos emotivos[7].

Se o legislador não enfrentou o tema em suas discussões, não há porque o Judiciário substituir-se a este legislador. As consequências de tal omissão? Este é um problema da política partidária, das mulheres e homens eleitos regular e periodicamente pelos brasileiros. A sociedade que os elege deverá desenvolver, ela própria, maturidade de atentar para quem escolhe e renovar-lhes, ou não, os mandatos concedidos, para o caso de os eleitos omitem-se em situações como esta. Em qualquer circunstância, este é um desafio da política; não do Poder Judiciário, a quem compete a aplicação das leis. As escolhas políticas devem emanar de quem recebeu voto. Eis aqui umas das preciosas garantias democráticas dos juízes: estabilidade e vitaliciedade, exatamente para não se imiscuírem em opções políticas de criação de leis e distanciarem-se de tais debates, aceitando a decisão dos eleitos e submetê-las objetivamente ao seu crivo quando do momento da concreta aplicação da Constituição e das leis, sem ultrapassagem dos limites impostos pelo legislador. Como adverte Lênio Streck, a incorporação da moral pelo direito é que poderá operar o caráter de “transformação da sociedade”. Porém, como disse este Autor, é necessário que haja a incorporação pelo direito. Em outras palavras, é preciso que o legislador aja, como chama a atenção Lênio Streck e como recomenda a prática democrática[8].

O recurso ao ainda não decidido pelo legislador, no âmbito da teoria do direito e da interpretação constitucional, não é novidade alguma. Referida “dilatação do conceito de interpretação em uma base de princípios do direito (...)” possui um preço: a pergunta sobre como o juiz pode responder um problema jurídico quando a objetividade da leitura (Leseart) deriva para o questionável, o que conduz a uma dupla dificuldade. A insegurança metódica (...) e quanto pode um juiz distanciar-se do texto, sem usurpar o lugar do legislador”[9].

É do mesmo Friedrich Müller, por fim, a afirmação de que a “concretização do direito no Estado Democrático de Direito deve empenhar-se para abandonar os “credos” que se pautam em conclusões metodicamente precipitadas e trabalhar elementos da argumentação que possam ser concretamente, no sentido de racionalmente, examinados e discutidos no âmbito da ciência do direito, ou seja, que de um modo bastante específico constituam-se como elementos de relativa objetividade”[10]. Como se pode depreender, exigir racionalidade e objetividade de julgadores – com maior vigor dos integrantes das mais altas cortes do Judiciário – consiste numa verdadeira reivindicação da democracia e da razão democrática. Não sem razão fortalece novamente Lênio Streck esta mesma posição ao lutar, ao longo de convincente tratado, pela racionalidade e objetividade da atividade interpretativa: “Somente a situação concreta é que serve de parâmetro para resposta correta (adequada à Constituição)[11].

Passo ao segundo ponto desta reflexão que anunciei anteriormente, qual seja, aquele do acúmulo da filosofia da modernidade sobre a moralidade e seu papel na democracia.

II.

Para Brian Barry é “um grande erro” supor que “justiça como imparcialidade” pode ser concebida como um sistema moral autossuficiente. Dado que todos temos ideias diferentes, o desafio da justiça como imparcialidade é saber “como vivemos juntos”[12]. Este também tem sido o desafio enfrentado pelo pensamento filosófico da modernidade, da mesma forma a abandonar o preceito da moral como elemento regulador da vida em comum na res publica. Recorrerei à filosofia de Baruch de Espinosa para fundamentar a rejeição da abstrata moral, e de seu caráter pernicioso, na aplicação da constituição e das leis numa sociedade plural e democrática. Afinal, de forma surpreendentemente atual, a afirmação de que o “sumo bem se vivencia coletivamente, o que permite a Spinoza, na Ética, que a alegria se experimenta não individualmente, na solidão, mas em companhia dos demais, na Cidade”[13] é reveladora do engano da vinda da moral à esfera pública, sem a decisão de todos da Cidade, sem a objetividade das leis fixas da razão.

Se o Supremo Tribunal Federal – no compasso de quase todas as cortes constitucionais da atualidade – tem desafiado os limites da Constituição Federal, para o pensamento espinoseano não há novidade alguma nisso. A potência da multidão é o poder constituinte, isto é, o desejo de constituir a cidade, e de juntos vivenciar os afetos, provenientes do uso racional das leis. Assim, a tentativa de ultrapassagem do poder soberano seria uma “impossibilidade física”, já que não se pode admitir que o Supremo Tribunal Federal (e também os poderes legislativo e executivo) ultrapasse o poder soberano, ainda que por suas decisões não deixe dúvidas quanto a esta intenção[14]. Tal mecânica decorre do fato de que ninguém deve ir além do poder da multitudo. Quando esta intenção – da ultrapassagem do poder da multidão - aterrissa no mundo do concreto, opera-se, igualmente, o que Espinosa acuradamente definiu como poder da revelação. É que para Espinosa a revelação dos profetas em relação às sagradas escrituras e seus acontecimentos nada mais traduzem do que a disputa de poder pelo qual estes lutavam interior da cidade. Nos capítulos I, II e III do Tratado Teológico-Político, Espinosa discorre sobre a “religião revelada”, como obra dos profetas; como obra, portanto da teologia, vez que dissociada da razão. E quem faz da razão e da filosofia servas da fé com certeza “ensandecerá”[15].  A revelação das sagradas escrituras é ditada pelos profetas com certeza profética, a qual “(...) não era, evidentemente, uma certeza matemática, mas apenas moral, conforme consta também na própria Escritura”[16]. A revelação trazida pelos profetas era detentora da certeza da moral, a qual variava de acordo com o sinal recebido e assimilado por eles, donde se conclui inexoravelmente pela relativização e pessoalização das profecias e interpretação dos textos sagrados. Desta maneira é que para Espinosa a escritura ainda poderia conter uma leitura de acordo com a variação do espírito de cada profeta, na conformidade de seus distintos temperamentos. “(...) se o profeta era alegre, revelavam-se-lhes as vitórias, a paz e tudo que é motivo de alegria para os homens; (...) se, pelo contrário, era ele macambúzio, revelavam-se-lhes guerras, os suplícios e todos os males. (...) se o profeta era requintado, requintado era também o seu estilo em que aprendia a mente de Deus; se, pelo contrário era confuso, aprendia-a confusamente; (...) se o profeta era um rústico, apareciam-lhe bois e vacas; se era, porém, um soldado, apareciam-lhe chefe e exércitos”[17]. Ao se reivindicar última instância com a legitimidade de “errar por último” em todos os casos, mesmo que isto implique na ultrapassagem da potência da multidão enquanto corpo político, qualquer corte constitucional atrai para si a condição de reveladora do texto constitucional, a depender da “certeza da moral” e do temperamento de seus integrantes, conforme lhe seja o caso enfrentado. Não precisa ir muito além para perceber, com Espinosa, que este tipo de funcionamento institucional não somente não mantém a unidade do corpo da sociedade, como afasta a possibilidade de leis a “que todos estejam sujeitos”[18].

O recurso à superioridade do Supremo Tribunal Federal no sistema constitucional brasileiro para se desvincular de suas próprias decisões pretéritas e retomar a rota da moralidade, sem descrevê-la objetivamente e sem referendar este uso pelas Constituição e pelas leis, aproxima o Tribunal de um papel de revelador da Constituição; lugar este ocupado numa democracia, como se disse, pela potência da multidão. Ora, se um corpo múltiplo pensa melhor que um corpo menor[19], não resta dúvida sobre a superioridade da política e dos políticos perante os outros poderes da cidade, a conviverem no mesmo espaço, onde é “impossível tirar aos homens a liberdade de dizerem o que pensam”[20]. O “dizer o que os homens pensam” de Espinosa corresponde à plena liberdade de manifestação que haverá de ter, sobretudo, o poder soberano, vale dizer: o povo. Não se pode sequer relativizar que Espinosa é o filósofo radical da liberdade pré-iluminista: é que reside na liberdade a distância entre Espinosa e Hobbes. Se em Hobbes a liberdade teria um aspecto “negativo”, em Espinosa esta adquire todo o seu conteúdo “positivo”.

Não há como confundir as palavras de Espinosa com especulações idealistas. Em primeiro lugar porque Espinosa oferece-nos a política como o espaço onde o ser humano poderá conquistar sua liberdade: esta não estará pressuposta, nem cairá dos céus, tampouco advirá pela força das orações; mas será uma luta na vita civitatis. Não se pode esquecer que a prática da jurisdição constitucional (e quem a exerce: se um tribunal ou o próprio parlamento) traduz-se numa disputa política inerente a qualquer sociedade, bem como não há de olvidar-se que instituições a saírem de seu limite constitucional somente a ele retornarão também por força da democrática política. Uma paixão, para Espinosa, somente poderá ser vencida por outra paixão maior! Em segundo lugar, Espinosa evidencia convencimento de que bem e mal são noções concretas: “Quão longe, no entanto, estamos de poderem todos conduzir-se unicamente pela razão! Cada um deixa-se levar pelo seu bel-prazer e, a maioria das vezes, tem a mente a tal ponto inundada pela avareza, a glória, a inveja, o ódio etc., que não lhe fica o mínimo espaço para a razão. (...) ninguém está obrigado a respeitar os contratos, exceto se tiver a esperança de bem maior ou receio de um mal maior”[21]. Mencionada ideia acha-se já presente também no “Tratado da Emenda do Intelecto”, de 1662 e publicado após sua morte, quando o filósofo constata que, a partir da experiência (Experientia) do que ocorre na vida ordinária (vita frequenter) - vale dizer do concreto e do real - nada de bom ou mau (nihil neque boni neque mali in si habere) acontece a não ser que venha a ser que o ânimo (animus afficeretur) movido pela mesma experiência[22]. Ainda na mesma “Emenda do Intelecto” a ratificação da relativização do bem e do mal conforme suas circunstâncias reais, onde uma mesma coisa pode ser qualificada de boa ou má deixa-se confirmar. O norte a conferir prumo às formulações de Espinosa será a apreciação aguçada das complexas e diversas condições de sua localização nos pensamentos e sociedades humanas (adeo ut uma eademque res possiti dici bona et mala, secundu diversos respectos, eodem modo ac perfectum et imperfectum)[23].

É, porém, no Breve Tratado, de 1660, que o Capítulo X trata explicitamente do que são bem e mal, de sua relação de existência não com a natureza, mas com a razão humana, ou seja com os entia ratione. Assim como a bondade de Pedro e maldade de Judas não se encontram fora de Pedro e de Judas, respectivamente, é de concluir-se que “o bem e o mal não são coisas nem ações que existam na Natureza”[24]. É com tal firmeza que Espinosa atribui materialidade ao seu sistema filosófico para a defesa da liberdade e segurança de todos com base na lei fixa a “congregar as forças de todos para formar como que um só corpo, o corpo da sociedade”[25]. Demais, com a rejeição da ética de Espinosa a qualquer qualificação “moral do bem e do mal”, inaugura-se uma preciosa distinção para a democracia e para a tolerância – a ser, claro, aplicada necessariamente por quem decide os destinos dos outros, ou seja, os juízes. A distinção mencionada consiste na concepção ética “fundada na imanência dos modos de vida”, a qual se distingue “de uma percepção moral, que se estrutura sobre uma perspectiva transcendente de valores”[26]. Inexiste, portanto, qualquer rastro do pensamento idealista que se seguirá na filosofia de Spinoza.

As poucas manifestações de votos do acórdão da Ação Penal nº 470 aqui trazidas[27] não deixam dúvidas da direção escolhida por boa parte de seus integrantes: o caminho percorrido para a produção das conclusões não foi o sugerido por Espinosa; distanciou-se, assim, do que o melhor do pensamento político-constitucional ocidental oferece no sentido da mais radical ruptura com as superstições de que “acontecimentos inesperados ocorreriam fora da ordem da natureza”. Ora, a marca central spinosistes consiste naquela de que a natureza automovimenta-se e cria-se a si mesma[28]; e o ser humano, com sua razão, é apenas parte finita dela, influenciado e influenciador de suas próprias ações, que não devem causar nem surpresa, nem desencanto: exigem para a sua adequada e livre compreensão a fria contemplação guiada pela razão produzida com liberdade de pensar, longe das pressões religiosas e dos poderosos.

Distante da certeza da moral – e de todas fáceis certezas não apreendidas pela liberdade da razão – é que deve a constituição da república ser analisada sem, consequentemente, correr o risco de ser disputada e dilacerada pelo próprio corpo social que se propôs a reger. Ao contrário: livre das amarras metafísicas, o texto normativo poderá pacificar qualquer sociedade na certeza de sua aplicação a todos, em quaisquer circunstâncias. Entenda-se esta pacificação como a satisfação – a hilaritas de Espinosa – decorrente do afeto da alegria de se ter, em sociedade, a vida regrada da mesma maneira para todos.

Além de sua primeira dimensão pessoalista e religiosa, para Espinosa “a ordem moral nasce no intervalo cavado entre a recusa da ordem da vida comum e o desconhecimento da ordem da natureza, intervalo que, como insistirá a Ética, tende a ser preenchido pelo discurso normativo do moralista e do teólogo, que imaginam o homem fora da ordem natural”[29]. Percebe-se que o encadeamento entre moral e religião, aqui recusado com base na filosofia espinoseana, não apenas resta comprovado no julgado da Ação Penal nº 470, como, para depois de sua constatação, implica na fragilidade de argumentação jurídica desenvolvida nesta base, exatamente por afastar os elementos objetivos do concreto.

Insisto sobre a necessidade da objetividade e concretude da legislação constitucional e infraconstitucional a autorizarem e legitimarem o uso do apelo moral, e da aplicação – sempre presente ao longo do acórdão da AP nº 470 - para penas privativas de liberdade. A citação acima resume a formulação de Espinosa a confirmar que desde o século XVII a moral já não se encontrava em lugar de prestígio perante as pretensões de democracia e justiça da modernidade. Ignorar a natureza humana significa recusar-se a ver a realidade de que se cerca uma complexa rede social, de distintos interesses e lutas internas ao corpo social. Aliás, é também Espinosa a identificar que o inimigo da república é mais interno que externo.

No seu Tractatus de Intellectus Emendatione, Espinosa parte rumo a uma ambiciosa tarefa: desmistificar a ordem das ideias, agora libertadas da confusão entre o conhecido e o desconhecido[30]. Na perseguição desta clareza, afirma o filósofo que a busca deverá sempre ter por base as coisas físicas, ou os seres reais (entibus realibus)[31], a fim de que não nos vitimemos pela desordem do pensamento; desordem que “(...) é responsável pela confusão entre o que está na imaginação e o que está no intelecto, “um sonhar de olhos abertos”, que leva a que se comece com abstrações que confundem axiomas verdadeiros e “pervertem a ordem da natureza” (§ 75), colocando universais abstratos no lugar dos princípios ou da “fonte e origem da Natureza”” [32]. Vê-se como causa imanente da desordem a abstração, o uso do intelecto para o olhar de fora da realidade, destituídos de seus nexos com a complexidade do real, suas causas e efeitos. Ao aproximar-se desta visão abstrata sobre o princípio da moralidade como escrito na Constituição Federal, as constantes manifestações dos integrantes da Corte incorrem no olhar externo aos entibus realibus, ou, com outras palavras: não captam toda a complexidade em que o termo insere-se, como por exemplo, o fato de não estar, o princípio da moralidade, até hoje regulamentado em todo seu potencial alcance social que poderia ter, e que a supressão desta lacuna deve emanar de quem é legitimado para as escolhas políticas. Quando não resta esclarecida esta premissa de realidade, a consequência será também o próprio desvirtuamento da política democrática e de uma Constituição, no caso brasileiro, de uma Constituição estatuída pela soberana multitudo, reunida em assembleia constituinte, composta de muitos e reunida para este fim. Residem aqui as ferramentas que o pensamento filosófico e laico do “radical iluminismo” assenta ao constitucionalismo e que, por se tratarem de árduas conquistas da razão e da liberdade, não podem ser relativizadas em momento algum da vita civitatis da nação.

Ao afastamento da multitudo das instituições políticas e sociais corresponde o fortalecimento dos temperamentos (ingenium) individuais. Para Espinosa esta verdadeira tragédia desaguaria na ruptura do conatus, esforço construtor da sociedade e do estado em coletividade, como também deixou a mesma lição Macquiavel. Por isto que “cabe às instituições frear a tendência antipolítica do ingenium individual, reforçando sua tendência à construção da sociedade comum”[33]. No caso do julgamento da Ação Penal nº 470, com tão explícitas manifestações de ingenium individual por parte dos membros do Supremo Tribunal Federal outro desfecho, sob a luz espinoseana, não parece possível: o engano, o erro de se decidir afastadamente da razão e dos afetos de se construir juntos uma democracia a partir da razão e liberdade.

Todo este conjunto de argumentação encontra guarida no que o pensamento constitucional pátrio possui de mais avançado, e livre dos truques do voluntarismo da moral. Refiro-me, novamente, às palavras de Lênio Streck para quem “d) Direito não é moral. Direito não é sociologia. Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões e ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador. Ou seja, ele possui, sim, elementos (fortes) decorrentes de análises sociológicas, morais, etc. Só que estas, depois que o direito está posto – nesta nova perspectiva (paradigma do EDD) – não podem vir a corrigi-lo; e) É verdade que o direito presta legitimidade à política, compreendida como poder administrativo, sendo que a política lhe garante coercitividade. Concebendo a política como comunidade (polity), o direito faz parte dela. Compreendida como exercício da política (politics), há uma complicação entre eles na constituição do político. Como ponto de vista partidário, o direito tem o papel de limitar a política em prol dos direitos das minorias, definindo o limite das decisões contra-majoritárias. O direito é essencialmente político se o considerarmos como um empreendimento público. Daí politica ou político, no sentido daquilo que é da polis, é sinônimo de público, de res publica”[34].

Este é ainda um desafio em aberto, a ser realizado pela sociedade política brasileira e não por um ator político institucional de forma isolada. Por uma razão a saltar aos olhos: as tarefas de consolidação da democracia, de valorização do documento constitucional escrito por todos e na esperança de ser atuante para todos, não serão responsabilidade de um único setor da sociedade: é uma responsabilidade que poderá produzir – na espinoseana insistência – o afeto da alegria; este exatamente produzido pela passagem de um bem menor a um bem maior. Desta forma é que os vícios sociais “não se vinculam à má índole dos indivíduos, nem a virtude pela construção de uma consciência moral superior”; ao contrário repousam nas instituições políticas, capazes de dotar suas atribuições na “fundação institucional da liberdade a voltar-se “contra o voluntarismo moralista que pressupõe a necessidade de difusão de virtudes morais universais”[35]. Eis, portanto, nosso desafio constitucional ainda por ser enfrentado. Para este enfrentamento, deve-se contar, sobretudo, com a cívica coragem de todos e de suas instituições; com a coragem, enfim, de quem está disposto a enfrentar os vícios, a maldade, a parcialidade das falsas liberdades, sempre tão tentadoras aos que desejam o império do medo e da submissão da razão livre.


Notas e Referências:

[1] Sobre o criticismo a envolver as decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos da América e as reações antagônicas de seus integrantes a tais críticas: Dershowitz, Allan: Supreme Injustice. Oxford/New York: Oxford University Press, 2001, p. 185.

[2] A respeito da objetividade normativa, no ambiente democrático, a não se confundir com aquela das ciências exatas, a excepcional lição de: Müller, Friedrich: Metodologia do Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp.65ss.

[3] O recurso argumentativo à moralidade administrativa aparece em todos os votos da AP nº 470. Chama a atenção, por outro lado, a ausência sobre o que os Ministros do STF entendem por moralidade. A moralidade como bem jurídico protegido pelo art. 317 do Código Penal; a conduta dos réus condenados como atentatória à moralidade da administração pública etc., são recursos argumentativos constantes no texto do acórdão: p. ex., nas pp.: 1437, 1497, 1529-30, 1539, 4061, 4100, 4483-85, 4509, 6190, 8193, 8325, 8328, para citar apenas alguns que, dentre estes, serão aqui destacados. Especialmente o tom emocional das palavras do Min. Celso de Mello, de p. 8328 (9/10), desperta maior atenção: “Desse modo, Senhor Presidente, evitar-se- á a consumação de uma situação juridicamente esdrúxula, moralmente inaceitável e politicamente lesiva aos valores constitucionais, causadora de grave perplexidade social, pois não tem sentido algum permitir-se que peculatários, corruptores, corruptos, integrantes de quadrilhas e agentes manchados pela tisna da venalidade, desde que condenados criminalmente por decisão transitada em julgado, continuem a exercer, aos olhos de uma Nação justamente estarrecida e indignada, o mandato parlamentar cuja respeitabilidade por eles  foi ultrajada e conspurcada” (voto Min. Celso de Mello). Merece destaque esta compreensão do Min. Celso de Mello, vez que o mesmo Ministro já havia esboçado entendimento, sobre este tema, exatamente em sentido contrário do agora manifestado. Tal dubiedade é apenas um elemento a mais a advertir sobre o perigo, para a democracia, dos subjetivismos da moral e das emoções.

[4] Da mesma forma, manifestações emotivas para fundamentar posições judiciais acham-se presentes, como nas pp. 1786 (3): “Nesta Casa, sou uma juíza brasileira, não uma juíza mineira, se bem que teria toda honra de ser de Minas apenas servidora. Tenho gosto em ser de Minas. Sou Minas como os mineiros todos são. Por isso, porque Minas não tem deixado de cumprir e honrar o seu compromisso com o Brasil nas horas mais difíceis; porque Minas merece ser lembrada, como é, historicamente por ter germinado de Tiradentes a Drummond, de Claudio Manoel da Costa a Bilac Pinto, por ter acolhido Milton Campos e Guimarães Rosa, Otto Lara Rezende e Paulo Mendes Campos, por cantar ainda hoje com Mil ton Nascimento querer toda gente feliz e que a justiça reine em meu País; porque sou cidadã a partir das Minas, vejo-me na contingência de, a partir desta Cadeira comprometida com a Justiça democrática, que não se faz sem respeito aos valores éticos, ter de realçar que o de que aqui se cuida não é de prática de um Estado, mas de gravame ao País, de condutas contra o Estado do Brasil” (voto Min. Cármen Lúcia).

[5] O Min. Luiz Fux afirma existir um “reflexo” sobre a tutela jurídica da moralidade. Com base neste reflexo pronunciou seu voto, p. 1530 (41/42): “A tutela jurídica da moralidade e da probidade administrativas também se reflete na legislação infraconstitucional pela tipificação do peculato como ilícito criminal. Consoante o magistério de Damásio de Jesus, a aludida figura típica consubstancia: “modalidade especial de apropriação indébita cometida por funcionário público ratione officii. É o delito do sujeito que arbitrariamente faz sua ou desvia, em proveito próprio ou de terceiro, a coisa móvel que possui em razão do cargo, seja ela pertencente ao Estado ou a particular, ou esteja sob sua guarda ou vigilância”. (JESUS, Damásio E. de., Direito Penal, v.4. Parte especial: Dos crimes contra a administração pública, 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 119-122). O bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a confiança pública no escorreito e impessoal desempenho das funções estatais, justificando o apenamento daqueles que, subvertendo essas finalidades, desviem ou apropriem-se de dinheiro, valor ou qualquer bem cuja posse lhes tenha sido atribuída em razão do exercício de munus público. Nesse sentido, “sendo o crime de peculato um crime contra a Administração Pública e não contra o patrimônio, o dano necessário e suficiente para a sua consumação é o inerente à violação do dever de fidelidade para a mesma administração, associado ou não ao patrimonial” (MIRABETE, Júlio Fabbrini, Código penal interpretado, 6. ed. - São Paulo: Atlas, 2007, p. 2372)”. O mesmo ocorre ainda em repetida manifestação do Min. Luiz Fux, na p. 4100 (62): “O crime do art. 317 do Código Penal tutela a moralidade administrativa, consumando-se com o recebimento, solicitação ou aceitação de promessa de vantagem indevida, pelo funcionário público, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela”.

[6] 7No mesmo sentido, o Min. Ayres Brito, p. 4509, (11): “ (...) V- no tocante ao delito de corrupção ativa, começo pela consideração de que o bem jurídico especialmente tutelado pelo art. 333 do CP é a Administração Pública, mais precisamente a “moralidade e probidade administrativa”. Bem jurídico assim versado pelo Magno Texto: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...” (caput do artigo 37)”.

[7] Ao tempo em que tomaria posse como Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, antes do julgamento no STF, o Min. Marco Aurélio registrou em seu voto na Ação Penal nº 470, com base em sua visão “cristã”, ter enviado “recado” ao então Presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, de que não seria interessante sua presença na solenidade (p. 1675 (2), “ (...) porque preciso, no discurso de posse, dar um recado. Qual foi o recado, Presidente[do STF]? Vou tomar um pouco mais o tempo do Colegiado, o que não fiz quanto às fatias anteriores, porque julgo que estamos no fecho da apreciação desta Ação Penal n º 470. Lancei, Presidente, reconheço que lancei, com desassombro: Infelizmente, vivenciamos tempos muito estranhos, em que se tornou lugar-comum falar dos descalabros que, envolvendo a vida pública, infiltraram na população brasileira - composta, na maior parte, de gente ordeira e honesta – um misto de revolta, desprezo e até mesmo repugnância. São tantas e tão deslavadas as mentiras, tão grosseiras as justificativas, tão grande a falta de escrúpulos que já não se pode cogitar somente de uma crise de valores, senão de um fosso moral e ético que parece dividir o País em dois segmentos estanques - o da corrupção, seduzido pelo projeto de alcançar o poder de uma forma ilimitada e duradoura, e o da grande massa comandada que, apesar do mau exemplo, esforça-se para sobreviver e progredir”.

[8] Streck, Lênio Luiz. Verdade e Consenso. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 229/230.

[9] Müller, Friedrich u. Ralph Christensen. Juristische Methodik. Berlin: 2. Auf., Duncker&Humblot, 2007, p. 189. Tradução do autor deste texto.

[10] Müller, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 120.

[11] Streck, Lênio Luiz. Verdade e Consenso. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 179.

[12] Barry, Brian: Justice as Impartiality. New York: Oxford University Press, 1996, p. 77.

[13] Guimaraens, Francisco. Direito, Ética e Política em Spinoza. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 168.

[14] Espinosa, Baruch de. Tratado Político. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 38 (Cap. IV, 3). Devo ao professor e amigo Francisco Guimaraens a atenção chamada para este aspecto do sistema filosófico de Espinosa.

[15] Espinosa, Baruch de. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 224 (Cap. XV).

[16] Espinosa, Baruch de. Tratado Teológico-Político, p. 34 (Cap. II).

[17] Espinosa, Baruch de. Tratado Teológico-Político, pp. 35/36 (Cap. II).

[18] Espinosa, Baruch de. Tratado Teológico-Político, p.5 4 (Cap. III).

[19] Chauí, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Cia. das Letras, 2003, p. 294.

[20] Espinosa, Baruch de. Tratado Teológico-Político, p. 309 (Cap. XX).

[21] Espinosa, Baruch de. Tratado Teológico-Político, p. 239 (Cap. XVI).

[22] Spinoza, Baruch de. Tractatus de Intellectus Emendatione. Darmstadt: WBG, 2008, p. 6 (1).

[23] Spinoza, Baruch de. Tractatus de Intellectus Emendatione, p. 12 (12).

[24] Espinosa. Breve Tratado de Deus, do homen e seu bem-estar. Belo Horizonte/São Paulo: Autêntica Editora, 2012, p. 87 (cap. X).

[25] Espinosa, Baruch de. Tratado Teológico-Político, p. 53 (Cap. III).

[26] Guimaraens, Francisco de. Direito, Ética e Política em Spinoza. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 168.

[27] Em estudos posteriores, a exigirem lapso temporal maior, confirmações desta linha de entendimento, da parte dos integrantes do STF podem ser identificados mais amiúde

[28] Israel, Jonathan I. Iluminismo Radical. São Paulo: Madras, 2009, p. 198.

[29] Chauí, Marilena. A Nervura do Real. São Paulo: Cia das Letras, 2000, p. 572.

[30] Spinoza, Baruch de. Tractatus de Intellectus Emendatione. Darmstadt: WBG, 2008, p. 44 (59).

[31] Spinoza, Baruch de. Tractatus de Intellectus Emendatione, p. 74 (99).

[32] Chauí, Marilena. A Nervura do Real, p. 576.

[33] 4Guimaraens, Francisco de. Direito, Ética e Política em Spinoza. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 188.

[34] 5Streck, Lênio Luiz. Compreender Direito. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2013, p. 180.

[35] Guimaraes, Francisco de. Direito, Ética e Política em Spinoza. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 191.


Martonio Mont’Alverne Barreto Lima

.

Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é Doutor em Direito pela Universidade de Frankfurt. Professor Titular da Universidade de Fortaleza. Procurador do Município de Fortaleza. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Le Jour ni l’Heure 3704 : Michel Colombe, c.1430-c.1515, la Force morale, tombeau de François II de Bretagne, 1502-1507, dét., cathédrale de Nantes, Loire-Atlantique, vendredi 24 octobre 2014, 13:40:29 // Foto de: Renaud Camus // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/renaud-camus/15569352948

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura