Meu Professor Ensinou que minha luta por igualdade será eterna

15/11/2016

Por Alice Costa Lima Salz – 15/11/2016

“Mulher só perturba, foi a pior invenção de Deus. A melhor coisa é não ter mulher por perto”.

“No meu escritório só tem mulher. Nem parece escritório, parece um parque de diversões”.

“A segunda chamada será oral e as meninas vão vir fazer de joelhos”.

“A dama que diz que não, na verdade está dizendo talvez. A dama que diz talvez, na verdade está dizendo que sim. A dama que diz que sim... Não é uma dama”.

“Uma forma de ser desembargador é entrar pelo quinto, ou, no caso das mulheres, pelo quarto”.

“Mulher é uma fonte inesgotável de dinheiro”.

“Não sei como ela conseguiu ser juíza [fazendo referência à esposa]”.

“A menina de 13 anos quer namorar o menino de 15 anos, 16 anos, não é verdade? Tem menina de 13 anos que tem compleição física de mulher”.

“O ex dela a estuprou. Deveria estar apaixonado ainda”.

Todas essas frases foram ouvidas dentro de uma mesma universidade, mas elas não são ditas só ali. A campanha #MeuProfessorEnsinou começou no mês de novembro de 2016, por meio da iniciativa das estudantes da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Em poucos dias, diversos relatos de alunas, inclusive de outras universidades brasileiras, tais como UFRJ, IBMEC e a PUC do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, ganharam espaço nas redes sociais.

O feminismo é um movimento político e social, pautado na luta por direitos iguais entre mulheres e homens, tendo ganhado força ao longo dos anos, mas é importante ressaltar os constantes entraves que persistem nos dias atuais. São frases como as mencionadas acima que demonstram a clara necessidade do feminismo e do quanto ainda temos para avançar. Dizeres como estes, repetidos incessantemente e proferidos de maneira tão automática, propagam a chamada cultura do estupro.

De tão enraizados que estão os ensinamentos patriarcais, de tão prementes que atitudes machistas e misóginas são, os desafios diários passados por nós mulheres, sejamos estudantes, donas de casa, advogadas, engenheiras, artistas, médicas, enfermeiras, professoras, crianças ou adolescentes, imprimem uma sensação de missão impossível, mas, ao mesmo tempo, conferem força para seguirmos adiante em nossa luta. Aí está a importância do movimento feminista.

“Meu professor fez uma tabela no quadro expondo todas as notas da prova, separando uma coluna com as notas dos homens e outra com as notas das mulheres – os homens tinham ido melhor. Uma aluna perguntou o que ele queria dizer com isso: se estava querendo dizer que ela não pode ser engenheira por ser mulher. Ele respondeu: ‘Não, eu não disse isso. Mas todo mundo sabe que homens e mulheres têm tipos diferentes de inteligência’”. – Engenharia UFRJ. 

O artigo 5º, caput e inciso I, da Constituição Federal parece claro:

Art. 5º CRFB. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

 I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

A clareza expressa neste dispositivo normativo, no entanto, é meramente formal, ou seja, a igualdade que a Carta Magna veementemente defende em seu texto ainda não conseguiu produzir plena efetividade no mundo real. Até que todos os direitos consagrados em leis e garantias constitucionais consigam atingir o patamar de verdadeira igualdade entre eles levará muito, muito tempo. A luta apenas começou.

“Se o ‘pivete’ te assalta na rua, a culpa não é dele, não. É da mãe que pôs ele no mundo e não criou direito”. – IBMEC – Rio de Janeiro. 

Existe uma forte tendência de sobrecarregar a figura da mulher de culpa pelos crimes cometidos contra ela. Dentro dessa lógica machista, os estupros e todas as outras formas de violência contra a mulher seriam mera consequência de inúmeras formas de agir, tais como roupas “inadequadas” que nós usamos, nossas reações contra as ofensas proferidas por homens na rua, andar pelas calçadas à noite e sozinhas, não nos dar ao “respeito” frente à sociedade, deixar de seguir os estereótipos de gênero, enfim. São, como já dito antes, inúmeras justificativas ilógicas.

O argumento legitimador desse tipo de raciocínio consiste no “fato” de que os homens são seres definidos como protetores, de constituição física robusta, destemidos, bravos e independentes, cujo papel é o de provedor do lar e chefe. Com isso, sua imagem acaba por ficar supervalorizada perante a sociedade, o que o torna respeitável o suficiente para que ninguém seja capaz de lhe apontar falhas ou atos de covardia. Nós mulheres, por outro lado, por sermos consideradas, em tese, mais delicadas e frágeis, cuidadoras do lar e dos filhos, somos vistas como ingênuas, bobas e, portanto, vulneráveis e falíveis e, justamente por estarmos sujeitas a falhas, somos facilmente culpabilizadas pelos nossos atos e por crimes praticados contra nós. Qualquer transgressão moral praticada por uma mulher “legitima” atos de violência contra ela.

“Tem umas roupas que pelo amor de Deus! Eu entendo uns estupros, viu?” – PUC-Rio. 

De acordo com o 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher é estuprada a cada 11 minutos. Segundo um levantamento feito em parceria com o instituto Datafolha, 90% das mulheres afirmam temer serem vítimas de agressões sexuais. A pesquisa mostra, inclusive, que jovens entre 16 e 24 anos são as que mais têm medo de sofrer violência sexual. Mesmo que de 2014 para 2015 tenha havido uma queda no número de denúncias por estupro, não é possível afirmar que houve realmente uma redução no número desses crimes no Brasil, uma vez que tal conduta criminosa é ainda muito subnotificada.

Dentre os principais motivos apontados pelas vítimas para não registrarem ocorrência desse delito às autoridades policiais está o medo que sentem de sofrerem a chamada violência institucional, praticada pelos agentes de instituições prestadoras de serviços públicos, dentre as quais estão as delegacias de polícia, por exemplo. Postos de atendimento que deveriam justamente prezar pelo acolhimento e cuidado no atendimento a uma vítima de violência doméstica ou de gênero acabam perpetrando a mesma violência e maculando a dignidade da mulher. Com isso, o ciclo de agressões é alimentado a todo momento e, para impedi-lo de continuar girando, é necessário implantar políticas públicas que garantam principalmente a humanização no atendimento a essas vítimas.

“No calor é difícil dar aula, porque as meninas usam shortinho e blusa de alça. É demais para o meu cérebro”. – Direito UERJ. 

Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha no ano de 2016, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, um terço dos brasileiros concorda que a culpa pelo estupro sofrido pela mulher é inteiramente dela. 42% dos homens e 32% das mulheres concordam que “a mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada”.

Em relação a já mencionada violência institucional, o despreparo verificado em instituições públicas que realizam atendimento para as vítimas de violência de gênero encontra justificativa no fato de que, de acordo com uma visão geral dos brasileiros, 51% deles não acreditam que a Polícia Militar esteja preparada para atender essas vítimas de estupro, enquanto que 42% dos nacionais têm o mesmo pensamento em relação à Polícia Civil, conforme aponta a pesquisa deste ano do Datafolha.

“A mulher tem o direito de dizer ‘não’ em qualquer situação. No Brasil, foram registrados, em 2014, cerca de 50 mil casos de estupro. Esse número é muito longe da realidade, porque o crime de estupro é um dos crimes com maior subnotificação no mundo todo. A gente sabe que está muito longe da realidade. Elas são vítimas de um crime muito grave e são novamente vitimizadas durante o processo, quando elas são culpabilizadas pelo crime ou mal atendidas nas instituições policiais”, afirma Olaya Hanashiro, coordenadora de Projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ela ainda é enfática ao dizer que o crime de estupro representa um problema social que envolve tanto segurança pública quanto direito e saúde pública.

É sempre importante lembrar da conquista que obtivemos no ano de 2006 com a sanção da Lei Federal nº 11.340, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, uma vez que a mulher que a concretizou, chamada Maria da Penha Maia Fernandes, brasileira, nordestina e farmacêutica, lutou para que seu ex-marido fosse condenado pelas suas constantes práticas de violência contra ela. Com o advento dessa legislação, surgiram novos métodos de proteção para as vítimas de violência doméstica e de gênero e, como resultado, mais um passo foi dado na conquista dos direitos das mulheres. Em 2015, a então presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei Federal nº 13.104, a qual tipifica o homicídio cometido contra mulheres pela condição de seu gênero como feminicídio, enquadrando-o como crime hediondo. Além desses avanços normativos, a Lei Federal nº 13.239/15 garante a realização gratuita de cirurgias plásticas reparadoras de lesões oriundas de violência de gênero no SUS.

Os exemplos elencados no parágrafo anterior apenas apontam, ainda que de forma branda, o quanto nosso ordenamento jurídico avançou em termos de garantias fundamentais à integridade física, psicológica e moral para as vítimas de violência de gênero. Esses avanços são reflexos da luta feminista, de mulheres que sofreram e ainda sofrem com as múltiplas mazelas do patriarcado e que, mesmo assim, optam por continuar lutando para se verem inseridas em uma sociedade mais justa e igual. Com isso, a campanha #MeuProfessorEnsinou representa mais uma forma de fazermos valer nossa voz contra esse sistema hegemônico dominante.

A esfera jurídica normativa, ainda muito formalizada, precisa caminhar em direção à eficácia social e, para isso, é necessária a constante participação democrática do povo. Eis a perfeita legitimidade da referida campanha, apoiada no exercício do direito fundamental à liberdade de expressão.

“De uma maneira geral, meus professores me ensinaram que, por ser mulher, eu sou diferente dos homens. A minha opinião nunca será válida automaticamente. Eu preciso falar e provar mil vezes a minha fala. A minha opinião muitas vezes é alterada pelos meus hormônios, porque eu tô de TPM, porque eu estou menstruada”. – Direito PUC-Minas. 

A frase acima, dita por uma estudante acadêmica, evidencia um problema recorrente e histórico dentro de nossa sociedade, que é a falta de credibilidade na fala de uma mulher. Enquanto um homem, pela sua mera condição de gênero masculino, dotado de privilégios, não emprega esforços para ter sua opinião ouvida e quase que imediatamente valorizada, uma mulher, vista como sendo o “sexo frágil”, precisa necessariamente provar, de todas as formas, sua capacidade intelectual.

Os traços estereotipadores dos papeis de gênero, por ainda estarem enraizados, conforme elucidado no início do texto, estão muito presentes em diversas situações cotidianas, como a fala dos professores, o que mostra a importância e o valor do feminismo ao questionar, verbalizar e chamar a atenção com o intuito de transformar.

Isso sim, de fato, materializa o direito, fortalece os valores da dignidade da pessoa humana e dá voz às minorias oprimidas socialmente. A exposição da fala dos professores pelas alunas deixa uma lição. A luta das mulheres é diária, eterna e por todas nós:

“Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que se manter vigilante durante toda a sua vida”. – Simone de Beauvoir.


Notas e Referências:

Brasil registrou um estupro a cada 11 minutos em 2014, aponta Anuário de Segurança Pública. Compromisso e Atitude, out. 2015. Disponível em: <http://www.compromissoeatitude.org.br/casos-de-estupros-no-brasil-diminuiram-em-2014-segundo-anuario-de-seguranca-publica/> Acesso em: 10 nov. 2016.

No Brasil, um estupro a cada 11 minutos. Carta Capital, nov. 2016. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/no-brasil-um-estupro-a-cada-11-minutos> Acesso em: 10 nov. 2016.

Um terço dos brasileiros pensa que a culpa do estupro é das mulheres. Globo News, set. 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2016/09/um-terco-dos-brasileiros-pensam-que-culpa-do-estupro-e-das-mulheres.html> Acesso em: 10 nov. 2016.


alice-costa-lima-salz. Alice Costa Lima Salz é estudante do 6º período do curso de Direito e atualmente estagiária do Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher e de Vítimas de Violência de Gênero (NUDEM), da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Possui interesse em temas de cunho social e político. .


Imagem Ilustrativa do Post: Marcha das Vadias - Brasília (DF) // Foto de: Mídia NINJA // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/midianinja/9110861129

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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