Por Gabriel Bulhões - 07/08/2016
Quando virei, já sabia há certo tempo que seria advogado criminal. Quando peguei a “vermelhinha”, já me preparava há muito e já tinha planejado e divagado sobre milhões de situações que em sua grande maioria não se transmudou da expectativa à realidade. Achei, por certo tempo, que o exercício da profissão seria permeado por riscos e que estaria, ocasionalmente, sujeito a diversas situações que me colocariam em face ao medo e a dor. Eu me preparei para isso.
Mas, no “frigir dos ovos”, com as semanas e meses que se passaram, todo um imaginário que inevitavelmente havia construído se dissipara. Não há grandes riscos em lidar com os clientes da advocacia criminal; afinal, somos os depositários das esperanças daqueles que caem na malha do sistema punitivo, de uma forma geral. O labor do advogado criminal, regularmente[1], não nos traz grandes riscos.
Nada obstante, como nem tudo são rosas, estamos sujeitos – como o estamos em qualquer desígnio da vida – à passar por determinadas situações que nos impigem medo, raiva e, de fato, nos oferecem risco (psicológico e físico). E agora eu queria relatar aqui uma experiência que, ao final, nos permite tirar uma lição fundamental e que pode ser uma estratégia de enfrentamento, por parte da advocacia, às violações das nossas prerrogativas profissionais.
Para dar uma pitada etnográfica a esse relato, tenho que dizer que meu escritório fica na rua da Delegacia de Plantão da Zona da Sul da capital do meu estado, e que ao lado dessa DP de Plantão há um Centro de Detenção Provisória (CDP). Assim, pouco antes do fim do expediente da manhã, próximo do horário do almoço, convidei meu sócio (que é advogado com atuação eminentemente trabalhista, mas que percorre com maestria quando preciso os dissabores da seara criminal) para ir entrevistar um cliente, munido de uma procuração que o mesmo devia assinar.
Saímos, pois, para após o cumprimento dessa demanda seguirmos almoçar... Seria uma diligência breve, que acreditava eu durar no máximo breves minutos (mesmo sabendo que ao irmos a alguma unidade prisional aqui do nosso estado podíamos esperar qualquer coisa, dada a precariedade estrutural em todos os aspectos). Tudo saiu do planejado.
Chegamos à CDP e nos dirigimos ao balcão da recepção, onde estavam dois Agentes Penitenciários e um Policial Militar. Um dos dois agentes estava ao celular, enquanto que o outro agente e o PM conversavam sobre o programa policialesco que pela TV do ambiente era veiculado. Apresentamo-nos como advogados e dizemos que queríamos conversar com um cliente que lá estava custodiado, além de eu ter perguntado se o Diretor da unidade estava presente (pois havia outra questão administrativa que queria tratar). Mandaram-nos aguardar.
Após cerca de 20 minutos de espera, questionei um dos agentes sobre a presença do diretor da unidade, ocasião na qual me foi ordenado, novamente, que esperasse. Pensei cá com meus botões: “a hora passando, a fome apertando, e eu levando chá de cadeira aqui por nada”. Eu já havia notado que não estava sendo realizado nenhum “procedimento padrão”, nenhuma revista, as refeições tinham acabado de ser entregues quando chegamos (pois nós havíamos visto a Kombi da empresa responsável deixar o local).
Após certo tempo, de novo, indaguei os agentes sobre a possibilidade de falar com meu cliente e sobre a presença do diretor, motivo que levou um dos agentes a levantar a voz comigo, e quase berrando, vociferou: “você ainda não entendeu que estamos ocupados?! Aguarde aí!”. Detalhe: já era quase 13h e eu estava já morrendo de fome e angustiado com toda aquela situação. Pois bem. Na recepção da unidade, havia a recepção, com um balcão de meia altura que beirava a parede, restando uma abertura por onde se transitava para o interior da unidade.
Eu, no auge da minha ansiedade e inocência, ponho metade do meu corpo para dentro da unidade, esticando-me com o tronco para conseguir ultrapassar a barreira da porta de madeira que liberava o acesso para a parte administrativa da unidade, a fim de ver se o Diretor estava por lá, para eu mesmo chamá-lo e enfim dar continuidade ao que queríamos ali.
Nesse instante, como se numa abrupta confusão, ouço gritos ensurdecedores na minha direção, dos quais pouco conseguia até mesmo entender. O agente que havia se exaltado anteriormente quando havia solicitado informações, berrava copiosamente frases como: “Você tá achando que é quem para ir invadindo isso aqui?”, “Você sabe que ninguém entra aqui sem autorização!”, “Você veio aqui para nos desmoralizar!”, etc.
Fui, após ser “peitado” por esse agente, que devia ter no mínimo 1,85m e 120 kg (enquanto eu olhando de baixo com pouco mais de 1,60m e 60kg), argumentar que eu era advogado, estava ali para trabalhar (igual a ele), que não queria desrespeitar ninguém e nem muito menos tumultuar a rotina da unidade... E fui falando que era uma prerrogativa do advogado entrar em qualquer estabelecimento público sem necessitar de autorização entre outras coisas.
Mas não funcionou. Quanto mais eu tentava argumentar, mais esse homem se descontrolava, chegando a proferir, em tom ameaçador, a seguinte assertiva: “Saia daqui de dentro agora, se não as coisas vão piorar para você!”. Nisso, eu tinha um homem que dava no mínimo dois de mim, me olhando nos olhos a 10 cm de distância. Fiquei realmente com medo. E num piscar de olhos, o diretor me aparece (branco, constrangido e receoso daquela situação), quando meu sócio me tira dali de dentro em um abrupto empurrão. Pronto: fui expulso de um CDP.
Saí dali atordoado. Sem acreditar no que acabara de acontecer. Para que fique bem claro, eu sempre procuro ser a pessoa mais empática que posso, realizando no dia-a-dia verdadeiros e contínuos exercícios de alteridade, me colocando no lugar dos demais profissionais os quais interajo e que invariavelmente apresentam dificuldades em seus desideratos: não por má-vontade e sim por dificuldades estruturais das mais diversas ordens.
O fato é que eu fui impedido de exercer meu ofício, humilhado, ameaçado e expulso de uma unidade prisional, sendo vítima de um claro abuso de autoridade. Meu sangue estava fervendo nessa hora, e não conseguia racionalizar qual medida deveria tomar. No estupor que me causou essa situação, abri meu WhatsApp e, por meio do recurso de envio de áudios, relatei breve e incisivamente o ocorrido em cerca de três ou quatro grupos de colegas das áreas. E esqueci ali o celular, me sentando em um banco da calçada com meu sócio para raciocinar sobre o que acabara de acontecer.
Foi impressionante. Em questão de 10 minutos começaram a chegar os primeiros colegas ao meu encontro. Sem perceber, já estávamos rodeados por pelo menos cinco colegas, todos prestando solidariedade ao chamado da rede social. Aos poucos, começaram a chegar outros. Em cerca de 35/40 minutos já havíamos reunido cerca de 30 advogados criminalistas, inclusive a maioria das grandes referências em quê me espelho.
Foi algo emocionante. Um ato de desespero, despretensioso, se transformou no maior ato de solidariedade entre a advocacia que eu presenciei. E tive o (des)prazer de protagonizar. Certo estou, porém, que o fato de terem comparecido tantos colegas se deveu a uma série de fatores, tais como: (i) ser um horário conveniente, entre o fim de um turno e o início do outro; (ii) ser logo após o horário habitual do almoço, quando as pessoas estão ainda em um intervalo entre a manhã e a tarde; (iii) o local era bastante central, localizando-se próximo aos principais prédios do Sistema de Justiça Criminal; e (iv) eu ter postado em vários grupos simultaneamente. Independentemente de qualquer coisa, esse deve ser um recurso prioritário e deve ser utilizado sempre pelos advogados em situações como essa: inclusive para fomentar a criação dessa cultura.
Ver dezenas de colegas se deslocarem dos seus afazeres para prestar suporte a um companheiro vulnerado foi uma das grandes injeções de ânimo que recebi da profissão. Chegaram equipes completas de escritórios, jovens advogados, e os causídicos mais experientes. Chegaram representantes da OAB, do Conselho Estadual, da Comissão de Prerrogativa e da Comissão dos Advogados Criminalistas. Foi algo bonito de se ver.
Ao notar a proporção do “burburinho” que se formara ali no pátio externo, o Diretor da Unidade viera até nós e pediu para conversar reservadamente comigo, com meu sócio e com um dos advogados que ali estava (um dos maiores e mais influentes advogados da cidade). O Diretor me falava que não sabia como as coisas tinham chegado naquele ponto, que realmente o Agente estava no meio de uma crise (oi? E ele estava no plantão?) e que sofre de problemas psicológicos. Usou esse argumento médico, inclusive, para pedir que eu não deflagrasse os procedimentos de ordem administrativa, cível e criminal pertinentes, que já haviam sido ventilados na conversa. Por último, ainda me pediu que voltasse no outro dia (é mole?) para resolver o problema, que ele daria um jeito de eu não me encontrar mais o referido Agente.
Pois bem. Para evitar maiores dissabores, e em bom juízo ao Diretor que estava ali, se esforçando em justificar a situação, resolvemos deixar tudo por ali. Por fim, ele ficou avisado pelo representante da Ordem que em uma próxima oportunidade o advogado que fosse vítima de conduta semelhante não se eximiria, como eu estava fazendo naquele momento, de representar (cível, administrativa e criminalmente) contra quem que perpetrasse tal ato.
Naquele dia, em espírito e consciência, pude perceber e viver uma advocacia mais forte. Onde os conhecidos lobos solitários (como geralmente são as carreiras dos criminalistas) se aglutinaram em uma imponente alcateia para desvulnerar um dos seus.
Notas e Referências:
[1] Exceção que vale a pena mencionar, sem dúvidas, é o caso de defesa em um Tribunal do Júri em quê, geralmente em longínquos interiores, há um grande apelo social por parte da família e amigos da vítima, que pode resvalar no advogado de defesa.. .
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Gabriel Bulhões é Advogado criminalista militante, atual Presidente da Comissão dos Advogados Criminalistas da OAB/RN, especialista em Ciências Criminais e Professor de Processo Penal.. .
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