Medida provisória e controle de constitucionalidade (Parte 1)

21/05/2017

Por Harthyan Bruno Schuck de Medeiros - 21/05/2017

Orientador: Henrique Gualberto Bruggemann

Leia também a Parte 2

Introdução

A medida provisória é uma espécie de ato normativo peculiar. Por meio dela o Poder Executivo pode criar direitos e obrigações sem a participação de outro Poder. Considerando que inovar no ordenamento jurídico é função típica do Poder Legislativo, a Constituição estabelece algumas limitações para a adoção de medidas provisórias, dentre as quais a existência de relevância e urgência (pressupostos constitucionais). O controle de constitucionalidade desses pressupostos pelo Poder Judiciário, em especial no âmbito federal, foi o tema de minha monografia, apresentada para obtenção do grau de bacharel em Direito, e é o tema deste trabalho, dividido em duas partes.

A primeira parte será uma introdução, com indicação da quantidade de provimentos desse tipo adotados e de ações de controle concentrado questionando a constitucionalidade deles.

A possibilidade de análise dos pressupostos constitucionais das medidas provisórias pelo Poder Judiciário, e como isso é/seria feito, segundo o Supremo Tribunal Federal, são os temas da segunda parte deste trabalho.

Por fim, as considerações finais. Espera-se que os dados levantados nesse trabalho ajudem na formação de um panorama acerca do tema. Com o panorama formado é que, com tempo, podem surgir sugestões de melhoria.

Parte um

O Poder Executivo começou a emitir atos com força de lei para suprir exigências, em especial dos campos econômico e social, que demandavam soluções mais rápidas do que o Poder Legislativo poderia dar[1]. Em regra, tais atos ficam a critério do próprio Poder Executivo, ao editá-los, e do Poder Legislativo, que geralmente os controla.

No Brasil, desde 1930 houve a emissão de normas primárias pelo Presidente da República, embora a previsão constitucional só viesse em 1937. A Constituição de 1946 não previu a prática. No entanto, o Ato Institucional n. 1/1964 possibilitou esse tipo de ato normativo, o que foi mantido na Constituição de 1967, na EC n. 1/1969 e na atual Constituição (art. 62, com a redação dada pela EC n. 32, de 11/09/2001)[2].

De 11/09/2001 (data da Emenda Constitucional n. 32/2001, que alterou a sistemática desse ato normativo) a 03/03/2016 (data do início do projeto da monografia que originou este trabalho) foram publicadas 715 medidas provisórias, o que equivale a praticamente 50 Medidas por ano e 1 por semana.

A Constituição vigente prevê pressupostos para a edição de Medidas Provisórias: relevância e urgência (art. 62); como esses pressupostos são constitucionais, o Supremo Tribunal Federal sempre entendeu que é possível o controle judicial desses pressupostos, a fim de se guardar a Constituição (por exemplo: ADIs 1753[3] e 1910[4]). Resultado disso é que a última palavra acerca da relevância e urgência de uma medida poderá ser do Poder Judiciário.

A ementa da ADI 1667 pode conduzir a informação diversa, mas ela está diferente do inteiro teor da decisão. Segue o comparativo:

Modelo de Monografia currículo 6

Não bastasse a divergência entre a ementa e o voto, verifica-se que as decisões citadas não condizem com a conclusão do Ministro. Na ADI 162, por exemplo, se decidiu que os conceitos de relevância e urgência “admitem o controle judiciário quando ao excesso do poder de legislar” (ementa). O então Ministro Paulo Brossard decidiu que “não se pode negar que a relevância existe; tenho-a como manifesta”[5]; o então Ministro Néri da Silveira “verificando a matéria que compõe seu objeto [da medida provisória]”, entendeu “inegável a observação de que se trata de matéria relevante”[6]; o então Ministro Moreira Alves, relator da ADI, não afirma necessitar objetiva ausência de urgência e relevância para declarar a inconstitucionalidade de uma MP, mas, sim, que fique caracterizado o “abuso do poder de legislar”[7], como, aliás, consta na ementa.

Na ADI 526 o Ministro Relator, voto vencedor, Sepúlveda Pertence falou em possibilidade de controle das medidas provisórias quando houver “abuso manifesto”[8]. Na ADI 1397, o então Ministro Carlos Velloso afirmou a sindicabilidade dos pressupostos constitucionais quando eles se verificarem “claramente improcedentes”[9]. Na Medida Cautelar da ADI 1417 o STF entendeu que era “inadequado” analisar os pressupostos em medida liminar. No julgamento definitivo, o Ministro Relator Octavio Gallotti entendeu que a conversão em lei superava qualquer vício nesse sentido[10]; os Ministros Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio entenderam que a conversão em lei não sana o vício inicial; o primeiro entendeu que não havia “caso excepcional” que transferisse o juízo acerca da relevância e urgência da MP do Congresso Nacional para o Judiciário; no entanto, o segundo entendeu que não estava diante de hipótese que sugerisse urgência[11]. Ambos sem adentrar muito no porquê desses entendimentos. Da análise de todos esses votos não se chega à mesma conclusão que o então Ministro Ilmar Galvão chegou na ADI 1667, no sentido de não caber ao Judiciário cuidar dos pressupostos constitucionais das MPs, bem como da necessidade de “manifestação objetiva” da ausência desses pressupostos.

Os votos vencidos em sentido contrário em geral defendem que cabe ao Presidente da República e ao Congresso Nacional definir o que é relevante e urgente (ADI 1417, p. 22, Min. Nelson Jobim; ADI 4080, p. 80, Min. Menezes Direito; ADI 4048, p. 48-50, Min. Joaquim Barbosa). Na ADI mencionada o então Ministro Nelson Jobim chega a questionar seus pares acerca da possibilidade de o Presidente da República requerer que o Poder Judiciário reconhecesse a relevância e urgência de MP rejeitada pelo Congresso Nacional. A ideia chega a fazer sentido, porque se o Poder Judiciário pode reconhecer o abuso do Poder Executivo na edição da MP, poderia reconhecer o abuso do Poder Legislativo na rejeição desta. Como se sabe, isso nem se cogita.

De 11/09/2001 (data da Emenda Constitucional n. 32/2001, que alterou a sistemática desse ato normativo) a 03/03/2016 (data do início do projeto da monografia que originou este trabalho), foram localizadas[i] mais de 150 ações de controle concentrado contra MPs. Foram consideradas as ADIs individualmente, sem considerar apensamentos. Importante registrar que a constitucionalidade de um ato normativo não precisa ser questionada por meio de controle concentrado, razão pela qual pode haver várias outras ações judiciais sobre medidas provisórias.

Em várias dessas ações não foram analisados os pressupostos constitucionais das Medidas Provisórias, seja porque estavam pendentes de julgamento (de mérito ou liminar), seja porque os Ministros não analisaram a temática.

Assim, foram estudadas mais de 45 Ações Diretas de Inconstitucionalidade ou Ações Declaratórias de Constitucionalidade que tramitam/tramitaram perante o Supremo Tribunal Federal. Além disso, foram consultados Recursos Extraordinários e decisões de outros Tribunais a respeito.  Buscou-se analisar, uma a uma, todas as ações de controle concentrado que abordaram o tema dos pressupostos constitucionais das MPs no STF a partir de 11/09/2001 – data da promulgação da EC 32/2001, que alterou o sistema. Além disso, consultaram-se algumas decisões relacionadas ao tema, principalmente as citadas pelos Ministros, Advogados, Procuradores, etc.

A grande maioria delas foi extinta sem resolução de mérito ou julgada prejudicada. Os motivos: ilegitimidade ativa, propositura contra lei de efeitos concretos (o STF não admitia controle concentrado contra lei de efeitos concretos, posicionamento que foi alterado no julgamento das ADIs 4048 e 4049), alteração substancial na conversão da MP em Lei, falta de aditamento, etc.

Foram apenas 21 julgamentos de mérito de ações de controle concentrado contra MPs, tanto acerca de Medidas Cautelares, como em julgamentos definitivos. Nessa conta se considerou como apenas um julgamento no caso de apensamento de ADIs. Registra-se que relevância e urgência não foram analisadas em todos os julgamentos; nas ADIs 3577 e 3578, propostas contra a MP 2192/2001, sequer foi alegada nas iniciais a falta de pressupostos constitucionais.

Assim, o discurso de que a intervenção do Poder Judiciário nos pressupostos constitucionais das MPs se dá em casos excepcionais (ADI 2527, por exemplo) tem se refletido na prática, dado o baixo número de declarações de inconstitucionalidade de medidas provisórias por falta de pressupostos constitucionais.

Nas ações pesquisadas só foi localizada uma declaração de inconstitucionalidade de Medida Provisória por ausência de seus pressupostos constitucionais em definitivo pelo STF: ADI 2736; no entanto, a ausência de pressupostos não foi o único motivo para declaração de inconstitucionalidade. A MP questionada em controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, anterior à EC n. 32/2001, tratava de honorários sucumbenciais – matéria processual – o que teve muito peso no julgamento pela inconstitucionalidade.

Assim, nos casos em que se declarou a inconstitucionalidade de MP por falta de relevância e urgência, a própria matéria, em concreto, da medida provisória foi analisada, de forma que não se verificam julgamentos acerca de inconstitucionalidade pura e simplesmente por ausência de pressupostos constitucionais, mas sempre em conjunto com outros motivos (ADI 4048).

Como visto, o STF sempre entendeu que pode analisar a presença ou ausência dos pressupostos constitucionais. Mas isso não foi sempre assim no que se refere à possibilidade de analisar a relevância e urgência de medida provisória já convertida em lei. Na ADI 1721, por exemplo, o STF entendeu prejudicada essa análise após a conversão em lei da MP. No entanto, principalmente por motivos de supremacia da constituição, o STF há algum tempo tem entendido poder analisar esses pressupostos (ADI 3090, por exemplo).

Diante desse panorama, precisa-se verificar se há parâmetros claros acerca do que é urgente e do que é relevante, o que será visto na próxima parte do trabalho.


Notas e Referências:

[1] NICOLAU, Gustavo Rene. Medidas Provisórias: O Executivo que legisla. São Paulo: Atlas, 2009, p. 30

[2] Idem, p. 73

[3] ADI 1753 MC, 16/04/1998, p. 8.

[4] ADI 1910 MC, 22/04/2004, p. 10.

[5] ADI 162 MC, 14/12/1989, p. 35

[6] ADI 162 MC, 14/12/1989, p. 44.

[7] ADI 162 MC, 14/12/1989, p 10.

[8] ADI 526 MC, 12/12/1991, p 22.

[9] ADI 1397 MC, 28/04/1997,p. 10.

[10] ADI 1417, 02/08/1999, p. 12.

[11] ADI 1417, 02/08/1999, p. 18.


Os dados foram obtidos mediante consulta ao “Portal da Legislação” do governo federal e ao site do Supremo Tribunal Federal e após foi feito cálculo aritmético.


Harthyan Bruno Schuck de Medeiros. . Harthyan Bruno Schuck de Medeiros é Pós-graduando em nível de especialização - Direito Processual civil, bacharel em Direito pela UNIVALI e servidor público. . .


Este trabalho teve a orientação de:

Henrique Gualberto Bruggemann

. . Henrique Gualberto Bruggemann é Professor da Univali e Mestre em Direito pela UFSC. . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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