Por Samuel Mânica Radaelli - 14/03/2016
"Eu não estou interessado em nenhuma teoria, nem dessas coisas do oriente romances astrais, a minha alucinação é suportar o dia-a-dia e o meu delírio é experiência com coisas reais"
Alucinação, Belchior
A formação jurídica estampa uma grande dificuldade de percepção do sentido dos conteúdos teóricos, tratados nas disciplinas ditas "propedêuticas" ou de "formação humanística", dificuldade vivenciada por alunos, mas também por professores, não só das disciplinas técnicas ou práticas. Embora possa parecer espantoso, para os professores das disciplinas teóricas, muitas vezes, não esta claro qual o papel desse conjunto de conteúdos.
O resgate da razão de ser destes temas remonta a compreensão de qual o papel do ensino em nível superior, afinal, há que se definir especificamente qual propósito de aplicar cinco anos de vida em um curso de Direito. A vivência exitosa de um curso de graduação necessita cumprir alguns objetivos principais, possibilitando ao aluno: acesso ao universo cultural que humanidade produziu; compreensão dos fatores históricos, sociais, econômicos, políticos e culturais que incidem sobre o estudante; fundamentação das escolhas e habilitação profissional.
No entanto, percebe-se nas faculdades uma primazia da última perspectiva, esquecendo-se da importância dos outros três objetivos. Diversos fatores fazem com que o aluno, os professores e as instituições, preocupem-se predominantemente com a habilitação profissional. Tendo em vista que o acesso às profissões jurídicas é feito basicamente por concurso, tal esforço é pautado pela busca de preparação para os certames profissionais. Assim, a compreensão de uma ciência que trata, dentre outras tarefas fundamentais, da justiça e da organização da violência estatal, dá lugar a memorização de soluções condensadas, visando a aprovação em provas. Assim, o ensino do Direito se resume a busca pelo acesso a cargos públicos ou do ingresso na advocacia, deixando de lado questões bem maiores, como por exemplo: o que fazer depois de ingressar nestas funções, quando do exercício das profissões jurídicas.
Para responder a perguntas como essa é que se recorre á teoria, esta desenvolvida inicialmente como filosofia, depois desdobrada e aprofundada nas múltiplas ciências, mas sempre com a função primordial de pensar sobre o sentido de cada uma delas diante do mundo. Essa é a razão de ser das disciplinas teóricas no curso de Direito, pensar o Direito diante do mundo. Pensar é romper com cotidianidade, a filosofia e o pensamento nascem do espanto com a realidade, significa surpreender-se, no dizer de Heidegger é escandalizar-se, implica portanto, em romper com a visão naturalizadora da realidade, trazê-la à luz na forma de reflexão. Tal ato expressa uma crise, que implica em separar-se da realidade, pois enquanto se esta envolto nela não há critérios, nem se desenvolve a percepção necessária ao julgamento desta. No ato de ruptura e separação da realidade, ocorre a transcendência em relação ao horizonte que está posto. Pensar é romper com cotidiano em busca de esclarecê-lo.
Portanto, não se tratam de disciplinas propedêuticas, mas sim áreas do Direito, divisão criada por conveniências didáticas, mas que também necessita ser repensada, em razão de que não pode operar no cotidiano. Diante da complexidade do direito, sua ação necessita ocorrer nos diversos temas que compõem esta ciência, sob pena de reforçar a dissociação entre pensar e fazer. Mais que disseminar a compreensão de conteúdos, sua função é inaugurar uma atitude reflexiva e crítica que possibilite um atuação fundada do jurista.
. Samuel Mânica Radaelli é Doutorando em Direito (UFSC), Mestre em Direito Público (UNISINOS), Professor do Instituto Federal do Paraná - IFPR e advogado. Membro do Grupo de Estudos Direitos Sociais e América Latina - GEDIS. Email: radaelliadvocacia@yahoo.com.br. .
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