Macunaíma e o Avestruz: Notas sobre integridade e coerência no direito brasileiro

17/06/2017

Por João Paulo Allain Teixeira – 17/06/2017

O julgamento da chapa Dilma-Temer pelo TSE nos últimos dias mobilizou a opinião pública brasileira principalmente diante da expectativa de como se comportaria a Corte diante da turbulência política instalada no país.  Cabe ao judiciário o papel de mediação dos conflitos sociais a partir da interpretação do direito posto, tutelando e domesticando, na medida de suas potssibilidades, as naturais tensões sociais decorrentes de pretensões resistidas ou frustradas.  A ação, interposta pelo PSDB “para encher o saco” do PT, pode ser analisada sob diferentes prismas que evidenciam o protagonismo assumido pelo judiciário brasileiro em assuntos políticos. Em primeiro lugar, a judicialização da legitimidade da eleição revela o elevado grau de interferência do judiciário em assuntos políticos alcançada na experiência brasileira. Em segundo lugar, chama a atenção a forma de atuação de juízes e tribunais no Brasil nas questões políticas, contratastando significativamente com a sempre lembrada “imparcialidade” que caracteriza o discurso habitual de legitimação da institucionalidade judicial.

Macunaíma, personagem de Mario de Andrade, representa o desejo de compreensão da cultura nacional através da exaltação do folclore e das lendas encontradas na cosmovisão indígena, tradição ofuscada pelo formatação do sistema cultural brasileiro na década de 1920. Chama a atenção em Macunaíma, além da preguiça recorrente, uma malandragem típica de quem se ressente de valores que orientem a sua conduta, daí a merecida alcunha de “herói sem nenhum caráter”. Não deixa de ter um certo tom macunaímico o histórico do processo que culminou que a absolvição da chapa Dilma-Temer. O tom nacionalista fica por conta da peculiar institucionalidade jurídica que transformou a legalidade no Brasil em parâmetro absolutamente imprestável para balizar as demandas nos tribunais, na medida em que não obstante os limites oferecidos pela lei, tudo é possível.

O pedido de cassação da chapa Dilma-Temer se deu ainda durante o processo eleitoral através da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE 194.358) e depois, eleita a chapa, através da Ação de Investigação de Mandato Eletivo (AIME 761) e também por meio de Representação Eleitoral (RP 846).  As demandas, julgadas em conjunto, e apresentando como fundamento o abuso de poder econômico e político teve como relator o Min. Antônio Hermann Benjamin que votou pela cassação da chapa. Em dois anos porém, desde a propositura da ação até o seu julgamento, o cenário politico nacional mudou significativamente em virtude do Impeachment de Dilma Roussef. Havendo assumido a Presidência o vice na chapa impugnada, Michel Temer conduziu um novo arranjo politico-partidário ao se estabeler no Governo Federal. Chama a atenção a volatilidade das opiniões de Ministros divulgadas na mídia, que se antes atuaram pela impugnação da chapa, depois tornaram-se ferrenhos opositores da cassação do mandato eleitoral, justificando seu voto em defesa da estabilidade, da soberania popular, e da governabilidade.

A preocupação com integridade e coerência no direito decorre de um esforço no sentido de proporcionar a higidez do sistema jurídico a partir de uma consolidação de precedentes a serem efetivamente considerados por juízes e tribunais em suas decisões. Isto exige, sem dúvida, um certo esforço para que seja encontrada a ratio decidendi e a partir daí seja estabelecido um diálogo construtivo entre o intérprete e o próprio histórico da corte, materializando aquilo que Ronald Dworkin chamou de “romance em cadeia”. O que se viu no julgamento das referidas ações foi um belo exercício de decisionismo jurídico, com pouca ou nenhuma diposição dos Ministros em enfrentar juridicamente a dimensão probatória, antes preferido declinar argumentos de justificação meramente política.

Para o futuro, temos um horizonte de incerteza ainda maior, já que o TSE abre perigoso precedente, praticamente reconhecendo sua incapacidade de enfrentar questões decorrentes de abuso de poder político e econômico quando se trate de cassação de chapa para o governo federal.

É preciso aqui deixar claro que não se trata de exigir dos tribunais o compromisso com uma determinada decisão específica. Trata-se sobretudo de exigir um compromisso com um modelo de decisão consistente. Quem quer que pretenda ignorar a dimensão do problema, certamente estará na posição de avestruz.


João Paulo Allain Teixeira. João Paulo Allain Teixeira é Professor dos Programas de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Membro e líder do grupo de pesquisas REC CNPq - Recife Estudos Constitucionais.. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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