Liberal na economia, conservador nos costumes...  colonial no pensamento  

11/02/2019

 

“Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais’’ (Belchior)

“Lindamente brasileira, mente brasileira mente lindamente brasileira” (Belchior)

                Os apelos por mudança e a insatisfação política no Brasil deram vazão a um discurso de “nova política”, as promessas de mudança foram por muitos sintetizadas em um mantra largamente recitado, tido como reposta aos grandes impasses da nossa sociedade: “liberal na economia, conservador nos costumes”. Com este slogan, definiu-se o espírito daqueles que, imbuídos de personalidade mítica, declararam-se capazes de resolver de forma rápida os problemas da sociedade, especialmente a corrupção e a ameaça comunista. Para eles, as causas  dos problemas sociais podem ser explicadas seguindo a  mesma fórmula de  simplificação, sendo resumidas em um adjetivo que qualifica quem é vítima de uma realidade social perversa: va-ga-bun-do! 

            No entanto, tal inovação política é só um discurso. Aqueles que o repetem dão margem ao velho adágio “aquilo do que mais fala é o que mais falta”, ou seja, a “nova política” é a nova roupagem de ideários retrógrados de múltiplas faces, especialmente os fascistas. A contradição é óbvia, como pode ser nova uma aposta política no conservadorismo dos costumes?

            A relação entre Liberalismo e conservadorismo, por mais esclerosada que possa parecer, não é nova, especialmente no país cujo nome vem do que é vermelho como brasa, e que por vezes, deixou alguém brasil de vergonha, antes de se vestir de auriverde. A formação do panorama  institucional brasileiro e latino-americano já expressava esta inusitada síntese liberal-conservadora ainda no século XIX.

Este contraditório pacto liberal-conservador deu-se em razão de que ambos os grupos tinham, inobstante suas enormes diferenças, muitos objetivos em comum. Seu principal ponto de discórdia se dava nos temas religiosos, pois enquanto uns queriam o estabelecimento de uma ordem favorável ao império da religião, outros defendiam - por diversas razões, muitas delas de ordem econômica, havendo até aqueles que professavam o ateísmo - uma ordem constitucional mais aberta. Liberais e conservadores apresentavam diferenças, também, em relação ao nível de concentração da autoridade nacional e política. Para além destas discrepâncias, houve um enorme campo de convergência: tanto liberais como conservadores tinham interesse na defesa da propriedade, ameaçada pelas demandas crescentes de grupos politicamente cada vez mais exigentes. Neste sentido, ambas as colorações políticas se mostravam temerosas das consequências do acesso ativo das massas ao sistema de tomada de decisões.[i]

Outra referência do sincretismo Liberalismo-conservadorismo é a vinculação entre Liberalismo e patrimonialismo que, de um lado permitiria o “favor”, o clientelismo e a cooptação; e, de outro, introduziria uma cultura jurídico-institucional marcadamente formalista, retórica e ornamental.

“Além de seus aspectos conservadores, individualistas, antipopulares e não populares democráticos, o Liberalismo brasileiro deve ser visto igualmente por seu profundo traço ‘juridicista’. Naturalmente, a adequação esdrúxula de concepções ideológicas distintas, internalizada a um cenário autoritário e excludente, acabou gerando a especificidade de um “Liberalismo-conservador” também nas formas tradicionais de controle social. Ora, enquanto o ideário conservador exalta a tradição, a hierarquia, a formalidade normativa e a distinção social, o Liberalismo faz a defesa do equilíbrio, da conciliação, da ordem sem conflito, da isenção de valores e da individualidade.”[ii]

Desse modo, o Liberalismo teve sua implementação de forma negociada com interesses locais. O caso brasileiro é um exemplo disso, expresso pela manutenção da escravidão por quase todo período imperial brasileiro. Tem-se, assim, “o contínuo produto da conciliação-compromisso entre o autoritarismo social modernizante e o Liberalismo burguês conservador.”[iii] Seguindo o propósito de por em prática princípios universais aplicáveis a todos os governos representativos, o Liberalismo no continente latino não logrou êxito no seu intento de governos estáveis, percorrendo um terreno tão diverso do original, pois sua incidência no período inicial não colaborou com o desenho institucional de Estados nascentes, tendo inclusive complicado tal tarefa.[iv]

A adoção de ideais liberais vai seguir a lógica colonial, presente nos próximos momentos da história política regional: a incorporação formal de propostas teóricas estrangeiras com pretensão de sofisticação, mas que, na prática, reforça a afirmação elitista e patrimonialista. Oculto por um verniz racionalista e liberal, o favor clientelista vai, assim, afirmar-se na vida pública.[v]

Os liberais latino-americanos manifestaram, via de regra, uma postura europeizante, disposta a buscar saídas universais para alçar o desenvolvimento das sociedades regionais. No século XIX, no entanto, percebe-se o desenvolvimento de um “espírito americano”, voltado às pautas desenvolvidas nos EUA. Passa-se a ter outro foco de influência, tendo especial interesse pelas novidades constitucionais de lá oriundas, em especial o federalismo. [vi]

Diferente do Liberalismo no século XIX, que buscava  aparentar a adesão a um processo civilizatório e modernizador, com vistas a ocultar o elitismo e a brutalidade das relações sociais, a invocação do Liberalismo, agora, é francamente restritiva: liberais, só na economia, o que significa a sujeição da sociedade por meio de suas instituições aos ditames do mercado. Invoca-se o Liberalismo acentuando a promessa de liberdade feita por ele séculos atrás; contudo, tal promessa se restringe ao mercado, nisso se desenha o Neoliberalismo, como a soberania do mercado com máxima liberdade para os fortes servirem-se dos fracos.  O discurso de liberdade, a medida que livra os atores dominantes de qualquer limitação civilizatória, passa a ser contido para que não chegue a outras esferas da sociedade.

Restringir a liberdade à esfera do mercado, impedindo que este discurso atinja os corpos é justamente o papel do conservadorismo. Ser conservador nos costumes significa reforçar a manutenção das estruturas de poder de uma sociedade, em especial na defesa do patriarcado, concepção fundamental para as estruturas autoritárias, especialmente as fascistas, pois:

“Numa sociedade fascista, o líder da nação é análogo ao pai de família patriarcal tradicional. O líder é o pai da nação, e sua força e poder são a fonte de sua autoridade legal, assim como a força e poder do pai da família no patriarcado supostamente são a fonte de sua suprema autoridade moral sobre seus filhos e esposa. O líder provê a nação, assim como na família tradicional o pai é o provedor. A autoridade do pai patriarcal deriva de sua força, e a força é o principal valor autoritário. Ao apresentar o passado da nação como um passado com uma estrutura familiar patriarcal, a política fascista conecta a nostalgia de uma estrutura autoritária hierárquica organizadora central, que encontra sua mais pura representação nessas normas”.[vii]

           

A busca por uma síntese entre Liberalismo para o mercado e conservadorismo para os costumes revela que o próprio Liberalismo pouco ensina aos adeptos dessa gambiarra política. O slogan pode ser traduzido em liberdade para o mercado, que contrasta com o aprisionamento do corpo no âmbito da sexualidade, da identidade e das relações de trabalho. Em resumo, corpos ao dispor do poder e do lucro. Em um país forjado em bases escravocratas nada disso pode ser chamado de “nova política”.

           

Notas e Referências                 

[i] GARGARELA, Roberto. Los fundamentos legales, de la desigualdad, el Constitucionalismo na América. Madrd: Siglo XXI, 2005, p. 217-220.

[ii] WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. 5ºed. Forense: rio de Janeiro. 2012, p. 108

[iii] WOLKMER, Antonio Carlos. Constitucionalismo e direitos sociais no Brasil. Acadêmica: 1989, p. 35.

[iv] AGUILAR RIVERA, José Antonio. En pos quimera. Reflexiones sobre el experimento constitucional atlántico. México: DF 2000, p. 15-40.

[v] Como afirma Schwarz, “de modo que o confronto entre esses princípios tão antagônicos resulta desigual: no campo dos argumentos prevaleciam com facilidade, ou melhor, adotávamos sofregamente os que a burguesia europeia tinha elaborado contra o arbítrio e escravidão; enquanto na prática, geralmente dos próprios debatedores, sustentado pelo latifúndio, o favor reafirmava sem descanso os sentimentos e as noções em que implica. O mesmo se passa no plano das instituições, por exemplo com burocracia e justiça que, embora regidas pelo clientelismo, proclamavam as formas e teorias do estado burguês moderno. Além dos naturais debates, este antagonismo produziu, portanto, uma coexistência estabilizada- que interessa estudar. Aí a novidade: adotadas as ideais e razões europeias, elas podiam servir e muitas vezes serviram de justificação, nominalmente “objetiva”, para o momento de arbítrio que é da natureza do favor. Sem prejuízo existir, o antagonismo se desfaz em fumaça e os incompatíveis saem de mãos dadas.” SCHWARZ, Roberto. Cultura e política. 3ºed. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 67.

[vi] CARBO POSADA, Eduardo; JAKSIC, Iván. Naufrágios y sobrevivências del liberalismo latino-americano. In: CARBO POSADA, Eduardo; JAKSIC, IvánLiberalismo y poder: latinoamerica in siglo XIX. Santiago: Fondo de cultura Económica, 2011, p. 34.

[vii] STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”. Trad. Bruno Alexander. Porto Alegre: L&PM, 2018, p. 22.

 

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