Levanta e anda: Emicida, a empatia, o direito penal e a falácia da meritocracia

26/06/2016

Por Fernanda Pacheco Amorim - 26/06/2015

Era um cômodo incômodo Sujo como o dragão de komodo Úmido, eu homem da casa Aos seis anos Mofo no canto, todo TV Engodo pronto pro lodo Tímido, porra! Somos reis, mano Olhos são elétrodos, sério E o topo, trombo corvos Num cemitério de sonhos Graças a leis, planos Troco de jogo vendo roubo Pus a cabeça a prêmio, ingênuo Colhi sorrisos e falei vamos É um novo tempo, momento Pro novo a sabor do vento Me movo pelo solo onde reinamos Pondo pontos finais na dor como Doril, anador somos a luz do senhor E pode crê, tamo construindo Suponho não, creio, meto a mão Meio a escuridão pronto acertamos Nosso sorriso sereno hoje é o veneno Pra quem trouxe tanto ódio pra Onde deitamos

Quem costuma vir de onde eu sou Às vezes não tem motivos pra seguir Então levanta e anda, vai, levanta e anda Vai, levanta e anda Mas eu sei que vai, que o sonho te traz Coisas que te faz prosseguir Vai, levanta e anda, vai, levanta e anda Vai, levanta e anda, vai, levanta e anda

Irmão, você não percebeu Que você é o único representante Do seu sonho na face da terra Se isso não fizer você correr, chapa Eu não sei o que vai

Eu sei cansa Quem morre ao fim do mês Nossa grana ou nossa esperança Delírio é equilibro Entre o nosso martírio e nossa fé Foi foda contar migalha nos escombros Lona preta esticadas, enxada no ombro E nada vim, nada enfim Recria sozinho Com a alma cheia de mágoa e as panela vazia Sonho imundo só água na geladeira E eu querendo salvar o mundo No fundo é tipo David Blaine A mãe assume, o pai some de costume No máximo é um sobrenome Sou o terror dos clone Esses boy conhece Marx Nós conhece a fome Então cerra os punho, sorria E jamais volte pra sua quebrada de mão e mente vazias

Quem costuma vir de onde eu sou Às vezes não tem motivos pra seguir Então levanta e anda, vai, levanta e anda Vai, levanta e anda Mas eu sei que vai, que o sonho te traz Coisas que te faz prosseguir Vai, levanta e anda, vai, levanta e anda Vai, levanta e anda, vai, levanta e anda

Somos maior, nos basta só sonhar, seguir

Levante e anda é uma música do rapper Emicida que tem como tema principal a realidade social de milhares de pessoas no mundo. A música demonstra que a vida nas periferias não é fácil, mas fala: levanta e anda! Emicida diz que apesar dos pesares é necessário seguir em frente.

Esta música me faz lembrar duas situações que marcaram minha vida, tanto de forma pessoal, quanto acadêmica: 1 - Participei do Projeto Rondon, que é coordenado pelo Ministério da Defesa, onde estudantes universitários vão até comunidades carentes (em regra, do interior do país) e preparam oficinas de capacitação e atividades para a comunidade de maneira geral. Passamos mais de duas semanas numa cidade no agreste de Pernambuco, onde a pobreza era uma realidade e lá vimos crianças buscando restos de frutas no chão, quando a feira, que ocorria uma vez por semana na praça, estava acontecendo, para poderem se alimentar.

2 – Enquanto participava de um projeto de extensão aqui no “sul maravilha” ouvi o seguinte relato de um senhor que morava numa comunidade carente e coordenava uma escolinha de futebol para crianças de famílias de baixa renda: quando ele estava saindo do ginásio viu que três garotos estavam comendo goiaba verde, pois não tinham o que comer em casa. Este senhor também não tinha! Comprou, com as poucas moedas que haviam no seu bolso, pães para os garotos poderem se alimentar.

Sabemos que a fome é uma realidade, sabemos que em alguns lugares há pessoas que morrem de fome, sabemos que não é só na África (como acreditam alguns) que isto acontece, mas ainda assim muitos defendem a meritocracia e também a penalização extrema.

Agora, pensemos caro leitor, como poderíamos explicar para crianças, como estas que citei acima, que se elas se esforçarem muito durante sua vida, um dia poderão até tornar-se milionárias? A meritocracia nos é vendida como algo genial, onde aqueles que se esforçam e atingem resultados conseguem alcançar altos patamares na vida. Mas, realmente podemos acreditar nisto? Um garoto que recolhe frutas podres do chão para comer tem as mesmas chances de outro que estuda, vai para a escola bem alimentado, tem roupas para se aquecer, tem uma estrutura familiar, não precisa trabalhar para ajudar a complementar renda, etc? Um garoto que come goiaba verde para que o estômago pare de doer tem as mesmas chances de se dedicar aos estudos e trabalho do que aquele que os pais levam para a escola de carro, que faz jiu-jitsu, inglês, robótica, espanhol, etc, como atividades complementares?

Ainda acreditamos na falácia da meritocracia, ainda acreditamos que os dois garotos poderão chegar nos mesmos lugares desde que se esforcem para isso. Deixamos de levar em consideração todas as variáveis, as peculiaridades, as dificuldades, as exclusões, a fome! E aqui alguns podem contar histórias de pessoas que hoje são médicas, juízas de direito ou exercem outra profissão bem remunerada, que estudaram em lixões, com restos de livros ou algo do tipo. Exceções que confirmam a regra. O esforço necessário para que estas pessoas conseguissem fugir da realidade que lhes estava dada é sobrehumano, e não é razoável acreditarmos que isto é natural.

E a partir da premissa da meritocracia, quando um garoto desses resolve se envolver com atividades criminosas, boa parte das vezes com o tráfico de drogas, dizemos que a solução é o direito penal, afinal, “lugar de bandido é na cadeia”!

Via de regra, nestas realidades de exclusão, as oportunidades que surgem para as pessoas não são absolutamente lícitas, mas são a chance de escapar de uma vida de privações, inclusive emocionais. Se para o Estado alguém não é visto como digno de proteção, como corriqueiramente acontece com aqueles que vivem em periferias, e há um terceiro (um “Estado paralelo”) onde o sujeito pode se inserir e ser respeitado, mesmo que em termos relativos, temos como julgar suas escolhas?

Numa de suas aulas – que tive o prazer de assistir – o professor Alexandre Morais da Rosa exemplificou esta situação com o traficante conhecido como Fernandinho Beiramar. Beiramar nasceu numa realidade de exclusão, mas, como se pode perceber, tem uma capacidade incrível de gerencimento de negócios. Caso Fernandinho Beiramar tivesse outras oportunidades na vida poderia facilmente ser um Diretor de uma grande Companhia, por exemplo. Mas Beiramar trabalhou com as possibilidades que lhes foram dadas.

Nós, sociedade, recorrentemente apontamos para algumas pessoas como se não fossem cidadãos, os excluímos do nosso convívio, não os consideramos como seres que merecem respeito, retiramos a sua dignidade (concedida, teoricamente, pela Constituição Federal) e quando estes sujeitos, cansados de não-ser, acabam cometendo crimes a sociedade, novamente, aponta para eles como se fossem monstros que merecem o cárcere.

O direito penal – que exclui, que não trata dignamente os apenados, que maltrata, etc - torna-se a solução para “ressocializar” aqueles que foram excluídos, maltratados, desrespeitados, etc, pela sociedade desde sempre. Entramos num ciclo vicioso!

Mas, e se ao invés de continuarmos falando para estas pessoas: Levanta e anda!, tentássemos entender o verdadeiro significado da palavra empatia e nos reconhecêssemos no outro, nos colocássemos no seu lugar, olhássemos de fato a sua realidade e não mais fingíssemos que são invisíveis?

Quem sabe, uma das alternativas para sair deste ciclo vicioso, seja dar a mão para aqueles que hoje excluímos e ajudá-los a levantar e andar por um pedaço do caminho! E aí talvez, apenas talvez, Emicida possa fazer uma música que demonstre uma realidade que não seja tão exclusora.


Veja o clipe oficial da música aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Hfe24uHY_wQ


Fernanda Pacheco Amorim . . Fernanda Pacheco Amorim é formada em Direito, feminista e professora em construção. .


Imagem Ilustrativa do Post: walkin' light // Foto de: Robbie CF // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/robbiecf/7486042904/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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