Legisladores e intérpretes: quebra de paradigma na interpretação jurídica brasileira? - Um diálogo com Bauman, Nietzsche e Umberto Eco a partir do exemplo da união estável

10/03/2016

Por Andreu Sacramento Luz e Ezilda Melo - 10/03/2016

“A tendência a empregar o teatro como uma instituição para a formação moral do povo, que no tempo de Schiller foi tomada a sério, já é contada entre as incríveis antiguidades de uma cultura superada. Enquanto a crítica chegava ao domínio no teatro e no concerto, o jornalista na escola, a imprensa na sociedade, a arte degenerava a ponto de se tornar um objeto de entretenimento da mais baixa espécie, e a crítica estética era utilizada como meio de aglutinação de uma sociabilidade vaidosa, dissipadora, egoísta e, ademais, miseravelmente despida de originalidade.”

(Friedrich Nietzsche: O nascimento da tragédia, op. cit., pp. 135-136)

A Era Moderna definiu-se como reino da razão e da racionalidade. A referida afirmação encontra seu fundamento no processo de luta travado entre a razão e as convicções advindas de um período influenciado pela moralidade cristã e arraigado numa cultura de pensamentos dogmatizados. O Iluminismo ou “Século das Luzes”, como fora conhecido, trouxe como objetivo a busca e a ascensão da razão, asseverando a superioridade da mesma frente às convicções religiosas, superstições, dentre outros paradigmas do período medieval. Para Bauman “essa foi a primeira e a mais básica das conceituações a fornecer para a modernidade sua autodefinição” (BAUMAN.2010.p.157).

Foi considerada também a mais favorável época para aqueles que elaboravam os conceitos, posicionando-se assim em um patamar superior, de onde nasciam as correntes positivistas e dogmáticas da “verdade”, e apontavam os caminhos a se percorrer em busca da mudança.

Interessante mostrou-se a repercussão acadêmica, política ou jurídica, enfim, institucionalizada da verdade. Nessas transversais do mundo, as flexibilizações das instituições fizeram-se repensar por inúmeras vezes as definições da verdade.

Em uma análise epistemológica do termo “verdade”, cujas origens remontam-se na construção da vernácula latina, encontrar-se-á na mitologia cristã a condenação do verídico. Destarte, os eventuais ciclos que foram elaborados no mundo, dentro de um contexto de verdades absolutas, ou, como prefere a ciência jurídica, verdade real dos fatos, mostra-se justificado na construção complexa da busca pela verdade.

Afinal, alerte-se a título de complementação, que a verdade está na busca dos seus interesses. Quando em As Dores do Mundo, Arthur Sochepenauer, elenca que a natureza primordial do homem encontra-se assentada nas relações egoístas que lhe permeia (em natural), consegue-se compreender com clareza e sem dificuldades que nos dias de hoje, bem como nos tempos mais remotos, a pura e real relativização da verdade.

Tem-se, portanto a criação das conceituações e a caracterização da modernidade. Cumpre salientar, que próximo ao final do século XIX a ascensão dos conceitos de Razão Absoluta, ainda apresentava-se com muita confusão dentro a elite intelectual. Em particular, havia uma busca da materialização da Razão Absoluta, que por sua vez instaurava-se com certa reserva e lentidão. A Razão era o veículo de dominação dos conceituadores e, agora frente a esta confusão tinha-se tal domínio como uma ferramenta distante.

Por sua vez, A Queda do Legislador, é provocada por um mecanismo que auto se destrói, o que é comum da modernidade. Frente ao processo alongado da afirmação absoluta, “a conceituação adquirira um matiz dramático” (BAUMAN. 2010 p. 159), causando o entusiasmo negativista dos intelectuais, instaurando-se uma crise e apresentando dificuldades aos intelectuais de prostrarem-se frente a uma conduta que anteriormente era tida como tradicional, o papel de conceituar.

Crise na conceituação, crise do intelectual que dita e afirma os conceitos e verdades. Dar-se assim vazão a chegada do intelectual como intérprete e não mais como legislador.

Dentro de uma concepção teológica, como a tida no período medieval, o dogmatismo da igreja buscava afirmar a verdade absoluta e inquestionável sobe determinado fato, como por exemplo, a unidade de Deus. Esse mesmo dogma declina no momento que se tem a possibilidade dos intelectuais pensarem e debaterem a respeito da possibilidade, neste caso em concreto, da existência de outros deuses e formar um panteão politeísta.

Frente a posicionamentos como estes, há afirmativas de que o Estado está perdendo o seu poder, logo é necessário afirmar e definir fundamentos imutáveis para que a situação não chegue a um patamar crítico e irreversível, de forma que Bauman, em “Legisladores e Intérpretes”, nos apresenta a seguinte afirmativa:

A questão é que o Estado não está necessariamente mais fraco por causa desta falência de autoridade; ele simplesmente achou modos melhores, mais eficientes de reproduzir e impor seu poder; a autoridade tornou-se redundante, e a categoria especializada em manter a reprodução da autoridade tornou-se supérflua (BAUMAN. 2010. p. 171)

Deste modo não condiz com as vias racionais de organização política, administrativa, legislativa e judiciária, afirmar que o Estado está passando por um procedimento de “falência de autoridade”, haja vista que o pleito corrente é a busca por alargado crescimento da hermenêutica jurídica, social e legislativa, não sendo, dessa forma e moldes, um corte a autoridade estatal.

O império da Lei, ou melhor, do Princípio da Legalidade, teve a sua queda com a ascensão do Estado Democrático de Direito. Nesse diapasão o material legislativo passou a ser relativizado, nos viabilizando, no auge da pós modernidade que beira a sociedade contemporânea, a declaração da falência legal (e não de autonomia), para a superação da interpretação do vasto campo material, que encontra-se positivado no ornamento jurídico pátrio.

Encerrando a dialética da expectativa de novas interpretações, seja na seara legislativa ou constitucional, Bauman (2010. P. 170) nos salienta da seguinte forma: “O mundo contemporâneo é impróprio para os intelectuais como legisladores”.

Desta afirmativa, consegue-se extrair o entendimento de que há uma abertura de caminhos para a ascensão de novas representações, que vem a ser a possibilidade de aplicação de novas técnicas.

Verifica-se que na construção do pensamento moderno, valorizava-se as pessoas que conceituavam, isto é, a elite dominadora preocupava-se exclusivamente em ditar o conceito do que era correto ou não. Com a falência da conceituação (por se ter uma implantação da Razão absoluta de forma retardada), abriu-se espaço para a crescente presença do intérprete, ou seja, o intelectual agora não é mais o que dita (legislador) e sim o que interpreta.

A hermenêutica toma um novo rumo e na Ciência do Direito abre-se uma nova possibilidade, o considerado “intelectual” que antes se dedicava exclusivamente em escrever ou advogar em sentido legis, é deposto do seu “cargo”, por ver crescer os métodos de interpretação utilizados na busca de uma atualização mais célere do que foi legislado. Nada mais que acompanhar, a passos paralelos, as exigências legais da sociedade que vive na era da subjetividade.

Por meio da interpretação que se dar sentido a criação. Eco em “Obra Aberta”, afirma o sentido que se deve denotar na apreciação da obra. A interpretação, pessoal, coletiva, está fundada nas influências da cultura, religião, família dentre outras instituições. Em outra obra intitulada de Limites da Interpretação, Eco nos salienta que os interesses continuam relacionados à abertura da interpretação embora o foco seja diferente:

Trinta anos atrás (...) eu me preocupava em definir uma espécie de oscilação ou de equilíbrio instável entre iniciativa do interprete e fidelidade à obra. No correr desses trinta anos, a balança pendeu excessivamente para o lado da iniciativa do intérprete. O problema agora não é fazê-la pender para o lado oposto e, sim, sublinhar uma vez mais a ineliminabilidade da oscilação. (ECO, 2004, p. XXII)

Logo, quando se fala em Hermenêutica Jurídica, deve-se perceber que o seu principal objetivo é entender o direito. Nessa perspectiva, tem-se como foco objetivo da Hermenêutica Jurídica o entendimento do Direito e como foco subjetivo o sujeito que interpreta o Direito. Por exemplo, ao se estudar as fontes[1] formais indiretas (ou mediatas) do direito, sejam elas a doutrina e a jurisprudência, entende-se como métodos distintos de interpretações de uma elite intelectual do Direito, neste caso estarão presentes o foco objetivo (estará interpretando o Direito) e subjetivo (quem o interpreta são estudiosos do Direito) da Hermenêutica Jurídica.

Destarte, uma parcela de intérpretes do Direito tem com objeto de interpretação recortes da realidade. Apresenta-se aqui a figura do magistrado, que como representante do Estado Juiz deve dar provimento jurisdicional por meio da sentença[2], no processo de conhecimento, para que haja resolvido uma lide (conflito de interesse).

A Sentença redigida pelo magistrado deve seguir os requisitos essenciais definidos pelo artigo 458 do Código de Processo Civil, quais sejam: O relatório; os fundamentos de fato e de direito (motivação); o dispositivo (conclusão). Dentro da exposição de fato e de direito, que o juiz irá interpretar o Direito e apresentar para as parte o seu entendimento frente ao litígio. O Estado-Juiz irá interpretar o direito objetivo, e aplicar as consequências que da analise ensejar frente ao direito material arguido no processo, que fora instaurado por meio do direito subjetivo público de ação.

Destarte, amparado por todas as contribuições elencadas nos parágrafos anteriores, bem como se acostando à metodologia do amor e nos pensamentos desenvolvidos por Nietzsche, é-se possível fazer-se uma análise da situação ocorrida no Judiciário brasileiro no ano de 2011, causando uma revolução no direito constitucional e civil pátrio, em que fez destacar-se a importância da Hermenêutica Jurídica e os métodos interpretativos do direito brasileiro para abonar prerrogativas constitucionais garantidas aos cidadãos.

Utilizando-se de uma prerrogativa a ele concedida, o Procurador Geral da República encaminhou para o Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade[3] (ADI) nº4277 em conjunto com a ADPF nº132, buscando que fosse feito um julgamento, observando o recorte da realidade social atual, do artigo 1.723 do Código Civil e artigo 226 § 3º da Constituição Federal que tratam da composição da união estável.

Com a promulgação do Código de 2002 sedimentou-se o avanço por todos esperado, tanto da doutrina quanto da jurisprudência, que foi consideração codificada da União Estável. Esperando que o cenário jurídico brasileiro fosse ficar neutro e pacificado, começaram a surgir questionamentos da sociedade quanto à nomenclatura utilizada pelo Código Civil, que segue um entendimento constitucional (artigo 226), ao afirmar que é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento.

Frente ao exposto questiona-se: Como se aplica a lei aos casos de união entre pessoas do mesmo sexo, uma vez que tanto a Constituição, quanto o Código Civil vem definindo que apenas homes e mulheres constituem-se sujeitos para a formação de família?

A esta resposta Cunha Jr. afirma que:

“A constituição não recusou reconhecimento à união estável formada entre pessoas do mesmo sexo, a chamada relação homoafetiva, que, a nosso sentir, tem amparo constitucional manifesto, em face, basicamente, do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da liberdade de opção sexual (art. 3º, IV).”

Por sua vez, os positivistas e legalistas, apresentam o entendimento de que:

A interpretação científica é pura determinação cognoscitiva do sentido das normas jurídicas. Diferentemente da interpretação feita pelos órgãos jurídicos, ela não é criação jurídica. A ideia de que é possível, através de uma interpretação simplesmente cognoscitiva, obter Direito novo, é o fundamento da chamada jurisprudência dos conceitos, que é repudiada pela Teoria Pura do Direito. A interpretação simplesmente cognoscitiva da ciência jurídica também é, portanto, incapaz de colmatar as pretensas lacunas do Direito, O preenchimento da chamada lacuna do Direito é uma função criadora de Direito que somente pode ser realizada por um órgão aplicador do mesmo e esta função não é realizada pela via da interpretação do Direito vigente. (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.250).

Como foi exposto em tela, a visão positivista de Kelsen não permite que haja uma legitimidade de interpretação do direito pelos órgãos do Judiciário. Ao seguir este conceito, devem-se fixar os olhares ao pensamento legislativo engessado no código, não possibilitando nenhuma interpretação que vise criar um “direito novo”, ou sanar uma lesão ao direito do outro (também cidadão).

Frente ao avanço da Hermenêutica Jurídica este pensamento perde total eficácia, pois a ideia da interpretação preenche a lacuna deixada pelo Legislativo, ficando mais fácil que o Judiciário adeque o Direito à realidade social, como foi empregada no julgamento do STF cuja pauta foi à união estável entre pessoas do mesmo sexo.

Além de adequar o Direito à realidade social, o STF ao julgar pelas vias interpretativas o assunto em tela, assegura a toda sociedade os direitos e garantias reservados pela Constituição, quais sejam a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a liberdade, e a igualdade. Princípios constitucionais que eram violados, quando o Estado-Juiz tinha que aplicar o direito tipificado no código.

Tomando como referência os ensinamentos de Bauman, perceptível se torna a conclusão que aponta para o efeito não positivo do engessamento do Direito. Em busca da pacificação dos conflitos sociais e garantia de todos os direitos dos cidadãos brasileiros, o Direito volve os seus olhares para o recorte social e busca interpreta-los para melhor se aplicar.

Verificando que não havia harmonia entre a realidade social na constituição da união estável, o Supremo Tribunal Federal interpreta a norma tipificada, causando uma revolução no Direito pátrio, e afirma que como entidade familiar entende-se também os casais homoafetivos.

Legisladores não acatam a legitimidade dos intérpretes do Direito. Afirmam que o discurso deve ficar estático, surtindo efeitos específicos, até que haja um processo legislativo, por meio de votos que até a década passada não eram revelados para a sociedade, e que busque revogar o contesto anterior e trajar, com nova roupagem, o direito atual. Traje formal e indiscutível, refletindo uma posição privilegiada e elitista. Felizmente a Hermenêutica Jurídica prega a interpretação correta e coerente do Direito, tendo-se a queda do legislador que impõe e a ascensão do jurista interpreta. Parafraseando o título do livro de Umberto Eco, a “Obra é Aberta”; neste sentindo entende-se como obra a legislação e como correta a interpretação dada pelo STF em analisar que família é um conceito muito mais amplo do que a entidade formada por pai, mãe e filho.


Notas e Referências:

[1]Cumpre salientar que para Kelsen, a norma fundamental (a constituição) é a fonte primordial do direito, segundo a qual emana todo o ordenamento jurídico e o mesmo deve respeito.

[2] “É emitida como prestação do Estado, em virtude da obrigação assumida na relação jurídico-processual (processo), quando a parte ou as partes vierem a juízo, isto é, exercem a pretensão à tutela jurídica”. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974, v.V, p395.

[3]Lecionando sobre Ação Direta de Inconstitucionalidade, Dirley da Cunha Jr. nos ensina que “cuida-se de uma de uma ação de controle concentrado-principal de constitucionalidade concebida para a defesa genérica de todas as normas constitucionais, sempre que violadas por alguma lei ou ato normativo do poder público. Por isso mesmo é também conhecida como ação genérica.” (JÚNIOR, Dirley da Cunha. 2012. p. 358).

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. Ezilda Melo é Professora Universitária, Mestra em Direito Público pela UFBA. Especialista em Direito Público pelo Curso JusPodivm. Graduada em Direito pela UEPB e em História pela UFCG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7223307007394926 www.ezildamelo.blogspot.com


Andreu Sacramento Luz. Andreu Sacramento Luz  é Bacharelando em Direito pela Faculdade Ruy Barbosa. Pesquisador. Membro do Grupo de Pesquisa: Fractais Transdisciplinares do Direito. Monitor das disciplinas de Direito Civil Parte Geral e Direito Civil Obrigações da Faculdade Ruy Barbosa. E-mail: andreuluz.adv@gmail.com. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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