(...) há necessidade de teoria, há necessidade de novos conceitos, de linguagens a fim de intervir criticamente nos contextos sociais e políticos nos quais nos encontramos. É absolutamente fundamental rever as linguagens (...). .
“Transfeminismo no regime fármaco-pornográfico”, Paul Preciado
Para uma Constituição democrática comprometida com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem qualquer forma de preconceito e discriminação, uma “jurisdição constitucional antigênero” é uma contradição em termos.
O Recurso Extraordinário nº 845.779/SC foi “julgado” pelo Supremo Tribunal Federal na última quinta-feira (6 de junho), por uma decisão que reverteu o reconhecimento da repercussão geral reconhecida em 2014 para inadmiti-lo e, assim, proferir “julgamento sem resolução de mérito” do recurso. O caso versa sobre o uso do banheiro conforme a identidade de gênero, possibilitando que mulheres trans usem banheiros femininos e homens trans usem banheiros masculinos. O Recurso Extraordinário deriva da repercussão geral do episódio de transfobia ocorrido contra Ama Fialho, mulher trans que ajuizou uma ação de indenização por danos morais em face do Beiramar Shopping Center porque foi impedida de usar o banheiro feminino do local – destinado ao gênero o qual se identifica.
O caso
Em agosto de 2008, ao entrar no banheiro feminino, como costuma fazer em locais públicos, Ama Fialho foi abordada por uma funcionária do estabelecimento comercial que a expulsou, justificando que sua presença causaria constrangimento às mulheres ali presentes. Em seguida, Ama tentou utilizar um banheiro dentro de uma loja do shopping, mas foi informada de que não havia banheiros privativos nas lojas. Nervosa e impedida de usar o banheiro, ela não conseguiu controlar suas necessidades fisiológicas e acabou defecando nas próprias roupas, diante das pessoas que circulavam pelo shopping. Após essa experiência constrangedora, ainda teve que utilizar o transporte coletivo para retornar a sua casa.
A decisão de primeira instância foi favorável à autora, condenando a empresa ao pagamento de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) por danos morais. Contudo, a Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJSC) acolheu a apelação interposta pela ré, afastando a aplicação do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor[1] e, consequentemente, a responsabilidade objetiva do estabelecimento comercial. O Tribunal argumentou que não houve defeito na prestação do serviço, já que não se constatou falha no dever de segurança.
O TJSC também destacou que, apesar de ser incontroverso de que a recorrente foi retirada do banheiro feminino apenas por ser transexual, tratada no masculino o tempo inteiro (consoante termos do acórdão), ela supostamente não teria comprovado os requisitos necessários para a responsabilidade civil, e que a prova testemunhal não confirmou a alegada abordagem discriminatória ou agressiva. Além disso, considerou que a conduta da funcionária, ao solicitar que a recorrente utilizasse o banheiro masculino, não foi imprópria. Por fim, concluiu que a indenização era indevida, uma vez que o dano indenizável é aquele que causa uma lesão significativa ao direito da personalidade, afetando profundamente o psiquismo do ofendido, e não um “mero incômodo ou aborrecimento”.
O Recurso Extraordinário 845.779/SC
Diante do episódio descrito, foi interposto recurso extraordinário que pleiteou a reforma do acórdão do TJSC, fundamentando-se no art. 102, III, a, da Constituição Federal, alegando a violação dos arts. 1º, III; 5º, V, X, XXXII, LIV e LV; e 93 da Constituição. O RE 845.779/SC foi então distribuído para relatoria do Min. Luís Roberto Barroso e, por maioria (vencidos os Ministros Marco Aurélio e Teori Zavascki), em novembro de 2014, foi reconhecida a repercussão geral da questão constitucional, que argumentou haver afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana e à honra da recorrente pelo episódio mencionado anteriormente. A tese de repercussão geral descrita no Tema 778 tratou da “Possibilidade de uma pessoa, considerados os direitos da personalidade e a dignidade da pessoa humana, ser tratada socialmente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente”.
O julgamento iniciou-se em 2015, havendo parecer favorável da Procuradoria-Geral da República, e, embora já houvesse dois votos a favor da tese defendida na repercussão geral (proferidos pelos Ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin), foi suspenso por pedido de vistas realizado pelo Min. Luiz Fux, que só devolveu os autos para julgamento novamente em junho de 2023, após alteração regimental que estabeleceu limite de tempo para pedido de vistas. Nove anos depois de iniciada a ação, apenas em maio de 2024, é que o processo é novamente inserido em pauta para julgamento.
O julgamento de 6 de junho de 2024
Mesmo depois de nove anos debruçado sobre o RE 845.779, o Min. Luiz Fux abriu divergência sobre a repercussão geral – reavaliando-a, pois ela tinha sido reconhecida já nos idos de 2014, inclusive com seu voto favorável – e rejeitou a admissibilidade do Recurso Extraordinário por razões processuais, baseando-se no art. 323-B do Regimento Interno do STF, que prevê: “O relator poderá propor, por meio eletrônico, a revisão do reconhecimento da repercussão geral quando o mérito do tema ainda não tiver sido julgado”. A divergência foi seguida pelos demais Ministros Cristiano Zanin, Flávio Dino, André Mendonça, Kassio Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Apenas a Min. Carmen Lúcia acompanhou o Ministro relator e o Min. Edson Fachin na manutenção da repercussão geral e favorável à tese apresentada na repercussão geral. Em outras palavras, por maioria, o STF decidiu que não iria mais decidir sobre o caso.
A decisão foi a de que: “O Tribunal, por maioria, negou seguimento ao Recurso Extraordinário, cancelando o reconhecimento da repercussão geral da matéria atinente ao Tema 778, nos termos do voto do Ministro Luiz Fux, Redator para o acórdão, vencidos os Ministros Luís Roberto Barroso (Presidente e Relator), Edson Fachin e Cármen Lúcia. Plenário, 6.6.2024”.
Encaramos com perplexidade os dois principais argumentos levantados no presente caso: 1) a divergência aberta pelo Min. Luiz Fux de que não há repercussão geral nesse caso; 2) a posição de Ministros que compuseram a maioria, como Flávio Dino e Alexandre de Moraes, de que não se trata de matéria constitucional, mas sim, infraconstitucional; 3) a afirmação de que o pedido de vista teria sido feito para estudar essas questões processuais.
No primeiro caso, causa certa perplexidade o Min. Luiz Fux ter se debruçado por oito anos sobre o referido RE, para liberá-lo para julgamento e julgá-lo meses depois, apenas para trazer o entendimento de que não haveria repercussão geral. Outrossim, mostrou-se faticamente equivocado quando veio a afirmar que “[n]ão cabe ao STF analisar uma questão fática. Qual foi o fundamento do acórdão? O TJ-SC assentou não haver qualquer prova de que a abordagem havida se deu de modo rude ou impulsionada por preconceito ou transfobia. Onde está a questão constitucional neste caso?”, bem como que embargos de declaração “questionam, não prequestionam” (sic). Com isso, o Ministro indicou que a discussão jurídica girava exclusivamente sobre a presença ou não de danos morais no caso, o que decididamente não foi o caso.
Grande perplexidade reside no flagrante desrespeito à Súmula 356 do STF, que afirma que não há prequestionamento quando o ponto omisso no acórdão de segundo grau não é objeto de embargos declaratórios. O STF firmou esse entendimento para reconhecer a questão constitucional objeto de embargos declaratórios prequestionada, por nada mais ser possível exigir da parte (como destacou o Min. Barroso no julgamento do dia 06 de junho de 2024). Parecíamos estar em julgamento do STJ, Tribunal que o Min. Fux integrou por anos, com aplicação de sua (inconstitucional, por arbitrária) Súmula 211, que afirma o oposto, mas estávamos no STF, razão pela qual a Súmula 356 da Suprema Corte não podia ser desconsiderada.
Outra perplexidade em nosso sentir reside na desconsideração da notória possibilidade de o STF poder realizar revaloração jurídica do quadro fático definido pelo acórdão de segundo grau, algo pacífico na jurisprudência da Corte e dos Tribunais Superiores em geral e do STF em especial, pela qual: “A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias inferiores não se confunde com o revolvimento do conjunto fático-probatório. Precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/6/2011; RE 99.590, Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de 6/4/1984; RE 122.011, relator o Min. Moreira Alves, DJ de 17/8/1990”.[2] Isso porque, como visto, o TJSC atestou que a recorrente foi retirada do banheiro feminino apenas por ser transexual e foi tratada como “homem” o tempo inteiro. Não implica “revolvimento fático-probatório” vedado aos Tribunais Superiores (Súmula 279 do STF) proceder a uma requalificação jurídica desse fato atestado pelo acórdão, para definir outra consequência jurídica, no sentido de que “para as mesmas premissas de fatos [seja afirmada] outra consequência jurídica”.[3] No caso, a de que retirar mulher transexual do banheiro feminino, por trata-la como “homem”, em flagrante desrespeito a sua identidade de gênero autopercebida, que o próprio STF reconheceu dever ser respeitada enquanto direito fundamental das pessoas trans (ADI 4275 e RE 670.422/RS) configura dano moral indenizável.
Perplexidade adicional reside nas afirmações dos Mins. Flávio Dino e Alexandre de Morais, quando se somaram ao voto do Min. Fux e afirmaram que a ação da recorrente invoca só artigos de lei, e não da Constituição (o art. 5º, X, que trata do dano moral), para dizerem que se até a apelação isso não foi feito, não poderia ser nos embargos. Aqui tivemos novamente um formalismo exacerbado incoerente com a jurisprudência dos Tribunais Superiores,[4] como demonstrado pelo Min. Barroso, ao pontuar, no fim do julgamento, que, na teoria constitucional, basta o fato ser constitucional e ser trabalhado no acórdão de segunda instância, independente de citação de dispositivo (“artigo”) da Constituição, bem como que os embargos de declaração que invocaram a matéria constitucional não trabalhada pelo acórdão tornaram a matéria prequestionada.[5]
Sobre este último ponto há que se destacar que a matéria se encontra prequestionada a partir do momento em que ela é posta, discutida e decidida, como atesta jurisprudência pacífica do STJ, inclusive ratificada por decisões monocráticas do Min. Fux no STF,[6] que agora decidiu de forma incoerente com elas. Se o TJSC aportou discussão constitucional para fundamentar seu acórdão, então houve discussão e decisão sobre a “questão constitucional”[7]. Isso é ainda mais evidente pelo fato de que a recorrente, se valendo do art. 1.025 do CPC – que positivou na lei o que já é previsto há anos na Súmula 356 do STF –, opôs Embargos de Declaração, justamente para que o Tribunal debatesse e decidisse a questão constitucional controversa que subjaz ao caso – “prequestionamento ficto”. Assim, não se sustenta a posição do Min. Fux de que, com os Embargos, a parte “questiona, mas não prequestiona”, que é incompatível com a Súmula 356 do STF e o art. 1.025 do CPC. Ora, o que mais poderia a parte fazer depois de opor EDs? Ela esgotou todas as possibilidades e, segundo jurisprudência do STF (inclusive anterior ao CPC/2015 prever o prequestionamento ficto[8]), feitos os EDs, mesmo que o tribunal “a quo” não haja se manifestado, está prequestionada a matéria.
Os votos dos Mins. Flávio Dino e Alexandre de Moraes (que acrescentaram uma camada de discussão ao argumento do Min. Luiz Fux) indicam uma posição pela restrição do poder do tribunal, ainda que evidentemente estejamos falando de um direito fundamental à identidade de gênero. Contudo, essa postura é contraditória com as próprias manifestações que têm proferido o primeiro no curto espaço de tempo em que compõe a Corte. Para citar como exemplo, em recente voto na Petição 11573, chegou a defender (acertadamente) que o STF precisa rever sua jurisprudência sobre imunidade parlamentar, devendo adequá-la ao atual momento histórico, ampliando o poder de jurisdição do STF e restringindo o âmbito de proteção da imunidade parlamentar, a fim de conter o avanço do discurso de ódio.
Vale uma nota quanto às inovações trazidas pelos Min. Fux, Dino e Moraes, pois que, fundados no art. 323-B do RI-STF citado, violam o princípio do contraditório como não-surpresa (art. 5º, LV – CR/88 c/c art. 10 – CPC), pois que, uma vez superadas a admissibilidade e o reconhecimento de repercussão geral lá em 2014, tomam de surpresa a recorrente para negar um e outro elementos, sem que esta tivesse tido a oportunidade de se defender. Isso para não dizer que é de duvidosa constitucionalidade a previsão do RI-STF ao trazer regra processual nova, sem paralelo com o CPC: a decisão sobre não haver repercussão geral é irrecorrível para a parte (art. 1.035 – CPC) mas, uma vez reconhecida, é revogável pelo Tribunal por simples disposição regimental[9].
Ainda, se pensarmos que a construção interpretativa da Corte, à revelia de quem a compõe, há precedentes consolidados que tomam questões de direitos LGBTI+ como um todo (como e.g., ADPF 132/ADI. 4.277), e de pessoas trans em particular (ADI 4.275/ RE. 670.422), como questões constitucionalmente sensíveis, o que demanda o reconhecimento da repercussão das questões constitucionais ali deduzidas.
Por fim, não se pode concordar com a afirmação do Min. Fux, de que fez o pedido de vista por diálogos com o Min. Teori Zavascki acerca do quadro fático do acórdão e do prequestionamento. Como lembrou matéria do Globo sobre o tema, Fux afirmou o seguinte para tanto: “Me sinto no dever de ofício de pedir vista porque entendo que essa solução vai ter uma repercussão muito importante”,[10] no contexto de debates na sessão de 19 de novembro de 2015, sobre preocupações com as mulheres cisgênero, com a mera presença de mulheres trans em banheiros femininos. Não à toa, em entrevista ao Roda Viva de 10 de junho de 2024, o Min. Barroso disse que, possivelmente, “A maioria achou que não era a hora de fazer esse debate”, embora pontuando que “ou” tenha realmente acredito na questão processual que suscitou. Seja como for, a devida contextualização é necessária para o julgamento histórico.
Como interpretar a decisão do STF no RE 845.779
Após mais de uma década de primavera do reconhecimento das pessoas LGBTI+ no Supremo Tribunal Federal, desde 2011, com a decisão das ADI 4277 e ADPF 132 que reconheceu a união estável igualitária, passando pelo reconhecimento dos direitos de identidade de gênero das pessoas trans, o reconhecimento da homotransfobia como crime de racismo e do direito à doação de sangue igualitária, a recusa da Corte em decidir sobre o uso dos banheiros por pessoas trans conforme sua identidade de gênero parece demonstrar certo temor da Corte em enfrentar temas associados à agenda de direitos desse segmento vulnerável da população. Entendemos que a postura regressiva do STF pode ser interpretada sob dois pontos de vista: 1) o de um STF recuado no reconhecimento dos direitos sexuais e de gênero, em virtude de um Congresso Nacional nunca antes tão hostil a esses; e 2) o do uso da jurisdição constitucional como política antigênero[11].
Como expuseram Thiago Coacci, em seu texto “Pessoas trans e banheiros: o que dizem os dados?”[12], e a coautora deste texto em “‘Direito dos Banheiros’ e o direito à identidade de gênero”[13], o direito ao uso dos banheiros conforme a identidade de gênero por parte das pessoas trans mobiliza o pânico moral estimulado por espantalhos promovidos por segmentos ideológicos e sociais ligados à denominada extrema-direita. Fundamento este também usado pela ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexo, representada pelo advogado Paulo Iotti, em petição ao STF na qual explicou a farta jurisprudência nacional que reconhece dano moral a mulheres trans quando não se permite usarem o banheiro feminino e a posição de diversas instituições públicas e privadas em respeito à identidade de gênero das pessoas trans, enquanto “amadurecimento jurisprudencial e institucional” desde o pedido de vista de 19 de novembro de 2015 (peça eletrônica 106), quando defendeu a:
concretização ao caso concreto desses amadurecimentos, à luz do dever de estabilidade, coerência e integridade da jurisprudência e do Direito como um todo à luz do princípio da segurança jurídica. Ali, se refutarão críticas normalmente feitas ao reconhecimento do direito das mulheres trans usarem o banheiro feminino, onde se demonstrará que não passam, data maxima venia, de argumentos de espantalho, pautados em estereótipos pejorativos contra mulheres trans, que não podem ser usados como critério diferenciador juridicamente válido,[14] que as desumanizam tratando-as como se fossem “homens cishétero vestidos de mulher com intuito de assediar meninas e mulheres cisgênero” (sic), em lógica de puro “dano hipotético”, ou seja, imaginário, por inverossímil, já que pautado em algo que não tem base empírica que lhe sustente e que, por isso, não é critério jurídico em geral e, muito menos, para “justificar” a discriminação das mulheres trans tanto em geral quanto no uso do banheiro feminino. Demonstrar-se-á que as pessoas que fazem tais críticas não se preocupam com a proteção das mulheres trans, pois negam sua própria existência enquanto “mulheres trans”, já que negam, de forma totalitária e arrogante, o próprio conceito de identidade de gênero e a possibilidade abstrata de que alguém que nasceu com um pênis possa se identificar como mulher e que alguém que nasceu com uma vagina possa se identificar como homem. E isso inclusive a partir de Nota Técnica da ANTRA, ratificada por mais 125 entidades de direitos humanos, e da doutrina da filósofa feminista cisgênero Judith Butler, a partir de sua experiência de debates acerca do tema mundo afora, que mostra como a aqui denunciada demonização do gênero a partir do que ela denomina de fantasma do gênero, a partir de argumentos de espantalho deturpadores do conceito de gênero em geral e de identidade de gênero em especial é algo real e baseia as posições antitrans no mundo inteiro, com o intuito de atemorizar a sociedade e engajá-la na destruição de leis e políticas públicas que visam a proteção de minorias sociais (grupos socialmente vulnerabilizados),[15] o que ajuda a comprovar a inconstitucionalidade das posições anti-direitos trans. (grifos e notas do original)
A relação de tensão entre o STF e uma formação majoritariamente ultraconservadora do Congresso Nacional arrasta a Corte a “rifar” os direitos de grupos vulnerabilizados, a fim de evitar uma intensificação da crise institucional com o Poder Legislativo, como ocorreu recentemente no avançar do caso da descriminalização do aborto (ADPF 442) e na descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal (RE 635.659).
O efeito direto dessas tensões parece ser o de restringir o poder contramajoritário que se espera de uma Suprema Corte[16] e difundir entre os próprios ministros uma jurisdição constitucional antigênero, utilizando-se de controversos óbices procedimentais para manter-se distante do debate constitucional neste momento. Um sintoma disso é o fato desrespeitoso e mesmo ilegal de tratar a vítima sem o devido respeito à sua identidade de gênero, tendo sido tratada no masculino diversas vezes ao longo dos votos. Um erro sem justificativa de uma Corte que tanto tem garantido os direitos constitucionais desse segmento vulnerabilizado da população!
Considerações finais
Para acalmar os ânimos dos defensores e defensoras LGBTI+, é preciso explicar que o STF não negou o direito de pessoas trans usarem os banheiros em conformidade com o gênero que se identificam, não obstante a decisão ter “um peso simbólico nefasto, ainda mais no Mês do Orgulho LGBTI+”.[17] O tema continuará a ser discutido no STF ao longo das ADPF’s 1.169 (Min. Carmen Lúcia), 1.170 e 1.171 (Min. Dino), 1.172 (Min. Mendonça) e 1.173 (Min. Gilmar Mendes). Auspiciosamente, a Min. Carmen Lúcia já deu indicativos de posicionamento favorável à mesma tese que foi apresentada em repercussão geral. De toda sorte, ainda que sobrevenham julgamentos favoráveis à Constituição naquelas ações, o fato é que houve um dano, até aqui irreparável, contra Ama Fialho, que, após 16 anos de espera, viu a “Corte Constitucional” dizer, por vias transversas de instrumentalidade defensiva, que a transfobia sofrida não tem repercussão face à Constituição, não obstante já tenha sido noticiado que ela pretende apresentar embargos de declaração, com excepcional efeito infringente admitido pela jurisprudência e pela lei (arts. 1.023, §2º, e 1.024, §4º, do CPC), para requerer a reversão do julgamento, pelas omissões sobre a Súmula 356 do STF, o art. 1.025 do CPC tornarem a matéria prequestionada e o quadro fático do acórdão de Santa Catarina atestar que foi retirada do banheiro feminino apenas por ser uma mulher transexual tratada como se “homem” fosse, o que entendemos que justifica a revaloração jurídica desse quadro fático para adequada definição jurídico-constitucional em contrário.[18]
Ademais, como movimento jurídico-político, é preciso continuar pressionando a Corte em prol de uma jurisdição constitucional inclusiva, que leve em consideração o legado do conhecimento científico produzido pelo feminismo transgênero,[19] na luta pelo sentido de e do Direito que, “como afirma Honneth, trata-se de uma teoria que, sabendo-se situada num contexto histórico-social e estando assumidamente ciente das suas implicações ético-políticas, visa reconstruir a normatividade, como um critério ou padrão de crítica social, todavia, imanente à realidade social”,[20] em prol de uma “luta pelo (sentido de e do) Direito, para que este seja compreendido de forma não-discriminatória às minorias sexuais e de gênero”.[21] É preciso fazer desta decisão um momento pontual de recuo do STF em vez de um giro reacionário antigênero.
Notas e referências
[1] Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
[2] STF, HC 107.801, Pleno, Rel. p/Acórdão Min. Luiz Fux, DJe 13.10.2011. No mesmo sentido: STF, RE 820.433 AgR, Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 30.05.2016: “1. A revaloração da prova e o reenquadramento jurídico dos fatos não se confundem com o revolvimento de suporte fático-probatório, sendo plenamente franqueados aos tribunais superiores. Precedentes do Supremo Tribunal Federal.”; HC 192.115 ED, Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 17.02.2021: “2. A mera revaloração jurídica dos fatos, a partir do acervo colhido nas instâncias ordinárias, distingue-se do revolvimento do conjunto fático e probatório dos autos. Inexistência de ilegalidade ou abuso de poder imputada ao Superior Tribunal de Justiça, ao assim proceder em sede de recurso especial”; HC 212.315, 2ª T., Rel. Min. André Mendonça, DJe 06.09.2023: “4. A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias ordinárias, o que é viável em sede de habeas corpus, não se confunde com o revolvimento do conjunto fático-probatório. Precedentes.”
[3] STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 2.013.888/PR, 2ª T., Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 20.04.2023. Inteiro teor.
[4] Essa forma de “jurisprudência defensiva” é incompatível não só com o propósito do Recurso Extraordinário – isto é, que o STF exerça a função de (último) guardião da Constituição, quando esta é violada, como no caso –, como também com a forma como, a partir da Constituição, foi pensado o CPC/2015, que buscou combater artifícios que alegam formalidades para que o Tribunal se exima de julgar, como a possibilidade de aproveitamento de RE como REsp. (e vice-versa) ou que um RE./REsp não sejam conhecidos porque a parte não juntou cópia, legível, de publicação do DO, por exemplo. Estratégias defensivas como a que vimos ali impedem a fruição plena de direitos fundamentais e esvaziam o papel garantista que o processo deve desempenhar na atualidade. Sobre isso, BAHIA, Alexandre. Recursos Extraordinários no STF e no STJ. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2016, p. 175 e segs.; THEODORO Jr., Humberto et al. Novo CPC – fundamentos e sistematização. 3ª ed. RJ: Forense, 2016; BAHIA, Alexandre; SILVA, Diogo Bacha e. Agravo em Recurso Extraordinário e Agravo em Recurso Especial: entre imposição de precedentes, distinção e superação. In: DIDIER JR., Fredie et al. (orgs.). Coleção Novo CPC: Doutrina Selecionada. V. 6: Processo nos Tribunais e Meios de Impugnação às Decisões Judiciais. 2ªed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 985-1007.
[5] Nesse sentido, se referindo especificamente ao caso: IOTTI, Paulo. STF erra gravemente ao não julgar o direito de mulheres trans usarem o banheiro feminino. Carta Capital, 07.06.24. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/opiniao/stf-erra-gravemente-ao-evitar-julgar-o-direito-de-pessoas-trans-a-usarem-o-banheiro-conforme-seu-genero/>. Ver também: BAHIA, Alexandre. Recursos Extraordinários no STF e no STJ. cit., p. 171 e segs; MEDINA, José Miguel Garcia. Prequestionamento e repercussão geral: e outras questões relativas aos recursos especial e extraordinário. 6. ed. SP: RT, 2012; KOEHLER, Frederico. O prequestionamento ficto como meio para efetivação dos princípios da instrumentalidade, economicidade e celeridade do processo. Revista ESMAFE: Escola de Magistratura Federal da 5ª. Região, Recife, n. 10, p. 165-177, 2006.
[6] “Vale como exemplo decisão do próprio Ministro Fux, que reconsiderou decisão que negou prequestionamento após o recurso, por ele transcrito e ratificado, dizer que “considera-se prequestionada toda matéria infraconstitucional e constitucional, observando-se que é pacífico no Superior Tribunal de Justiça que, tratando-se de prequestionamento, é desnecessária a citação numérica dos dispositivos legais, bastando que a questão posta tenha sido decidida’”. Foi decisão monocrática no ARE 856.946 AgR, publicada em 16 de junho de 2016, que ele reiterou, enquanto Presidente do STF, também ratificando a jurisprudência pacífica do STJ no sentido de que “tratando-se de prequestionamento, é desnecessária a citação numérica dos dispositivos legais, bastando que a questão posta tenha sido abordada no bojo do processo” (ARE 1.339.810, decisão publicada em 23.08.2021). O STJ decide assim desde sempre, como se vê na decisão em que disse que “é pacífico nesta e. Corte que, tratando-se de prequestionamento, é desnecessária a citação numérica dos dispositivos legais, bastando que a questão posta tenha sido decidida” (STJ, EDcl no RMS 18.205/SP, 5ª T., Rel. Min. Felix Fischer, DJ 08.05.2006)”. IOTTI, Paulo. STF erra gravemente ao não julgar o direito de mulheres trans usarem o banheiro feminino. Carta Capital, 07.06.24. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/stf-erra-gravemente-ao-evitar-julgar-o-direito-de-pessoas-trans-a-usarem-o-banheiro-conforme-seu-genero/.
[7] Há farta doutrina e jurisprudência sobre o chamado “prequestionamento tácito”, isto é, “quando houve debate das partes anterior à decisão recorrida ou essa decisão tenha tratado da matéria objeto da norma mas sem que o preceito normativo tenha sido explicitamente referido pelo acórdão impugnado” (BAHIA, Alexandre. Recursos Extraordinários no STF e no STJ. cit., p. 161). Ver também: RT 491/214; RT 512/278; RT 659/192.
[8] STF, RE. 210.638 (DJ. 19.06.1998). Em sentido semelhante RTJ 176/964 e AgR.RE. n. 181.134 (DJ 26.05.2006).
[9] Por outro lado, como lembra Iotti: “No entanto, em uma lógica que concede privilégios a juízes em relação a advogados, a maioria do STF afirmou que o Plenário poderia reconsiderar esse tipo de decisão. Na prática, aplicou-se a famosa máxima ‘não há preclusão pro judicato’, o que significa que, enquanto advogados não podem voltar atrás em suas ações devido à boa-fé objetiva que proíbe comportamentos contraditórios, o Judiciário permite-se agir de maneira contraditória, voltando atrás mesmo após proferir uma decisão que não foi objeto de maneira contraditória, voltando atrás mesmo após proferir uma decisão que não foi objeto de recurso” (IOTTI, Paulo. STF erra gravemente ao não julgar o direito de mulheres trans usarem o banheiro feminino. cit.)
[10] MOURA, Rafael Moraes. O julgamento que frustrou Barroso e expôs a resistência interna do STF à pauta de costumes. O Globo. Coluna de Malu Gaspar, 08 jun. 2024. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/blogs/malu-gaspar/post/2024/06/o-julgamento-que-frustrou-barroso-e-expos-a-resistencia-interna-do-stf-a-pauta-de-costumes.ghtml?giftId=0b7f6ec987a3c56&utm_source=Whatsapp&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilharmateria>. Acesso: 11 jun. 2024.
[11] Sobre o tema da política (ou mesmo ofensiva) antigênero, há uma extensa bibliografia. Mas para referir a uma instrumentalização do Direito cabe pelo menos citar BROWN, Wendy. Nas Ruínas do Liberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Trad. Mario A. Marino e outros. São Paulo: Politeia, 2019; VAGGIONE, Juan Marco. The Politics of Camouflage: Conscientious Objection as a Strategy of the Catholic Church. Disponível em https://hemisphericinstitute.org/en/emisferica-13-1-states-of-devotion/13-1-dossier/the-politics-of-camouflage-conscientious-objection-as-a-strategy-of-the-catholic-church.html. Acesso:11 jun. 2024. ; VAGGIONE, Juan Marco. A restauração legal: o neoconservadorismo e o direito na América Latina. In: BIROLI, Flávia, MACHADO, Maria das Dores Campos e VAGGIONE, Juan Marcos. Gênero, neoconservadorismo e democracia. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 41-82; JUNQUEIRA, Rogério Diniz. A invenção da “ideologia de gênero”: um projeto reacionário de poder. Brasília: Letraslivres, 2022; e PRADO, Marco Aurélio Máximo. Anti-gender ideology and neo-liberal state gramar in Brazil. Disponível em https://blogs.lse.ac.uk/gender/2024/02/06/anti-gender-ideology-and-neo-liberal-state-grammar-in-brazil/ Acesso: 11 jun. 2024.
[12] COACCI, Thiago. Pessoas trans e banheiros: o que dizem os dados? Jota, 4 jun. 2024. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/pessoas-trans-e-banheiros-o-que-dizem-os-dados-04062024. Acesso em: 7 jun. 2024.
[13] GALINDO, Antonella. “Direito dos Banheiros” e direito à identidade de gênero. Consultor Jurídico, São Paulo, 25 ago. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-ago-25/antonella-galindo-direito-identidade-genero. Acesso em: 7 jun. 2024.
[14] Cf. Corte IDH., caso Atala Riffo e filhas v. Chile, 2012: “111. Uma determinação com base em presunções infundadas e estereotipadas sobre a capacidade e idoneidade parental de poder assegurar e promover o bem-estar e o desenvolvimento da criança não é adequada para garantir o fim legítimo de proteger o interesse superior dessa criança”.
[15] BUTLER, Judith. Quem tem medo do gênero? Trad. Heci Regina Candiani, São Paulo: Boitempo, 2024, p. 9-10, 12-13, 18-19, 21-23 e 25.
[16] Nesse sentido vale lembrar manifestação do Min. Fux, quando pediu vista do caso lá em 2015, de que, sobre a questão do uso de banheiros por pessoas trans, o STF deveria “ouvir a sociedade” “diante de um “desacordo moral razoável”. Ora, ao contrário do que quer o Ministro, não é papel do STF decidir de acordo com pesquisas de opinião ou mesmo eleições. Quem tem que ouvir os eleitores é quem é eleito, ou seja, parlamentares e membros do Executivo. Aos Tribunais cabe a função de atuar até mesmo contra a vontade da maioria quando isso implique em violação de direitos de minorias por maiorias tirânicas, pois o dever constitucional do STF é ser guardião da Constituição (art. 102, caput) e não das vontades majoritárias. Julgar por argumentos de princípio, protegendo minorias contra típicos argumentos de política como “ouvir a sociedade” – algo de há muito debatido por Dworkin (Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000).
[17] IOTTI, Paulo. Entrevista concedida a MOURA, Rafael Moraes. O julgamento que frustrou Barroso e expôs a resistência interna do STF à pauta de costumes. O Globo. Coluna de Malu Gaspar, 08 jun. 2024. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/blogs/malu-gaspar/post/2024/06/o-julgamento-que-frustrou-barroso-e-expos-a-resistencia-interna-do-stf-a-pauta-de-costumes.ghtml?giftId=0b7f6ec987a3c56&utm_source=Whatsapp&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilharmateria>. Acesso: 11 jun. 2024.
[18] IOTTI, Paulo. STF erra gravemente ao não julgar o direito de mulheres trans usarem o banheiro feminino. Carta Capital, 07.06.24. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/opiniao/stf-erra-gravemente-ao-evitar-julgar-o-direito-de-pessoas-trans-a-usarem-o-banheiro-conforme-seu-genero/>. Acesso: 10 jun. 2024.
[19] RAMOS, Emerson. Epistemologia transfeminista: uma nova política dos conceitos para os estudos de gênero. In: LEÓN, Adriano de; RAMOS, Emerson; PEREIRA, Jomário; (org.). Gênero e Sexualidade em Perspectiva Social. João Pessoa: Editora UFPB, 2020, v. 1, p. 225-241.
[20] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Contribuições para uma Teoria Crítica da Constituição, 3 ed. Belo Horizonte: Conhecimento, 2023, p. 22.
[21] IOTTI, Paulo. Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos, 4ª Ed., Bauru: Spessoto, 2022, cap. 2, item 3.1, p. 259.
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