Judiciário e a Lei de Repatriação: silêncio eloquente

13/01/2020

Em recente exposição publicada pelo Empório do Direito, escrevi algumas linhas sobre o acerto da decisão da 3ª Seção do STJ – considerada sob o prisma constitucional –, ao entender como típica a conduta do não recolhimento doloso do ICMS[1]. O mesmo raciocínio desenvolvido naquela oportunidade, a contrario sensu, serve de fundamento, no mínimo, para ensejar maiores reflexões sobre a constitucionalidade Lei de Repatriação, especificamente em relação ao seu art. 5°, § 1°.

 Para além das discussões que envolvem o conceito regime democrático, é possível afirmar, com certo grau de consenso, que é legítima a ideia de que ele abrange não só os procedimentos formais ou instrumentais do exercício do poder, mas também é composto por valores que dão sustentação às regras estabelecidas, as quais devem harmonizar-se com uma das finalidades mais nobres da República, que é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Nessa perspectiva, se é certo que o ordenamento jurídico deve servir de vetor orientador para a realização da democracia, na medida em que funciona como limitador do exercício poder, também é correta a ideia de que esse mesmo ordenamento é estabelecido e imposto a si mesma pela coletividade democrática, não só com o objetivo de permitir a coexistência social pacífica, mas também para que seja possível dar concretude aos objetivos fundamentais previstos na Constituição Federal[2].

Dentro dessa visão, observa-se que a Constituição Federal se orienta pelo vetor da justiça social, entre outros importantes princípios, isto é, pela necessidade de fomentar um regime democrático que diminua as desigualdades sociais, constituindo-se, por isso, em um dos relevantes compromissos assumidos pela sociedade consigo mesma[3]. Além disso, esse compromisso explícito com a função social pode ser extraído de outros princípios reitores da ordem econômica, os quais enunciam a função social da propriedade e são reforçados, ainda, pela expectativa depositada na disposição geral, segundo a qual a ordem social tem como objetivo o bem-estar e a justiça social.

Com apoio nessas premissas, é de se concluir que o exercício da jurisdição pressupõe a análise, em qualquer caso, da conformação da lei (submetida sempre ao controle difuso) com as diretrizes e os princípios constitucionais, os quais se legitimam pela força sociopolítica do regime democrático que subjaz todo o sistema normativo. Assim, importa ao exercício da função jurisdicional, inter alia, que o magistrado extraia dos fatos, sob uma perspectiva ontognoseológica[4], o significado da projeção da realidade sensível em relação à lei ou ao conjunto normativo, sem que esse trabalho intelectual prejudique ou comprometa os valores enunciados por diretrizes fundamentais que a sociedade preserva e garante.

Nesse contexto, mostra-se vital que haja um equilíbrio entre a proteção dos direitos ou das garantias e a exigibilidade do cumprimento dos deveres fundamentais. Como assinalam Frederico Valdez e Douglas Fischer, “é preciso visualizar também que os deveres fundamentais são posições que se traduzem como quotas-partes constitucionalmente exigidas de cada um e, consequentemente, do conjunto dos cidadãos para o bem comum”[5]. Há que haver, portanto, uma avaliação da proporcionalidade dos enunciados normativos, os quais não podem afetar de maneira desproporcional os direitos ou as garantias fundamentais, tampouco tornar deficiente a exigência do cumprimento dos deveres igualmente fundamentais.

A proporcionalidade, portanto, atua “simultaneamente como critério para controle da legitimidade constitucional de medidas restritivas do âmbito de proteção de direitos fundamentais, bem como para controle da omissão ou atuação insuficiente do Estado no cumprimento dos seus deveres de proteção”[6].

Tais diretrizes, em contraste com a Lei de Repatriação de Bens e Direitos (Lei n. 13.254/2016), especialmente no que diz respeito ao art. 5°, § 1°, denota, em algum grau, que a avaliação do referido diploma normativo pelo Judiciário tem passado incólume pelo filtro impositivo de controle da constitucionalidade. Com efeito, a sua aplicação, em regra sem maiores reflexões[7], no âmbito penal, acaba por fomentar uma ideia equivocada sobre a criminalização dos crimes tributários, os quais, na visão de grande e abalizada vertente doutrinária, funcionariam apenas como instrumento de coerção para o pagamento exação.

Deveras, ao considerar válida a previsão de extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo sonegado nas mais variadas hipóteses previstas no referido dispositivo legal, as quais abrangem algumas condutas que representam a prática de variados crimes com reprovabilidade acentuada, incorre-se em um grave enfraquecimento do papel da tutela penal, de tal sorte que torna legítima algumas das críticas que são feitas em relação à criminalização tributária, além de causar inquietante incongruência sistêmica.

De fato, haverá a extinção da punibilidade pela adesão e cumprimento das condições que a lei estabelece, mesmo nas hipóteses em que a sonegação fiscal é sucedida, por exemplo, pela evasão de divisas ou pela lavagem de dinheiro. Observe-se que esses delitos são bem mais graves, sendo que o de lavagem de capitais possui autonomia que lhe garante, mesmo que o crime antecedente não haja sido completamente apurado, a deflagração do processo penal[8].

Vale dizer, nas mais variadas e corriqueiras hipóteses, nas quais o delito de branqueamento de capitais é punido isoladamente (quando não esclarecido o crime antecedente) ou em concurso de crimes (quando há a apuração do crime antecedente), no caso em que o delito antecedente for o de sonegação fiscal, poderá ocorrer a extinção da punibilidade pela repatriação do dinheiro e pagamento do tributo devido.

Soa demasiadamente incongruente tal previsão legal, porque diminui o papel de proteção do bem jurídico que envolve tais delitos, sobretudo se considerarmos especificamente que a prática de sonegação fiscal, dentro do modelo constitucional democrático, abala importantes funcionalidades do Estado e, também, porque tal diretriz entra em rota de colisão com princípios penais, entre os quais o da ofensividade e da lesividade, dada a proteção insuficiente da norma.

Se, de um lado, no modelo democrático proposto pela Carta Magna, o sistema de arrecadação de receitas derivadas da tributação se ancora não só na necessidade da manutenção da máquina estatal, mas nos objetivos fundamentais e na busca de efetividade dos direitos sociais previstos no texto constitucional, a necessidade de tutela e repressão penal só pode ser justificada se considerado o espectro bem mais abrangente do bem jurídico envolvido, o qual abarca a defesa dos objetivos fundamentais.

De outro lado, se analisarmos os crimes contra a propriedade de maneira geral (arts. 155 a 180), a reparação do dano pode ser considerada, no máximo, como uma atenuante. Já nos casos elencados pela Lei n. 13.254/2016, o pagamento de tributo, que não necessariamente repara integralmente o dano (sobretudo o social), constitui causa de extinção da punibilidade, a indicar uma absoluta disparidade de tratamento, de tal sorte que acaba por robustecer ideia de um direito penal seletivo e seguramente segregativo, afinal, ninguém tem dúvida de qual classe social estaríamos tratando o indivíduo que furta e aquele sonega e lava dinheiro.

Nessa perspectiva, com o devido respeito aos que pensam de maneira contrária, concluo que a possibilidade de se extinguir a punibilidade nos casos previstos no art. 5°, § 1°, da Lei n. 13.254/2016 produz verdadeira proteção deficiente, sobretudo quando presente a prática de delitos mais graves, visto que fragiliza, de maneira desproporcional, a própria ideia que subsidia a tutela penal do principal mecanismo para concretização da democracia plena.

Decerto que a edição da Lei 13.254/2016 lastreou-se, em alguma medida, na construção jurisprudencial[9] relativa à sonegação fiscal quando há o pagamento do tributo. Entretanto, para além dessa orientação jurisprudencial, a qual reputo válidas as mesmas observações até então expostas relativamente ao objeto da tutela penal nos delitos tributários, sobreleva-se, na hipótese da lei de repatriação, que a extinção da punibilidade opera para os crimes de sonegação mesmo que tais delitos concorram com à prática dos delitos mais graves.

Por mais que se faça um esforço para enxergar um movimento de política criminal voltada para o robustecimento da economia, mormente diante da crise econômica experimentada no últimos anos, não há como compatibilizar a ideia de que a potencialidade lesiva dos crimes mais graves que possam orbitar a sonegação fiscal se esgotem com a própria prática do crime tributário.

Se, em relação ao indivíduo que simplesmente sonega, a referida lei criou uma situação de enorme “vantagem” para o agente que sonega e lava o dinheiro obtido com a sonegação ou promove mesmo sua evasão, não é difícil concluir que maior “vantagem” ainda é experimentada frente ao cidadão que cumpre regiamente seus deveres. Some-se a isso o caminho inverso trilhado pela referida lei diante dos esforços crescentes dos organismos internacionais no combate a sonegação de tributos e a lavagem de dinheiro. Há, por certo, um silêncio eloquente em relação à Lei de Repatriação.

 

Notas e Referências

DALLARI, D. de A. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2012.

REALE, Miguel. Da revolução à democracia. São Paulo: Convívio, 1977.

_______________ Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1999.

SALGADO, Daniel de Resende; KIRCHER, Luís Felipe Schneider; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de (Coord.). Altos Estudos Sobre a prova no Processo Penal. Salvador: JusPodivm, 2020.

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2016.

[1] Consultar em: “https://emporiododireito.com.br/leitura/nao-recolhimento-doloso-de-icms-uma-visao-constitucional

[2] [...] encontra-se na base de toda a vida social uma ordem jurídica, o verdadeiro sentido de poder ou dominação estatal não é o de que uns homens estão submetidos a outros, mas sim o de que todos os homens estão submetidos a normas. E quando se fala em poder do Estado como poder coativo isto quer dizer que as normas estatais, determinando certos comportamentos, prescrevem a coação para o caso de desobediência, isto porque são normas jurídicas. DALLARI, D. de A. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 115).

[3] Segundo Miguel Reale, “o Estado de Direito somente o é efetivamente quando se torna Estado de Justiça Social” (Da revolucão à democracia. São Paulo: Convívio, 1977, p. 122).

[4]  Ontognoseologia constitui, lato sensu, a parte transcendental da teoria do conhecimento, aquela que cuida dos “pressupostos do ato mesmo de conhecer” (REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 27). Almeja saber a partir de quais verdades fundamentais ônticas, empíricas, e não apenas lógicas – se assenta o conhecimento acerca de um determinado tema, com a real compreensão sobre o objeto cognoscível, de modo a superar a concepção puramente positivista.

[5] PEREIRA, Frederico Valdez; FISCHER, Douglas. Prova, Verdade e as obrigações processuais positivas. In: SALGADO, Daniel de Resende; KIRCHER, Luís Felipe Schneider; QUEIROZ, Ronaldo Pínheiro de (Coord.). Altos Estudos Sobre a prova no Processo Penal. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 66.

[6] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 390).

[7] No STJ, tem-se reconhecida a extinção da punibilidade, como por exemplo, nos casos seguintes: PET no REsp n. 1.663.780/RS, Dje 5/10/2018; EDcl nos EDcl no AREsp n. 1.146.532/RS, DJe 28/8/2018; OF no REsp n. 1.624.243/PR, DJe 27/8/2018, entre outros.

[8] “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica, no sentido de que o “processo e julgamento do crime de lavagem de dinheiro é regido pelo Princípio da autonomia, não se exigindo, para que a denúncia que imputa ao réu o delito de lavagem de dinheiro seja considera apta, prova concreta da ocorrência de uma das infrações penais exaustivamente previstas nos incisos I a VIII do art. 1º do referido diploma legal, bastando a existência de elementos indiciários de que o capital lavado tenha origem em algumas das condutas ali previstas” (HC 93.368, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma)” (HC n. 138.092/RJ, Rel. Ministro Marco Aurélio, DJe 30/4/2018).

[9] “A extinção da punibilidade pelo pagamento do débito tributário encontra respaldo na regra prevista no artigo 69 da Lei nº 11.941/2009, que não disciplina qualquer limite ou restrição em desfavor do agente, merecendo, no ponto, recordar a locução do Ministro Sepúlveda Pertence no Habeas Corpus nº 81.929/RJ, julgado em 16 de dezembro de 2003: “a nova lei tornou escancaradamente clara que a repressão penal nos crimes contra a ordem tributário é apenas uma forma reforçada de execução fiscal” (AP n. 516 ED/DF, Rel. Ministro Ayres Brito, DJe 1°/8/2014).

 

Imagem Ilustrativa do Post: Hammer Books // Foto de: succo // Sem alterações

Disponível em: https://pixabay.com/en/hammer-books-law-court-lawyer-719066/

Licença de uso: https://pixabay.com/en/service/terms/#usage

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura