Não recolhimento doloso de ICMS: uma visão constitucional

23/11/2019

O Superior Tribunal de Justiça, por meio da 3ª Seção, pacificou o entendimento de que o não recolhimento doloso do ICMS em operações próprias constitui, em tese, o crime previsto no art. 2°, II, da Lei n. 8.137/1990[1].

Desde então, não foram poucos os ensaios, artigos ou matérias publicados por revistas especializadas ou por alguns sítios eletrônicos de conteúdo jurídico nos quais juristas ou advogados de renome renderam críticas severas sobre o referido posicionamento. Em comum, a conclusão de que houve a “criminalização” do inadimplemento fiscal. Tal constatação, data vênia, mostra-se equivocada por diversos motivos, entre os quais destacaria, nesta breve exposição, apenas o de ordem constitucional, o qual parece haver sido relegado pelas sobreditas avaliações.

Deveras, a Constituição Federal, de modo bastante peculiar, ao mesmo tempo em que preconiza a livre iniciativa – qualificação da liberdade individual na esfera econômica – como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, também o faz com os valores sociais e a dignidade da pessoa humana, esta última como parâmetro que direciona todo o ordenamento jurídico[2].

Na visão de Daniel Sarmento, entre as múltiplas funções do princípio da dignidade da pessoa humana, destaca-se o seu “fator de legitimação do Estado e do Direito, norte para a hermenêutica jurídica, diretriz para ponderação entre interesses colidentes, fator de limitação dos direitos fundamentais, parâmetro para o controle de validade de atos estatais e particulares, critério para identificação de direitos fundamentais e fonte de direitos não enumerados”[3].  

Além disso, sobrelevam os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos no art. 3º da Carta Magna[4], os quais constituem verdadeiros princípios que instituem programas e vinculam os Poderes Públicos.

Decerto que tanto os fundamentos quanto os objetivos – estes considerados normas-objetivo[5] –, longe de simples previsão utópica do poder constituinte, constituem-se o maior desafio de implementação e observância imposto à República desde a redemocratização, sobretudo se levada em consideração a enorme desigualdade social que caracteriza nossa sociedade.

Em contrapartida, a Constituição preceitua, ao lado dos direitos e garantias fundamentais, os deveres individuais[6] (Capítulo I do Título II), que, embora possam até não significar a outra face de um direito fundamental[7], traduzem-se como normas de igual relevância que compõem, como necessário e essencial, o conjunto de comportamentos que dão concretude ao exercício pleno das garantias fundamentais individuais e sociais, sobretudo quando se tratarem de deveres relacionais, os quais podem vincular o indivíduo ao Estado, os indivíduos à coletividade em que se encontram inseridos ou as pessoas umas às outras.

Assim, v. g., se ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei, com semelhante grau de proteção e imperatividade, será obrigado a fazê-la se por força de lei houver essa determinação. A norma, portanto, pode impor um dever que gera, com a mesma sinergia, a proteção e a obrigatoriedade de observância decorrente de um direito.

A existência de certos direitos fundamentais pressupõe o respeito aos deveres fundamentais que guardam com eles alguma correspondência e se manifestam – tanto os direitos quanto os deveres –, como síntese que sustenta o próprio exercício das liberdades. De fato, o conteúdo subjacente de determinados deveres fundamentais, que se baseia essencialmente na ideia de fraternidade, de solidariedade e de cooperação, colmata-se com o conteúdo inerente ao gozo de um direito fundamental, em um sistema que se retroalimenta.

Então, sob o prisma constitucional, veicula-se um modelo estatal cuja natureza vinculante dos fundamentos, objetivos e direitos fundamentais acabam por condicionar e, ao mesmo tempo, exigir a criação de meios materiais que também serão vinculantes, os quais decorrerão de deveres preestabelecidos, que propiciem implementá-los, tornando-os efetivos.

Daí a importância de serem observados os deveres previstos na Constituição Federal, na medida em que somente com o cumprimento deles é que se torna possível a concretização de todos os compromissos mais expoentes do Estado firmados no texto constitucional. Não é possível imaginar que todos os propósitos mais sublimes externados pela Constituição possam concretizar-se como “num passe de mágica”, sem olvidar das premissas essenciais que os tornam viáveis.

Se, por um lado, o Estado, como concebido, não pode ser compreendido como uma panaceia capaz de resolver todos os males, por outro, não pode ser ignorada sua função essencial na implementação de programas – ligados à saúde, educação, segurança, previdência social[8] – que possam mitigar a tamanha desigualdade social e proporcionar um ambiente de segurança e igualdade para o exercício das liberdades.

Em suma, o Estado existe para a consecução do bem comum, que somente pode ser atingido com a captação de recursos, dos quais se sobrelevam os de natureza pecuniária obtidos por meio das receitas públicas (originárias ou derivadas), que possuem o tributo como um dos seus mais relevantes expoentes[9], a par da sua utilização, em casos específicos, com a finalidade extrafiscal.

Os tributos, assim como as demais fontes de receitas orçamentárias, possibilitam dar concretude aos propósitos do Estado brasileiro, na medida em que permitem não só a realização de programas ou de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento do país, mas também constituem mecanismo essencial para a promoção de maior justiça social, sobretudo porque grande parte do produto da arrecadação é (ao menos deveria ser) convertida em prol da própria sociedade.

Trata-se, portanto, de um dever fundamental incompatível com comportamentos motivados por interesses particulares que venham a obstruir, consciente e voluntariamente, essa importante fonte de receitas. Em outras palavras, a função peculiar dos tributos acaba por justificar a tutela penal para o sistema tributário, porquanto a frustração na arrecadação dessas receitas implica óbice potencial para a concretização de todos os propósitos ou objetivos fundamentais e, em consequência, pode atentar contra o próprio modelo de Estado Democrático adotado pelo Brasil.

É indiscutível, ainda, que, para além dos prejuízos para a materialização das finalidades firmadas pelo poder constituinte, o não recolhimento dos tributos acarreta, de modo direto, violação de princípios centrais da ordem econômica. A Constituição, no capítulo referente aos princípios gerais da atividade econômica, reforça, no parágrafo único do art. 170, a proteção ao princípio da livre iniciativa – contemplado, aliás, como fundamento da República (art. 1º, inciso IV) – e também prevê, expressamente, a necessidade de observância do princípio da livre concorrência, claramente violado a partir do momento em que o indivíduo que arca com suas obrigações tributárias não consegue competir no mercado com aquele que deliberadamente não arca com os tributos devidos.

Todavia, há que se separar “o joio do trigo”. Há distinção entre o mero inadimplemento[10], que decorre de circunstâncias que saem da órbita da vontade do indivíduo, e o inadimplemento deliberado, isto é, o não recolhimento do tributo de forma dolosa, com o intuito de se obter algum benefício pessoal com os valores devidos ao Poder Público.

Há uma diferença ontológica entre aquele que não paga tributo por circunstâncias alheias à sua vontade (dificuldades financeiras, equívocos no preenchimento de guias etc.) e aquele que, dolosamente, não recolhe o tributo motivado por interesses pessoais (possibilidade de reinvestimento com maior retorno, obtenção de maiores lucros etc.).

Como assinala Juarez Tavares, que não se restringe a definição que adveio do finalismo, o dolo, que deve estar presente na conduta do indivíduo, é “a consciência e vontade de realizar os elementos objetivos do tipo, tendo como objetivo final a lesão ou o perigo concreto de lesão do bem jurídico”[11]. A sua relação com o resultado corresponde “à necessidade de se proceder a uma medida da intensidade de ingresso do agente na zona do ilícito”[12].

Ora, o dolo é um dos componentes centrais do delito, de maneira que, sob qualquer concepção estrutural que o compreenda – seja como elemento subjetivo integrante do tipo, seja como compromisso com a produção do resultado, aferível depois que a ação se acha definida (modelo significativo da imputação) –, há que se avaliar a existência dos elementos intelectual e volitivo[13].

Logo, o simples inadimplemento da obrigação tributária, em decorrência da ausência desses dois (ou apenas um deles) elementos que compõem a estrutura do delito, jamais poderá constituir-se crime, sob pena de violação ao princípio da culpabilidade, o qual, segundo Nilo Batista, pressupõe que a responsabilidade penal seja subjetiva e, portanto, não derivada simplesmente da associação causal entre a conduta e um resultado lesivo[14]. Por isso, o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, em estrita observância ao referido princípio, pontuou, de maneira bastante exitosa, a necessidade de que a conduta haja sido praticada com dolo.

No particular, o tipo previsto no art. 2°, II, da Lei n. 8.137/1990, a despeito de sua redação pouco elogiável, conferiu proteção penal – com respaldo na Constituição Federal, conforme exposto até aqui – à conduta daquele indivíduo que deixa de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos. Diversamente do que ocorre com as condutas previstas no art. 1°, a descrição típica não exige, para sua concretização, que o não recolhimento se dê com a utilização de nenhum ardil, fraude ou mesmo sob o manto da clandestinidade. Basta que o sujeito passivo da obrigação se abstenha dolosamente de recolher o tributo.

Soa no mínimo desarrazoado e até mesmo incongruente, à vista da necessidade de se conferir tratamento isonômico, dar a mesma interpretação do fato constituído pelo indivíduo que não paga o tributo destituído dos elementos intelectivo e volitivo, e aquele que, de modo deliberado, não cumpre com esse dever motivado pela presença dos referidos elementos.

A compreensão de que o não recolhimento de imposto, em qualquer circunstância, constitui-se espécie de simples inadimplemento fiscal, transfigura-se, na verdade, em proteção deficiente do Estado em face daquele indivíduo que honra com seu dever, constituindo-se verdadeiro incentivo ao não pagamento, sobretudo se conhecidas as formas cíveis de persecução do valor devido, as quais, não raro, acabam por transformar o débito em dívida irrecuperável (por diversos motivos), com consequências nefastas para toda sociedade.

Um dado bastante representativo disso pode ser extraído do valor sonegado anualmente no Brasil, a título de impostos, que gira em torno de R$ 300 a R$ 500 bilhões.  É estarrecedor imaginar o cenário em que simplesmente não pagar tributo acarretaria somente consequências na órbita civil. Prova disso é a existência de altíssima dívida fiscal que, em sua maior parte, jamais será recuperada.

Segundo levantamento feito pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional, ainda em julho de 2018, a soma de todas as dívidas tributárias brasileiras já alcança R$ 1,1 trilhão, em boa parte incobrável.  De acordo com esse estudo, a maior parte desse débito – R$ 723,3 bilhões – estaria concentrada em empresas que representam menos de 1% de todas as empresas registradas. É bom lembrar que o déficit público projetado para 2018 girou em torno de R$ 140 e 150 bilhões[15].

É notório que o fomento à inadimplência, com a contribuição de entendimentos como o que é defendido por boa parte da classe jurídica que se insurge contra a notável decisão do STJ, acaba por comprometer a necessidade de atuação positiva do Estado, não só para tornar palpáveis os objetivos fundamentais da República, mas também concretizável o gozo dos direitos fundamentais e sociais, além de comprometer, evidentemente, o próprio sistema econômico e previdenciário no qual se funda o Estado.

Não perco de vista que o alto grau de tributação, aliado ao baixíssimo retorno social e à deficiência das políticas públicas proporcionados pelo Brasil, constitui combustível para o não pagamento dos tributos e, por isso mesmo, implica algum sentido (ainda que apenas moral) para o discurso que pretende afastar o não pagamento doloso dos tributos da tutela penal.

Entretanto, uma coisa não justifica nem se relaciona, no campo jurídico constitucional, com a outra. A insatisfação com o retorno dos benefícios sociais decorrentes da tributação não pode justificar a prática dolosa do não pagamento de tributos, porque, se assim o fosse, toda e qualquer insatisfação das pessoas com as atividades do Estado poderia justificar o descumprimento de qualquer imposição legal[16].

Por todo o exposto, penso que o julgamento realizado pelo Superior Tribunal de Justiça, sob a ótica constitucional delineada nesta breve exposição, foi acertado e em consonância com anseios de toda sociedade, sintetizada pelos fundamentos, objetivos, direitos e deveres fundamentais.

 

Notas e Referências

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 104.

FISCHER, Douglas. Delinquência econômica e estado social e democrático de direito: uma teoria à luz da constituição. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006.

SARLET, Ingo Wolfgang et al. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2016.

SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016.

SBARDELOTTO, Fábio Roque. Direito Penal no Estado Democrático de Direito: perspectivas (re)legitimadoras. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. 

TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.

[1] HC n. 399.109/SC, Rel. Ministro Rogerio Schietti, DJe 31/8/2018.

[2] Segundo Ingo Sarlet, “a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1°, III, da CF), a CF – a exemplo do que ocorreu pela primeira vez e de modo particularmente significativo na Lei Fundamental da Alemanha (1949) - , além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal” (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 261).   

[3] Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p.77.

[4] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:  I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

[5] Termo cunhado por Ingo Sarlet in Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2016

[6] Embora a expressão “dever” possa imbricar-se com acepção moral, a sua utilização nesta exposição, longe da discussão etimológica que enveredaria para o campo filosófico, parte da premissa de que tanto dever quanto obrigação é determinada por norma jurídica.

[7] Existem deveres que são conexos com os direitos fundamentais (ex: dever cívico de voto relacionado com o direito de votar). Entretanto, isso não exclui a possibilidade da existência de deveres autônomos (dever da família assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão – art. 227 da CF).

[8] Como pontua Douglas Fischer, “perante um Estado que se defina como Democrático e Social, ancorado também no dever de solidariedade, não se pode deixar de considerar a existência de uma obrigação primordial e geral de que todos os cidadãos concorram para o financiamento do Estado, observadas suas capacidades contributivas, para que este possa ter condições de realizar seus fins e objetivos, estampados também em comandos primordiais na Constituição da República” (Delinquência econômica e estado social e democrático de direito: uma teoria à luz da constituição. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006, p. 131).

[9] “(…) o tributo se constitui no instrumento de maior relevância para financiamento das despesas públicas, sendo que a Constituição impõe o dever de se contribuir mediante um sistema tributário justo – segundo os princípios e regras insertos nos artigos 145 e 151 da Constituição Federal – como verdadeira pedra angular do sistema de manutenção de gastos públicos” (op. cit, p. 132).

[10] Aqui repousa a fonte de equívoco dos diversos textos que criticam a decisão do STJ.

[11] Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p. 249

[12] Ob. cit, p. 249

[13] Segundo Tavares, “o dolo pode ser decomposto em dois segmentos, um intelectivo (consciência), outro, volitivo (vontade). Com base nesses segmentos, pode ser construída sua estrutura” (ibidem, p. 266)

[14] Introdução crítica ao direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 104.

[15] Conteúdo acessível no sítio eletrônico http://www.quantocustaobrasil.com.br

[16] Como assinala Sbardelotto, “o Direito Penal tem-se se mantido vinculado a conceitos dogmáticos que não refletem, em suma, os novos ares de um Estado Democrático de Direito, implementado pela Constituição de 1988. Constitui-se, em essência, e grande parte, em instrumento de tutela de bens jurídicos ainda vinculados à ideologia iluminista, onde, a pretexto de uma igualdade formal, tutelam-se interesses individuais díspares, sem qualquer compromisso com a implementação dos direitos sociais ainda não estabelecidos” (Direito penal no Estado Democrático de Direito: perspectivas (re)legitimadoras. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 113). 

 

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