Por Gisela Aguiar Wanderley e Rafael de Deus Garcia - 21/03/2016
No fim da última quarta-feira (16/3), os noticiários nacionais foram invadidos por uma única e estrondosa notícia: o juiz federal Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba – PR, havia tornado públicas gravações obtidas em interceptação telefônica de celular utilizado pelo ex-Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.
O primeiro diálogo publicado, uma ligação feita horas antes pela atual Presidente, Dilma Rousseff, foi repetido à exaustão nos noticiários da noite da quarta-feira. No entanto, paulatinamente, todas as demais ligações interceptadas foram integralmente publicizadas. Logo alcançaram-se conclusões variadas sobre “o Lula revelado nos grampos”. Nas palavras de um colunista, um dos veredictos: “Um líder astuto na transmissão de suas ordens e na busca por informações, manipulador e conspirador, machista e desbocado. Esse o Lula que agora todos conhecem”.
Diante de tal contexto, no presente artigo, não discutimos o acerto das referidas conclusões sobre a índole e sobre as condutas do ex-Presidente. Não analisamos, tampouco, o conteúdo das gravações, causador de ebulição política e inúmeras reações institucionais. Concentramo-nos, por ora, em discutir a legalidade da divulgação das gravações pelo órgão jurisdicional, sob o estrito prisma da dogmática constitucional e processual penal.
De acordo com o artigo 5º, XII, da Constituição de 1988, as comunicações telefônicas são invioláveis. Esse dispositivo, contudo, admite que tal inviolabilidade seja excepcionada quando houver o preenchimento dos seguintes requisitos cumulativos: desde que seja precedida (1) de ordem judicial, (2) na forma estabelecida por lei e (3) para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
Tendo em vista que a interceptação telefônica se trata de incontestável invasão da intimidade e da vida privada, tal dispositivo reforça a proteção constante do inciso X do mesmo artigo, o qual eleva a privacidade e a intimidade à condição de direitos fundamentais e indica uma ordem jurídico-constitucional que se estrutura a partir de uma esfera de inviolabilidade do indivíduo a possíveis intervenções estatais.
Assim, nos termos da lei regulamentadora do inciso XII do art. 5º da CF/88, qual seja, a Lei n. 9.296/96, a interceptação telefônica somente se justifica como medida subsidiária e se houver indícios razoáveis de prática de crime punível com, no mínimo, pena de reclusão (art. 2º). A interceptação do celular do ex-Presidente, até onde se sabe, obedeceu a tais requisitos e foi autorizada judicialmente.
No entanto, na última quarta-feira, o Juízo da 13ª Vara de Curitiba encerrou a interceptação e, logo em seguida, tornou público o conteúdo das gravações. No despacho, o magistrado, ao que parece, tratou do sigilo da interceptação tal como se fosse exceção, e não regra, invertendo a orientação constitucional acima mencionada. Aduziu que não haveria mais a “necessidade” do sigilo. Este seria então levantado para “propiciar a ampla defesa e publicidade”.
Na fundamentação, o magistrado fez menção ao art. 5º, LX, e ao art. 93, IX, da CF/88, que estabelecem a regra geral de publicidade dos processos. Não mencionou, contudo, o inciso XII do artigo 5º da CF/88, que trata especificamente das comunicações telefônicas. Tampouco a dicção dos artigos 1º, 8º e 9º, da Lei n. 9.296/96, abaixo comentados. Assim, reputou que a publicidade das gravações permitiria o “saudável escrutínio público” e, com base na regra geral dos arts. 5º, LX, e 93, IX, aduziu que “a democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes” e que “não há qualquer defesa de intimidade ou interesse social que justifiquem a manutenção do segredo em relação a elementos probatórios relacionados à investigação de crimes contra a Administração Pública”.
Assim, sem individualizar as gravações em que haveria indícios de crimes, o Juízo permitiu a divulgação das inúmeras conversas travadas pelo ex-Presidente durante o período da interceptação. Entre as conversas divulgadas, há diálogos sobre ações pretéritas do sistema de justiça criminal, sobre recentes acontecimentos políticos, bem como sobre temas diversos, tais como olimpíadas, pré-sal e futebol. Assim, veja-se, divulgaram-se não apenas aquelas conversas que, no entender do julgador, possuiriam indícios de crimes contra a Administração Pública, até porque o magistrado não as indicou nomeadamente. Na maior parte, deveras, não é possível identificar o mais remoto indício de prática de conduta criminosa. Não obstante, todas as conversas estão agora disponíveis para que possamos julgar as opiniões manifestadas pelo ex-Presidente em suas conversas privadas.
Ante tal contexto, cabe esclarecer que, em atenção à Constituição, a lei de interceptações telefônicas prevê, já em seu artigo 1º, que a interceptação telefônica corre sob segredo de justiça. Essa orientação é repisada no artigo 8º:
Art. 8° A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas.
Assim, ainda que os autos da ação penal sejam públicos, as gravações e transcrições remanescem sob sigilo, em apenso aos autos principais. A norma não apresenta, note-se, exceção. Nenhuma. Não importa a gravidade ou a natureza do crime praticado. Muito menos as condições pessoais do agente investigado. O sigilo das gravações da interceptação telefônica é uma regra a ser seguida pelo juiz, que não pode impor sua vontade (por mais bem-intencionada que seja) à lei, menos ainda à Constituição.
As justificativas erigidas pelo juiz Moro para fundamentar a publicidade das gravações não se sustentam. Por um lado, o levantamento do sigilo não é necessário para propiciar a ampla defesa, pois os advogados dos investigados possuem acesso aos autos sigilosos. Por outro lado, na dicção do art. 8º da Lei n. 9.296/96, a interceptação corre em autos apartados mesmo após o término do inquérito e o início do processo criminal. Assim, a norma indica, de maneira inequívoca, que a publicidade da ação penal não conduz à publicidade da interceptação, que necessariamente corre em autos apartados sigilosos.
No caso concreto, por outro lado, ainda estavam os autos na fase de investigação pré-processual, em que a regra é o sigilo – não só dos autos da interceptação, mas também dos autos principais do inquérito. O sigilo se justifica não só para propiciar a eficiência das investigações, mas também para proteger o investigado, pois o procedimento não obedece ao contraditório e à ampla defesa e, assim, não pode o Estado permitir o escrutínio público da questão antes da manifestação do investigado e da própria avaliação judicial do caso.
Por isso, a orientação adotada é, no mínimo, heterodoxa. Haja vista que o procedimento foi realizado na fase de inquérito policial, os indícios eventualmente descobertos serviriam para lastrear o oferecimento de denúncia contra o investigado, assim formando a chamada opinio delicti da acusação. As provas, por sua vez, são, em regra, produzidas após o início da ação penal, submetendo-se ao contraditório e à ampla defesa (CF/88, art. 5º, LV).
Na fase de investigação, o papel do juiz é tão somente o de apreciar a legalidade da persecução penal, sobretudo a fim de que não sejam atropelados os direitos fundamentais que tutelam o indivíduo contra a intervenção estatal arbitrária. Entende-se, em tal contexto, que a interceptação telefônica pressupõe a terzietà da autoridade judicial (AVOLIO, 2012, p. 96), o que significa dizer que o juiz deve manter-se imparcial e autônomo, atuando como garantidor. Assim, note-se que, durante uma interceptação, ante a descoberta fortuita (serendipidade) de novos indícios de crime por parte de terceiro com prerrogativa de foro (Dilma Rousseff, Jacques Wagner, Eduardo Paes...), o Juízo limita-se a encaminhar os autos à autoridade competente para ciência, a fim de que esta avalie se dará início a investigação na instância superior.
Feitas tais considerações, é ainda elucidativa a dicção do artigo 9º da lei de interceptações telefônicas:
Art. 9° A gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada.
Parágrafo único. O incidente de inutilização será assistido pelo Ministério Público, sendo facultada a presença do acusado ou de seu representante legal.
Assim, o conteúdo das gravações que é irrelevante para a investigação criminal ou para a instrução processual penal deve ser inutilizado. Tal determinação legal tem um propósito claro: manter apenas as gravações relevantes no processo e assegurar a inviolabilidade (sigilo) das gravações irrelevantes, inclusive por meio da sua inutilização. Inexiste, portanto, permissivo legal para que as gravações sem indícios de crime sejam publicizadas. Com efeito, evita-se, com isso, que a existência de investigação em curso sirva de mero pretexto para a publicização de conversas diversas, sem conexão com o objeto da investigação. No entanto, no caso concreto, tais determinações legais e constitucionais foram olvidadas e, com a rápida midiatização das gravações, ao revés, eternizou-se seu conteúdo, independentemente da indicação de indícios de crimes praticados pelos interlocutores e, ainda, independentemente de prévia ciência de seus representantes legais.
Diante de tais contornos legais, transparece nítida a impossibilidade de divulgação do conteúdo constante dos apensos da interceptação telefônica, sobretudo antes que ocorra a manifestação das partes sobre a inutilização prevista no art. 9º (e no art. 157, § 3º do CPP), devendo esta ser realizada preferencialmente na fase processual, oportunizada à defesa o conhecimento de seu teor.
No ponto, cumpre notar que a interceptação telefônica é objeto de especial regramento constitucional por um sensível motivo: ao interceptar as ligações de um indivíduo, a polícia não obtém, separadamente, apenas as informações atinentes ao crime investigado. A polícia obtém acesso a todas as conversas travadas pelo indivíduo durante o período da interceptação – digam elas respeito ao crime ou não. A interceptação enseja, pois, uma devassa inevitável da vida privada. Por isso, deve ser temporalmente delimitada e deferida sempre em caráter excepcional, após rigoroso escrutínio judicial, embasado nos requisitos previamente definidos em lei.
Em nenhum momento a Constituição propugna a quebra da inviolabilidade do sigilo telefônico a fim de satisfazer anseios populares, por mais nobres que estes possam parecer. Tampouco permite que o órgão jurisdicional ignore a disposição do art. 5º, XII, da CF/88 e faça um genérico e potestativo juízo de ponderação acerca de quais conversas são ou não protegidas pelo direito à intimidade (CF/88, art. 5º, X).
Ao estabelecer o sigilo telefônico como regra, o constituinte originário visava, certamente, não só a delimitar o próprio poder estatal, mas também a evitar a execração pública diante da devassa de conversas que foram despreocupadamente travadas na esfera privada e não pretendiam ser publicizadas por seus agentes. Estabelece, com isso, uma esfera de inviolabilidade pessoal, na qual o indivíduo é livre para expor suas opiniões, sem medo de ser por elas julgado por terceiros. A exceção a esse direito, por sua vez, possui natureza taxativa, reitere-se: apenas nos casos de investigação de crime e de instrução penal, submetida à estrita legalidade.
O “interesse público”, por sua vez, não é oponível à higidez dos direitos fundamentais. Tal concepção serve, de outra parte, para neutralizá-los e, por isso, encontra-se na raiz dos sistemas políticos autoritários. Os direitos constitucionais protegem interesses individuais justamente na medida em que impedem que apelos ao bem comum (preferências majoritárias) sejam utilizados como justificação para limitar direitos (DWORKIN, 1978). Assim, é preciso inverter essa oposição binária e reconhecer que, no Estado Democrático de Direito, o principal interesse público é justamente a garantia dos direitos fundamentais.
Como se sabe, desafia-se, em momentos de crise, essa exigência. No entanto, diante da nossa jovem Constituição, é preciso ter maturidade para não abdicar de nossas liberdades constitucionais. Que sigam as investigações, sempre de acordo com as regras do jogo. Não podemos queimar a casa para nos livrarmos dos ratos.
. Gisela Aguiar Wanderley é Mestranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB); Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB); Advogada.. . .
. . Rafael de Deus Garcia é Mestre pela Universidade de Brasília. Professor de Processo Penal e advogado criminalista. . .
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