Integridade do Direito – Contas presidenciais e devido processo legislativo – Por Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia e Diogo Bacha e Silva

24/08/2015

A impetração do Mandado de Segurança 33.729 retoma a discussão acerca do papel do Legislativo e do próprio Supremo Tribunal Federal na guarda da Constituição. No caso, a Presidente da Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização, Senadora Rose de Freitas, impetra o writ em face de ato da Mesa da Câmara dos Deputados consistente na inserção de Projetos de Decretos Legislativos de análise de contas dos ex-Presidentes da República, especificamente os Projetos de Decreto Legislativo 384/97, 1376/09, 40/2011, 42/2011 para apreciação da Câmara dos Deputados em sessão separada.

Sustenta a impetração que, nos termos da Constituição Federal, a sessão de julgamento das contas apresentadas pelo Presidente da República deve ser realizada em conjunto pelo Congresso Nacional e não por meio de suas Casas em separado – ao contrário da prática que tem sido feita até então à revelia da Constituição. Dessa forma, como diz a petição inicial: “Verifica-se, pois, a existência de flagrante violação ao devido processo legislativo constitucional, com a usurpação pelo impetrado de competência que somente pode ser exercitada pelo Congresso Nacional, em sessão conjunta das duas casas legislativas, a qual deve ser presidida pelo Presidente do Senado Federal, nos termos do art. 57, §§3° e 5°, da Constituição”.

Na apreciação do pedido liminar, proferida em 13 de Agosto de 2015, o Min. Luis Roberto Barroso logo reconhece que a matéria é de fato de competência do Congresso Nacional, consoante se extrai do art. 49, inc. IX; art. 71, I e art. 84, inc. XXIV da Constituição Federal. A questão problemática posta pela impetração é saber se a competência do Congresso Nacional será exercida em sessão conjunta ou em separado pelas Casas Legislativas.

Sua argumentação segue com a análise do art. 166, §1º, inc. I da Constituição, segundo a qual que incumbe a uma Comissão Mista Permanente de Deputados e Senadores o exame e a emissão de parecer sobre as contas anuais do Presidente da República, após a análise e o parecer prévio do Tribunal de Contas da União (art. 71, I da CF). Uma análise sistemática dos referidos dispositivos constitucionais permitem-no afirmar que o caráter misto da comissão que analisa as contas anuais do Presidente é forte indicativo de que a sessão que analisa seu trabalho é também conjunta. Aliado ao indicativo da existência da Comissão Mista acima citada, o Min. Luis Roberto Barroso argumenta que, no casos de sessão conjunta, deve ser possível o diálogo e a interlocução entre Deputados e Senadores, muito embora as votações ocorram separadamente para a Câmara dos Deputados e Senado. É que as contas só serão rejeitadas quando ambas as Casas tenham pronunciamento neste sentido, não bastando que uma Casa aprove e a outra rejeite. Ambas deverão rejeitar as contas ou, então, as contas serão consideradas aprovadas.

O Ministro Barroso esclarece que o Poder Legislativo, por meio de atos normativos, durante a vigência da Constituição de 1988, sempre interpretou a exigência de que a Comissão Mista deveria submeter seu parecer à Mesa e ao Plenário do Congresso Nacional, mesmo que sempre modificando as normas. Cita, pois, as Resoluções n. 01/91 do Congresso Nacional, n. 2/95 do Congresso Nacional e n. 01/2001 do Congresso Nacional, todas revogadas e a Resolução n. 01/2006 do Congresso Nacional em vigor.

Entretanto, declara a decisão liminar que há uma prática legislativa “estabelecida no sentido da apreciação das contas anuais do Presidente da República em sessões separadas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Essa prática nunca gerou questionamentos porque, na vigência da Constituição de 1988, não houve um único episódio de rejeição das contas presidenciais”. Referida prática de apreciação em sessões separadas por longo tempo pelo Legislativo permitem-no propor a modulação dos efeitos da decisão destinada a conferir segurança jurídica, mantendo o efeito das votações de contas anuais dos Presidentes anteriores. "Sinaliza" a decisão, no entanto, que as votações futuras das contas anuais do Presidente devem ser feitas em sessão conjunta, ante a clara disposição do Texto Constitucional, não obstante a interpretação divergente do Poder Legislativo.

A decisão liminar levanta alguns problemas: Qual o papel da apreciação conjunta das contas? Como devemos entender o Mandado de Segurança quando está em jogo a regularidade do devido processo legislativo? Qual a função do STF na missão de proteção das condições democráticas de formação da vontade política?

O STF sempre entendeu que a legitimidade para a impetração do Mandado de Segurança destinado a coibir ato ilegal praticado durante a tramitação de processo legislativo é do parlamentar, uma vez que somente este é quem teria direito líquido e certo de participar de um devido processo legislativo constitucional (por exemplo: MS 24.667, Pleno, Min. Carlos Velloso, DJ de 23.04.04). O entendimento jurisprudencial do STF reserva um espaço de discricionariedade para o parlamentar, vale dizer, trata as condições processuais do devido processo legislativo como uma questão quase privada, subjugada ao “direito público subjetivo do parlamentar” e não como a defesa da própria cidadania, do pluralismo no processo de formação da vontade política, conjugando o livre exercício da autonomia pública e privada dos cidadãos[1]. É como se a regularidade do processo legislativo fosse questão de somenos importância; ou como se a possibilidade do questionamento “a posteriori” do seu produto em controle de constitucionalidade resolvesse o problema. No entanto, assim se pode esquecer a própria questão da formação democrática da vontade legislativa, que diz respeito ao núcleo do sistema constitucional; sem falar na perda de tempo e dinheiro públicos, para dizer o mínimo, que acarreta uma tramitação inconstitucional.

O reconhecimento a partir de agora da inconstitucionalidade de uma prática institucional, entretanto tida como válida ao longo dos anos, bem como o seu não questionamento anterior, é o que justificaria, para o Ministro Barroso, o indeferimento da liminar, todavia conferindo-lhe efeitos “ex nunc”. Não obstante, a modulação dos efeitos da decisão, não se pode esquecer, foi realizada por meio de uma ação em que se discute garantia constitucional concreta e não abstrata. Mesmo nas ações de controle concentrado de constitucionalidade, com previsão legal (art. 27 da Lei 9868/99), a possibilidade de modulação dos efeitos temporais levanta sérios questionamentos quanto à sua constitucionalidade,[2] quem dirá, ainda, a modulação de efeitos realizada em ações que discutem direitos concretos. Mais, ainda que a comparação for ao controle concentrado, há que se destacar que a modulação temporal dos efeitos apenas pode acontecer pelo voto de 2/3 dos membros do Tribunal, não por decisão monocrática.

A decisão analisada, pois, não concede a liminar, sob o argumento da segurança jurídica de atos já praticados. Mas o seu consequencialismo provoca a seguinte reflexão: a pretexto da segurança jurídica e da manutenção de atos jurídicos, deve-se sacrificar a própria superioridade da Constituição?

Pelo contrário, em razão da própria existência de práticas legislativas contrárias à Constituição, a liminar deveria ter sido concedida. Se, pois, durante longo tempo as contas foram apreciadas em separado pelas casas do Congresso Nacional, a própria competência deste, estabelecida diretamente pela Constituição, perderia razão de ser.

Entretanto, o consequencialismo utilizado como premissa para a decisão liminar do Ministro Barroso desnatura o código binário do direito, no próprio caráter deontológico da Constituição, gerando risco de perda de integridade do sistema em seus princípios fundamentais. Ao se decidir pelo não deferimento da liminar pleiteada e orientar as consequências da decisão para o futuro, os atos inconstitucionais anteriores permanecem em vigor, representando uma fissura normativa na normatividade da Constituição.

A questão, portanto, não é se a decisão parece “funcionar”, mas o compromisso que o Tribunal deve ter para com a integridade da Constituição. Saídas por vezes mais “fáceis” não contribuem para a construção do edifício constitucional, especialmente quando se está perante casos complexos. Estes exigem decisões comprometidas com a interpretação principiológica do Direito, na sua melhor luz.[3]

Uma decisão judicial, portanto, precisa ter, ao mesmo tempo, os olhos voltados para o passado e para o futuro, em face dos desafios do presente, construindo uma teoria coerente que, entretanto, justifique as práticas adotadas na perspectiva de uma comunidade de princípios. Comunidade de princípios que, construindo um Estado Democrático de Direito, deve levar a sério a integridade da Constituição e as garantias processual-democráticas de formação da vontade política.


Notas e Referências:

[1] CATTONI, Marcelo. Devido processo legislativo. 2ª ed. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2006. p. 51; CARVALHO NETTO, Menelick de. A sanção no procedimento legislativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992.

[2] O STF já enfrentou duas ações contra o art. 27 da lei 9868/99, a ADIn. 2154 e a ADIn. 2258. As duas ações, que tramitam em conjunto, tiveram uma última decisão em 2007, quando o então Relator do caso, Min. Sepúlveda Pertence, proferiu voto pela inconstitucionalidade do dispositivo. Nessa data pediu vista a Min. Cármen Lúcia e até agosto de 2015 não havia qualquer outra movimentação. Para uma crítica quanto à compatibilidade dessa técnica com o modelo constitucional brasileiro ver: CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 172 et seq.; CATTONI, Marcelo. Processo Constitucional. 2a ed. rev. atualiz. e ampliada. BH: Pergamum. p. 319 et seq.

[3] MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: O papel da atividade jurisprudencial na ‘sociedade órfã’. Novos Estudos Sebrap, novembro de 2000; BAHIA, Alexandre. Ingeborg Maus e o Judiciário como superego da sociedade. Revista CEJ, n. 30, p. 10-12, jul./set. 2005; SALCEDO REPOLÊS, María Fernanda. Quem deve ser o guardião da Constituição? Do Poder Moderador ao Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.


 

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