Infernizar a Presidente da República, um ato (i)lícito?

17/11/2015

Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 17/11/2015

Olá a todos!!!

Atenção aos usuários de what´supp e programas conexos: parem de infernizar a Presidente da República; ela pode estar sendo vítima de bullying!

Por mais que essa afirmação possa ser motivo de risos, constrangimentos, ou até mesmo indiferença, o fato é que no dia 06 de novembro de 2015 passamos a contar, em nosso cenário jurídico nacional já tão hiperinflacionado de leis e atos normativos – muitos sem qualquer possibilidade de compreensão, ou explicação [1] –, com a Lei n°. 13.185, em vigor 90 (noventa) dias após a publicação [2], cuja ementa esclarece instituir o “Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying)”, definindo-a como “(...) todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas. [3]

Nesta lei, existem ao menos dois momentos de imprecisão semântica que demandam análise. O primeiro está inserido no artigo 2°, inciso VII, que, ao tratar da caracterização dos atos que configuram a intimidação sistemática, insere a “pilhéria” neste âmbito; o segundo, decerto mais polêmico (e, por assim dizer, fantasioso), encontra-se no artigo 3°, inciso V, incluindo o ato de “infernizar” como ação apta a evidenciar o bullying.

Como se sabe, mesmo o “mito do legislador racional” [4], outrora adotado em momentos de enlevo do Poder Legislativo, não viabiliza a completa apreensão de situações oriundas da complexidade social, cada vez mais rica e plural. Agora, porém, parece que alcançamos um novo nível: o legislador teológico-racional.

O ato de “infernizar”, por exemplo,endossa uma categoria auspiciosa na legislação pátria:de conteúdo teológico.E não está isolada. Em 2012, editou-se, no Município de Ilhéus/BA, a Lei nº 3.589/2011, que ficou conhecida como a "Lei do Pai Nosso", obrigando a reza do pai-nosso anteriormente ao início das aulas em escolas públicas [5]; em Curitiba, há a notícia de projeto de lei proposto pelo vereador José Carlos Chicarelli no sentido de determinar a inclusão da expressão “Deus seja louvado” em placas inaugurais do Município [6].

Leis com conteúdo moral (nos casos citados, com referências religiosas, entre outras possibilidades) não são exatamente novidade; e, tampouco, a utilização de expressões de conteúdo semântico aberto na legislação. E mais, não representam propriamente um problema, quer a nível interpretativo, quer de incidência do texto normativo.

Sob o ponto de vista da teoria da norma, uma forma de solucionar a indefinição semântica seria a concepção pragmática sugerida, entre outros, por Tércio Sampaio Ferraz Júnior [7]; avisão tópica [8], ou até mesmo a concepção estruturante de Friedrich Müller [9]. Fôssemos explorar a questão sob o ponto de vista da teoria das teorias da justiça, poderíamos examinar o âmago da questão sob a óptica de realismos, comunitarismos, jusnaturalismos, libertarismos, utilitarismos, positivismos e diversas outras opções extraídas das mais diversas escolas do pensamento jurídico, tradicionais ou contemporâneas, ao gosto do freguês [10]. Em sendo o caso de perquirir a “solução” da questão pela teoria da interpretação, poderíamos pensar, entre outras opções, em hermenêutica e argumentação (para quem considera esta uma teoria da interpretação). Sob o ponto de vista filosófico, a razão prática poderia prestar um bom auxílio, sem excluir outras possibilidades.

Os termos “pilhéria” e “infernizar” encontram dificuldades nítidas de definição semântica, embora de não tanta problemática no contexto do dia-a-dia do cidadão. Em regra, todos sabem quando estão sendo infernizados, ou objeto de chiste por outrem [11]. O problema é que a sua compreensão, deveras aberta e correlacionada ao conteúdo moral da ação, viabiliza uma miríade de subsunções de premissas fáticas ao texto posto, o que nem sempre é positivo.

Se, por um lado, o “legislador racional” não passa de um mito, por outro flanco cogitar da aplicação do mesmo ideário em campo judicial ou administrativo é de dificuldade ainda mais elevada. Não se está, com isso, postulando algo como tipicidade cerrada em todos os ambientes do direito. Isso nem seria possível; aliás, sobretudo, considerando a abertura axiológica pós-Constituição de 1988. O que não parece adequado, no entanto, é que a legislação delegue tanto em terreno moral que praticamente se torne prescindível. Explicarei melhor.

Se a definição de “infernizar” ou “pilhéria”, por exemplo, podem ser recolhidas do dia-a-dia no qual também se insere o decisor e a esta fonte se pode extrair legitimidade; então, a despeito do estabelecimento de outros requisitos para caracterização do bullying, a definição última da sua caracterização não deixará de ultrapassar o campo moral do aplicador. Antes de definir, a lei sugere que este campo moral seja utilizado e referido para caracterização da conduta proibida.

Este é ponto central. Ao relegar tanto a definição do ilícito para ambientes outros que não sua caracterização objetiva, a legislação permite e de certa forma incentiva a inserção de quaisquer fontes morais em seu âmago de definição acerca do ilícito em si. Esta situação parece boa sob o ponto de vista do não engessamento da lei à realidade dinâmica; mas, por outro enfoque, é deveras perigosa enquanto veículo promotor do comportamento humano e de avaliação deste agir.

Assim, a depender da interpretação que se faça do ato de infernizar, por exemplo, as mais variadas formas e amplitudes do ato, pelos mais diversos meios de propagação, poderão vir a ser admitidos, de modo que a dificuldade comunicacional pode vir a gerar tanto aplicação do veículo normativo ao nível do exagero, como relativizando-o totalmente.

A questão demanda maior digressão, mas, por ora, segue o conselho: cuidado ao infernizar, entre outros, a Presidenta da República; ela pode acabar se sentindo psicologicamente abalada e processá-los, leitores.

Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!


Notas e Referências:

[1] Entre outras leis estranhas: i) Lei Municipal 1840/95 (Barra do Garças, MT), que criou uma reserva para pouso de OVNIs com 5 hectares na serra do Roncador; ii) Lei Municipal 1790/68 (São Luís, MA), que, à exceção do período de carnaval, proibiu o uso de máscaras em festas; iii) Lei municipal 3306/97 (Pouso Alegre, MG) que pune com multa os erros de português, concordância e gramática em outdoors. Estas e outras estranhas leis podem ser conferidas em http://mundoestranho.abril.com.br/materia/quais-sao-as-leis-mais-estranhas-do-brasil. Acesso em 15 novembro de 2015.

[2] Na forma do artigo 8°.

[3] Art.1°, §1°.

[4] NINO, Carlos Santiago. Consideraciones sobre la dogmática jurídica. México: Universidad Autónoma de México, 1989, p. 85-88.

[5] Íntegra da notícia disponível em: http://g1.globo.com/bahia/noticia/2012/04/justica-suspende-efeitos-da-lei-do-pai-nosso-em-ilheus-diz-mp-ba.html. Acesso em 09/08/2012.

[6] Íntegra da notícia pode ser encontrada em http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/vereador-de-curitiba-quer-placas-de-inauguracao-com-a-frase-deus-seja-louvado-0g4ck3g9cshgjzsvxkv7steem. Acesso em 13 novembro de 2015.

[7] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

[8] VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: editora Universidade de Brasília, 1979.

[9] MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. Tradução de Peter Naumann e Eurides Avance de Souza. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2011.

[10] Entre muitos autores que abordam a temática: KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

[11] Para caracterização do bullying, contudo, a lei adiciona alguns requisitos: i) ato de violência física ou psicológica; ii) intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente; iii) praticado por indivíduo ou grupo; iv) contra uma ou mais pessoas; v) com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la; vi) causando dor e angústia à vítima; vii) em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas.


thiago galiano

Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.


Imagem Ilustrativa do Post: Cheer Up Mr Goblin // Foto de: Stuart Richards // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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