"Greve" de policiais militares não deveria ser punida criminalmente, segundo uma interpretação conforme os tratados de direitos humanos

12/03/2017

Por Fernando César Costa Xavier – 12/03/2017

Canais da mídia noticiaram em fevereiro de 2016 que mais de 700 policiais militares do Estado do Espírito Santo haviam sido indiciados por crime de revolta, em decorrência da paralisação das atividades no início daquele mês[1]. O delito de revolta, considerado crime contra a autoridade ou disciplina militar, nos termos parágrafo único do art. 149 do Código Penal Militar - CPM[2], pode resultar em condenação a pena de até 20 anos de detenção, além de expulsão das fileiras da corporação. É um preço alto a pagar ao militar que pretenda protestar por melhores condições de trabalho, e é, certamente, uma vitória de Pirro mesmo se os objetivos dos envolvidos no protesto forem alcançados. No caso dos policiais capixabas, eles tentaram vias indiretas para que os protestos ocorressem sem que fossem diretamente responsabilizados por eles, tendo as suas esposas e familiares civis encabeçado os atos de manifestação em frente aos quartéis. Isso, entretanto, não impediu o indiciamento em massa de centenas de policiais.

São conhecidas, no Brasil, as limitações aos servidores militares quanto ao exercício de alguns direitos que podem ser considerados de proteção social do trabalhador, como o direito de greve e de sindicalização, conforme o regramento do art. 142, IV, da Constituição. A despeito disso, não deixa de ser incômoda a percepção de que uma determinada categoria profissional, em comparação com outras, não tenha assegurados em seu favor, de forma mínima, certos direitos básicos pelos quais possam demonstrar insatisfação para com as más condições de trabalho e a falta de reconhecimento social.

Tomando como ponto de partida esse incômodo, sustenta-se que embora a Constituição e tratados de direitos humanos permitam legislações proibitivas aos direitos à greve, à reunião, à manifestação, ao pensamento e expressão, o resultado havido no caso do Espírito Santo, isto é, a criminalização das condutas dos policiais, não é compatível com regras internacionais de direitos humanos, daí ser necessária uma interpretação conforme essas regras para se afastar a aplicabilidade da norma interna – neste caso, o Código Penal Militar brasileiro. Nesses termos, defende-se aqui não tanto a convencionalidade (compatibilidade com as convenções de direitos humanos) dos atos de protesto por parte dos policiais militares, mas a inconvencionalidade (incompatibilidade) da sua tipificação criminal.

Em primeiro lugar, é necessário perceber que há direitos humanos que podem ao menos ser suscitados no caso de policiais militares que se reúnem para manifestar ou expressar insatisfação para com as condições de trabalho, paralisando as atividades. Pessoas em geral têm o direito humano de se reunir com outras, de se manifestar, de expressar convicções e de grevar (se trabalhadoras), sendo todos esses direitos catalogados em instrumentos internacionais como direitos humanos. Contudo, esses instrumentos internacionais, eles próprios, preveem a possibilidade de limitação (inclusive pela lei interna) ao exercício daqueles direitos, tidos como diretamente relacionados com um mais amplo "direito ao protesto", que poderia ser reivindicado por parte de trabalhadores que intentam reclamar de uma conjuntura social que consideram desfavorável.

Em relação aos direitos acima listados, como se disse, a possibilidade de restrição ao seu exercício já se encontra na norma internacional. O direito de reunião deve ser pacífico e sem armas, podendo a lei interna restringir o seu exercício no interesse da segurança nacional ou da ordem pública, para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades das outras pessoas (art. 15 da Convenção Americana de Direitos Humanos - CADH; e art. 21 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos). O direito à liberdade de manifestação também está sujeita a limitações legais que visem proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas, bem como os direitos e liberdades das outras pessoas (art. 12, 3, da CADH; e art. 18, 3, do PIDCP). O direito à liberdade de pensamento e expressão é suscetível de responsabilização ulterior, conforme a lei nacional, que vise assegurar o respeito aos direitos e à reputação de outras pessoas, bem como a proteção da segurança nacional, da ordem pública, e da saúde e da moral públicas (art. 13, 2, 'a' e 'b', da CADH; e art. 19, 3, 'a' e 'b', do PIDCP). E, enfim, o direito à greve poderá ter o seu exercício condicionado pela lei interna para membros das forças armadas, da polícia, autoridades da administração pública ou outros serviços públicos essenciais (art. 8, 1, 'd', e 2, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; e art. 8, 1, 'b', e 2, do Protocolo de San Salvador).

Vê-se, assim, que os Estados, mesmo aqueles que são partes nas mais importantes convenções internacionais de direitos humanos, têm resguardado para si o direito de criar leis nacionais que regulamentem e/ou condicionem o exercício daqueles direitos humanos, tanto os individuais (direito de reunião, de manifestação e de liberdade de expressão) quanto o social (direito de greve), sem que isso constitua descumprimento às convenções que tenham sido ratificadas ou, por conseguinte, que signifique violação a direitos humanos.

O Brasil, por sua Constituição e suas leis, demonstra ter clara a possibilidade de limitação ao exercício daqueles direitos, bem como do direito de criar normas que condicionem esse exercício, desde que, é claro, visando àqueles valores sociais (segurança nacional, ordem pública, saúde e moralidade públicas, direitos e liberdades de terceiros etc.) referidos nos instrumentos internacionais.

Desse modo, que sejam impedidos os policiais militares brasileiros de grevar, de protestar em conjunto ou de reivindicar direitos coletivamente, portando armas ou não, de forma indisciplinada ou não, não significa que estão tendo direitos humanos desrespeitados. É legítimo que se considere que não houve violação a qualquer direito humano à medida que é legítima a limitação legal imposta pelo Estado. Dito isso, poder-se-ia concluir que a resposta estatal dada aos policiais militares ligados aos protestos no Espírito Santo no início do mês de fevereiro seria consequentemente legítima, ainda que se tenha optado pelo indiciamento criminal. Todavia, a tese aqui levantada é de que há um limite também para as limitações a serem impostas pelo Estado, não podendo ele adotar medidas demasiadamente restritivas contra a liberdade de indivíduos que tenham cometido abusos no exercício dos seus direitos, ainda que apelando o Estado à necessidade de resguardo de valores sociais fundamentais.

A fórmula para se avaliar se é possível interpretar um abuso de direito como um crime, ao menos para este caso, é relativamente simples e se encontra informada naquela máxima latina Extremis malis, extrema remedia ("Para grandes males, grandes remédios"). À vista dela, não se pode interpretar como razoável, ou proporcional, que indivíduos que tenham tentado (ainda que por motivações corporativas) exercer direitos importantes, mas tenham se exacerbado e abusado deles, recebam como resposta do Estado o "remédio extremo", isto é, o direito penal. Isto seria uma interpretação in malam partem do direito aplicável, algo incompatível com a hermenêutica dos tratados de direitos humanos.

Registre-se que o Código Penal Militar brasileiro é um decreto-lei que entrou em vigor no ano de 1969, durante o regime militar por que passou o país, não sendo de estranhar que seja rígido na defesa da autoridade e da hierarquia militares. Nos termos dessa norma, a situação hipotética de servidores militares reunidos, em desobediência a ordens de superiores, ou recusando-as conjuntamente, dentre outras hipóteses[3], é considerado crime de motim, passível de pena de reclusão de quatro a oito anos, com aumento de um terço para os líderes do motim. E, se portando armas os amotinados, o crime passa a ser o de revolta, com pena dobrada.

Em relação aos policiais militares do Espírito Santo, como se mantiveram com as armas da Corporação, quando aquartelados nos batalhões, isso teria sido suficiente para que a conduta fosse considerada a priori como 'revolta'. Contudo, primeiramente, cabe lembrar que o armamento constitui instrumento de trabalho do policial, e, no caso dos militares, é dever deles mantê-lo sempre consigo, em seu poder, sendo punível o desaparecimento, a consunção ou o extravio da arma (art. 265 do CPM). Se não podem descuidar da arma, é bastante provável que, quando queiram protestar, a estejam usando, pois, se assim não fizerem, poderão ser processados criminalmente. E, considerando que a sanção penal não pode ser como Roma, que todos os caminhos levem a ela, deve-se imaginar que um protesto em que militares não portam armas de maneira ostensiva não deveria ser considerado como aquilo que o legislador de 1969 quis coibir. E, mais que isso, da proibição constitucional de o policial militar grevar, não se segue que deve ser considerado "revoltoso" (em sentido criminal) se o fizer.

A interpretação que parece a mais proporcional e de acordo com as convenções de direitos humanos é aquela mais favorável ao individuo. No caso capixaba, seria então imaginar-se que, embora possam ser punidos administrativamente, inclusive com a expulsão da Corporação, a sanção penal representaria um excesso, pelo menos a partir de uma interpretação conforme as convenções.

É evidente que alguém pode alegar que esse remédio extremo representado pela lei penal seria o exigido para o caso, considerando-se o "mal extremo" causado à população da região metropolitana de Vitória, que viveu dias de medo com o aumento vertiginoso da violência e da criminalidade durante a "greve" da polícia militar. No entanto, sem desconsiderar aqui o custo social da paralisação, que foi enorme, há pelos menos dois argumentos que não permitiriam aquele remédio extremo. Um, mais forte, é que a tendência prevalente na política criminal é que a aplicação do direito penal não deve ser motivada pelas eventuais consequências que o delito tenha causado. Outro, mais fraco, baseado na ideia de tratamento isonômico, é que uma greve de policiais civis pode produzir – pelo menos hipoteticamente – um caos social comparável, e nem por isso se imagina que a greve de policiais civis deve ser punida com extremo rigor, mesmo quando abusiva.

Por tudo isso, nestes curtas linhas, pretendeu-se mostrar que embora as convenções de direitos humanos confirmem, no Brasil, a vedação constitucional à greve ou atos de protesto análogos a ela, por parte de policiais militares, disso não decorre que a tipificação destes atos como crime de revolta (conforme o parágrafo único do art. 149 do Código Penal Militar) seja também compatível com aquelas convenções, sendo necessária uma interpretação em conformidade com estas da lei penal militar brasileira, inclusive para afastar a sua aplicação. Sem descartar a possibilidade de sanções administrativas, supõe-se aqui que a aplicação de sanções penais suplementares fere o sentido de proporcionalidade que deve orientar a lei interna na limitação do exercício de direitos humanos voltada à promoção de valores socialmente importantes.

Não se buscou aqui apresentar qualquer razão forte ou decisiva em favor da desmilitarização das polícias estaduais no Brasil, embora essa possibilidade esteja colocada sobre a mesa. Se os policiais militares conseguiriam defender melhor seus interesses profissionais se estivessem compreendidos em uma carreira "não militar", ou não, isso aponta para um outro debate, paralelo ao que aqui se expôs. O que aqui foi exposto tem a ver com os limites da punição de policiais militares manifestantes à luz dos tratados de direitos humanos.

Este texto não permite quaisquer comparações ou deduções diretas quanto ao direito de protesto por parte de militares das Forças Armadas, de como, quando e quanto esse direito pode ser limitado, e punido o seu exercício, em relação a servidores militares dos quadros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. A rigor, as atividades policiais e das Forças Armadas guardam importantes diferenças, e qualquer análise comparativa teria que levar em considerações aspectos substantivos que aqui não foram explorados.


Notas e Referências: 

[1] Cf. em: http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,mais-de-700-pms-do-es-sao-indiciados-por-crime-de-revolta,70001660850

[2] Motim Art. 149. Reunirem-se militares ou assemelhados: I - agindo contra a ordem recebida de superior, ou negando-se a cumpri-la; II - recusando obediência a superior, quando estejam agindo sem ordem ou praticando violência; III - assentindo em recusa conjunta de obediência, ou em resistência ou violência, em comum, contra superior; e IV - ocupando quartel, fortaleza, arsenal, fábrica ou estabelecimento militar, ou dependência de qualquer dêles, hangar, aeródromo ou aeronave, navio ou viatura militar, ou utilizando-se de qualquer daqueles locais ou meios de transporte, para ação militar, ou prática de violência, em desobediência a ordem superior ou em detrimento da ordem ou da disciplina militar [...] Revolta Parágrafo único. Se os agentes estavam armados: Pena - reclusão, de oito a vinte anos, com aumento de um têrço para os cabeças”.

[3] Cf. nota 2, acima.


Fernando César Costa Xavier. Fernando César Costa Xavier é doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasilia (UnB) e professor do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Roraima (UFRR). E-mail: fxavier010@hotmail.com . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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