Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
A privatização do ensino superior não é nenhuma novidade para o Brasil. Ao longo do século XX importantes decisões político-administrativas foram adotadas para viabilizar o estabelecimento da lógica empresarial no interior do ensino, da pesquisa e da extensão.
Em 1965, a pedido do Ministério da Cultura e da Educação, o consultor da UNESCO Rudolph P. Atcon escreveu o parecer “Rumo à reformulação estrutural da universidade brasileira”. No documento, Atcon enfatiza que “(...) um planejamento dirigido à reforma administrativa da universidade brasileira (...) tem que se dirigir ao propósito de implantar um sistema administrativo tipo empresa privada (...) porque é um fato inescapável (...) que uma universidade autônoma é uma grande empresa e não uma repartição pública (ATCON, 1966, p. 82).
As sugestões de Atcon animam o acordo de cooperação firmado entre “United States of America Agency for Internacional Development (USAID)” e o Brasil em 30 de junho de 1966. A USAID, organismo pertencente à administração pública norte-americana, possuía, em geral, o objetivo de fixar a racionalidade derivada do american way of life nos países de capitalismo periférico ao final da 2ª Guerra (PINA, 2008, p. 284). Para alcançar a finalidade traçada, no entanto, a USAID firmou com o MEC o acordo para Assessoria de Planejamento do Ensino Superior, “sugerindo” a implementação da lógica empresarial nas universidades brasileiras.
As “sugestões impostas” pela USAID são validadas a partir da Comissão Meira Matos – grupo de trabalho para implementação da reforma universitária – em 1967, alcançando a inserção no ordenamento jurídico nacional através da entrada em vigor da Lei 5.540/1968, isto é, a contar da Reforma Universitária realizada pelo capitalismo de desenvolvimento dependente que toma a administração do Brasil após o golpe empresarial-militar de 1964.
Sem dar espaço à coincidência os acordos firmados entre a USAID e o MEC delinearam o padrão de crescimento do ensino superior no Brasil, configurando, conforme Boaventura de Sousa Santos, forma embrionária de globalismo localizado, ou seja, “impacto específico nas condições locais das práticas e imperativos transnacionais (2010, p. 438).” A reforma universitária articulada pela USAID favoreceu as instituições privadas de ensino, gerando, entre 1967 e 1994, extraordinária redução das matrículas no ensino público-terciário:
Ano |
Total de matrículas |
Matrículas públicas nº |
Matrículas públicas % |
Matrículas privadas nº |
Matrículas privadas % |
1964 |
142.386 |
87.665 |
61,6 |
54.721 |
38,4 |
1974 |
937.593 |
341.028 |
36,4 |
596.565 |
63,5 |
1984 |
1.399.539 |
571.879 |
40,9 |
827.660 |
59,1 |
1994 |
1.661.034 |
690.450 |
41,6 |
970.584 |
58,4 |
Fonte: (SGUISSARDI, 2008).
O sentido extraído da palavra privatização, portanto, precisa ser ampliado, dando conta de abarcar dentro de si a substancial redução de matrículas em instituições públicas de ensino superior. Da mesma maneira, a submissão das IES públicas à lógica administrativo-mercantil deve ser vista como forma de privatização simbólica e espacial, uma vez que os sentidos que articulam as relações – a produção do conhecimento validado está entre elas – desenvolvidas no espaço público-universitário ficam mais à vontade com a lógica imposta pelo capital econômico. Compreender que a submissão das instituições públicas de ensino superior ao sistema simbólico ocidental-capitalista vem de longa data é vital para leitura do que – por distração – apenas hoje passa a ser visto como privatização ou ameaça à autonomia universitária.
Mas, se há muito a racionalidade privada molda as instituições públicas de ensino superior, por que temer as imposições (neo)liberais?
No texto “a mercadoria educação”, publicado em 13 de outubro de 2017 aqui no Empório, expus, principalmente partir de José Rodrigues (1997, 1997b, 2005, 2007), que a educação pode ser lida por duas chaves: a) para o capital industrial a educação é útil ao desenvolver tecnologias que tornem a produção mais eficaz e menos onerosa. Ao mesmo tempo o capital industrial anseia por novas mercadorias, isto é, pela criação de objetos que satisfaçam ou criem novas necessidades humanas, aumentando, assim, a produção; b) para o capital improdutivo, isto é, para aqueles que multiplicam valor a despeito da produção de objetos e ao desdém da romântica repartição da riqueza, a educação é uma mercadoria em si, ou seja, um objeto que sem qualquer plano ou garantia promete satisfazer a necessidade do consumidor, projetando-o, com base em fração da combalida teoria do capital humano, para trabalhos de maior remuneração e, principalmente, maior prestígio social. A base consensual que transforma a educação em pharmakon (MBEMBE, 2017, p. 7-58), ou seja, em antídoto que carrega dentro de si o veneno, confundindo as noções de morte e vida, reside aqui.
O capital industrial, representado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), cantarolou, ao longo do século XX, que o investimento público em educação, uma espécie de investimento infra-estrutural, promoveria o desenvolvimento social e econômico por meio da qualificação da mão de obra, da melhoria e do correlato aumento da produção, da maximização dos lucros e do marginal crescimento dos salários. O plano educacional da indústria contemplaria, em tese (ideologia), o trabalhador, promovendo, assim, virtuoso e improvável consenso capaz de desfazer a luta de classes. Eis aqui a essência da teoria do capital humano.
O preço cobrado pelo consenso construído pela indústria, todavia, é colocado na construção de um sistema educacional formatado pelas demandas do parque industrial, porquanto, conforme aduz Atcon, consultor da UNESCO para latino-américa, “uma universidade autônoma é uma grande empresa e não uma repartição pública (ATCON, 1966, p. 82).”
A longínqua exigência do capital industrial que pouco a pouco sedimentou espaço na estrutura normativa nacional reside justamente na quebra da autonomia universitária, uma vez que o interesse genuíno é direcionar os recursos econômicos derivados da tributação e a capacidade intelectual construída em pesquisa para o parque industrial ou para o que dele sobrou no Brasil após as décadas de 1980 e 1990. A referida ação, no entanto, não é concretizável sem a privatização do espaço universitário, residindo aqui, precisamente, o enlace entre a visão industrial e a visão financeira da educação.
O crescimento do ensino superior realizado a partir das instituições privadas – iniciado na reforma universitária de 1968 – reduz a arrecadação de tributos por meio da imunidade fiscal e dos benefícios tributários dispensados por meio de Programas como o Universidade para Todos (ProUni). A hipertrofia do setor privado de ensino superior é o gozo dos capitalistas industriais manejado pela mão especulativa dos capitalistas financeiros, uma vez que reduz os repasses públicos ao ensino superior privado, tornando-o cada vez menos autônomo.
No texto “os usos sociais da ciência”, escrito para conferência organizada pelo grupo Sciences en Questions no Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica (INRA), em Paris, Pierre Bourdieu (2005) aborda as bases do conceito de campo, qualificando-o como espaço social autônomo onde agentes e instituições detentores de somas díspares de capital simbólico disputam lugares para a produção dos sentidos válidos. A noção de campo, portanto, integra agentes e instituições a regras linguísticas próprias (capital simbólico), as quais fornecem o poder de refração – autonomia – que constitui o campo em si.
O poder de refração de cada campo é tanto maior quanto mais elevada a sua capacidade de traduzir demandas externas em linguagem própria. Em outros termos: quando o campo econômico postula ferramentas tecnológicas para criação de novas necessidades em forma de mercadoria, o poder de refração do campo científico será maior na medida em que a escolha sobre as suas investigações obedeça a critérios próprios, isto é, cientistas e instituições da ciência, entre elas as universidades, devem se mover com o que Bourdieu chama de interesse desinteressado. Embora a ciência seja provocada a investigar tal ou qual fenômeno, a realização e o método investigativo cabe à ciência, uma vez que em virtude do poder de refração o campo científico deve escolher os seus próprios interesses de investigação e estudo.
Quando o governo que habita a União decide contingenciar – postergar o repasse – as verbas já definidas no orçamento anual para educação ou quando anuncia políticas que restringirão a transferência de recursos públicos aos institutos federais e às instituições públicas de ensino superior a autonomia da universidade é posta xeque-mate, uma vez que o xeque, conforme a longa trajetória de privatização do espaço universitário no Brasil, já havia sido aplicado. Se o Poder Executivo do Estado descrito no Manifesto do Partido Comunista é um comitê para gerir os negócios da burguesia (MARX; ENGELS, 1998, p. 12) é importante lembrar – ressalvadas as gradações – que as suas instituições também o são.
Capital industrial e capital financeiro, portanto, agem juntos para traçar a política nacional de educação superior, a qual, em última análise, coloca as instituições públicas de ensino terciário à disposição do mercado, acabando, pois, com o que havia de autonomia. Esta é a marca dos (neo)liberais na política educacional. O programa “future-se”, lançado na manhã do dia 17 de julho de 2019 pelo governo federal, aposta no fortalecimento da já presente racionalidade de criação de start ups no centro das universidades, atraindo, assim, investidores que reduziriam os gastos com a maldita produção de conhecimento dissociado dos interesses das duas faces do capital econômico. Claro, em troca da propriedade sobre a criação.
A obtenção da autonomia por meio da radicalização do financiamento privado em detrimento do custeio público não passa de encenação ideológica mal acabada que deve o sucesso obtido à paulatina construção do roteiro. Pesquisadores tarimbados e iniciantes terão suas agendas de pesquisa pré-definidas pelas demandas do capital econômico, uma vez que o escasso repasse de recursos públicos, estimados ao teto de 40% de acordo com as experiências comparadas utilizadas para “fundamentar” o Programa “Future-se”, não será suficiente para financiar horas de formação e pesquisa que demonstrem poucas chances de capitalização.
No âmbito das políticas afirmativas o ataque é ainda mais violento. Como manter discentes que não possuem recursos econômicos dentro das instituições de ensino superior sem bolsas de permanência? A saúde mental dos alunos que habitam corpos racializados e não possuem renda para pagar tratamento de saúde mental será custeada, por exemplo, pelas políticas de diversity do Itaú ou dependerão da consciência étnico-racial de Luciano Hang, proprietário das Lojas Havan, mega devedora de tributos que deveriam financiar a assistência social?
Reduzir ainda mais os recursos públicos repassados às instituições estatais de ensino técnico e superior equivale à suspensão do conhecimento produzido por corpos historicamente racializados que há pouquíssimo tempo estavam – com tremendo sucesso – a tornar a universidade universal, ou seja, ambiente fértil para produção do conhecimento crítico capaz de criar sentidos que ponham em prática modelos de socialização descolonizados e desvinculados da lógica euro-ocidental. É verdade que o ensino superior público não era suficientemente crítico. Ou ainda melhor: a verdade é que as instituições públicas são conservadoras, repetindo em suas estruturas burocráticas e espaciais as iniquidades da divisão racial e social do trabalho e da produção de sentidos sobre a realidade imediata. Mesmo assim, o pequeníssimo espaço de autonomia relativa foi capaz de gerar – principalmente após a adoção das políticas afirmativas – pesquisas e ações comprometidas com a superação do modelo eurocêntrico e capitalista. O desconcerto parece ter sido insuportável, mas os resultados provenientes das formulações críticas estão apenas no começo.
Notas e Referências
ATCON, Rudolph. Rumo à reformulação estrutural da universidade brasileira. MEC- Diretoria do Ensino Superior. Rio de Janeiro: 1966.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais das ciências: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: UNESP, 2004.
DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo: por que oito famílias têm mais riqueza do que a metade da população do mundo? São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto do partido comunista. São Paulo: Cortez, 1998.
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Portugal: Antígona, 2017.
PINA, Fabiana. A universidade e o mundo do trabalho. História Social (UNICAMP), v. 14/15, p. 277-287, 2008.
RODRIGUES, José. O moderno príncipe industrial: o pensamento pedagógico da Confederação Nacional da Indústria, 1997. Tese de doutorado defendida junto à Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
RODRIGUES, José. Da teoria do capital humano à empregabilidade: um ensaio sobre as crises do capital e educação brasileira. In: Trabalho & Educação – Revista do Núcleo de Trabalho e Educação – ago/dez – 1997 nº2.
RODRIGUES, José. Nova educação superior brasileira no padrão de acumulação flexível. In. QUARTIERO, Elisa Maria; BIANCHETTI, Lucídio. Educação corporativa mundo do trabalho e do conhecimento: aproximações. Santa Cruz do Sul: EDUNISC; São Paulo: Cortez, 2005. p. 246-273.
RODRIGUES, José. Os empresários e a educação superior. Campinas, SP: Autores Associados, 2007.
RODRIGUES, Matheus. MEC lança 'Future-se', programa para aumentar verba privada no orçamento das federais. In: TV Globo: 2019.
SAMPAIO, Cristiane. MEC lança programa que torna universidade pública dependente de investimento privado. In: Brasil de Fato: Brasília, 17 de julho de 2019.
SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2010.
SGUISSARDI, Valdemar. Modelo de expansão da educação superior no Brasil: predomínio privado/mercantil e desafios para a regulação e a formação universitária. Educação e Sociedade, v. 29/105, p. 991-1022, 2008.
PAULINO, Rosana. A armadilha. In: Do álbum das sombras. Monotipia sobre papel. 54,0 x 39,0 cm. 2008.
Ilustração enviada pelo autor do artigo.