A mercadoria educação - Por Felipe Montiel da Silva

13/10/2017

Segundo José Rodrigues (2007), o relacionamento entre o setor empresarial e a educação pode ser observado através de duas perspectivas: da educação enquanto mercadoria ou da mercadoria enquanto educação. O primeiro conceito, vinculado a um projeto de estimulação do capital estrangeiro no cenário nacional, compreende que a remuneração do capital investido na educação ocorrerá através da venda de produtos educacionais. Desta forma, o objetivo da educação – valorização do capital investido – é alcançada com a venda dos serviços educacionais, tornando-se irrelevante, a partir daí, o retorno que as IES entregarão para o social.

A segunda perspectiva, mercadoria-educação, compreende os serviços educacionais como ferramentas de sofisticação do sistema de produção vigente, de forma que as IES alcançarão seus objetivos ao formarem profissionais aptos ao aprimoramento dos modos de produção estabelecidos. Embora a imagem da educação enquanto insumo pareça conciliar os anseios do setor industrial – qualificação da mão de obra – com as expectativas da base social – acesso à educação, as alterações estruturais do capitalismo conduziram a abertura do mercado brasileiro a partir dos anos 1990, ocasionando a desindustrialização via especialidade da produção nacional. O arrefecimento da indústria diminuiu a demanda educacional do setor produtivo, instaurando-se a harmonia entre a mercadoria-educação e educação-mercadoria.

No Brasil, a criação do mercado educacional é marcada pela edição da Lei 9.394/1996, a qual, em seu 20º artigo, finalmente admitiu a existência de empresas destinadas à prestação de serviços educacionais, diferindo-as das instituições privadas sem fins lucrativos (CARVALHO, 2017, p.101). Embora a legislação tenha impedido que instituições privado-mercantis tivessem acesso a benefícios fiscais, apresentando-se, discursivamente, como ação estatal de rechaço às voracidades do mercado, deve-se levar em consideração que a fase flexível do capitalismo estabeleceu novas formas de ação para o Estado. Neste esquadro, para que a abertura do mercado educacional brasileiro fosse levada a efeito era necessário que as IES privadas alterassem suas formatações sociais, deixando de ostentar a visão franciscana de renúncia ao lucro, para transformarem-se em empresas aptas à captação de recursos via emissão primária de títulos na bolsa de valores (IPO’s) e/ou aportes financeiros via fundos de investimento.

De acordo com os dados extraídos do Censo da Educação Superior entre os anos de 1995 a 2014 (GUIMARÃES; TEIXEIRA; OLIVEIRA, 2017, p.151), as IES públicas contavam com 39,8% do número total de matrículas a nível nacional em 1995, passando, em 2014, para 25,1%. Em contrapartida, o setor privado ostentava 60,2% das matrículas na metade da década de 90, alcançando, em 2014, o percentual de 74,9% das matrículas presenciais e a distância no território nacional. Segundo os estudos supracitados, o crescimento das matrículas públicas no período foi de 179,9%, enquanto o percentual de crescimento das matrículas no setor privado alcançou 453,9%.

O extraordinário aumento apontado acima está vinculado aos processos de aquisição empresarial havidos no segmento privado-mercantil da educação brasileira após a entrada em vigor da LDBEN. Segundo Sguissardi (2008, p. 1004), as IES mercantis nacionais vêm passando por processos de injeção de recursos externos via mercado de capitais e fundos de investimento. Neste cenário, ou seja, munidas dos recursos necessários, as IES brasileiras passam a adquirir outras instituições educacionais de menor porte, optando, em decorrência da gestão corporativa necessária ao aporte de recursos financeiros externos, por faculdades ou centros universitários com dificuldades financeiras. Realizada a aquisição, a IES adquirente – plena e estruturalmente inserida na lógica mercantil – imprime na entidade educacional adquirida a ideologia gerencial da atual fase do capitalismo, espremendo a subjetividade dos trabalhadores através da normalização da cultura da concorrência interna (CUTRIM; LÉDA; p. 676) e majorando os lucros através da instauração do conceito de gestão corporativa.

Plenamente transformada em mercadoria, a educação responde aos anseios do setor empresarial – industrial e de serviços – ao naturalizar as violências e vulnerabilidades propiciadas pelo atual estágio do capitalismo, (con)formando, a cada semestre, cidadãos satisfeitos em serem integrados ao social na condição de consumidores. Integração ao etos consumista. Promessa vazia. O discurso que vinculava a existência de postos de trabalho ociosos ou a obtenção de melhores empregos à (des)qualificação da mão de obra brasileira ruiu, mostrando que as IES entregam mais diplomas que o mercado pretende empregar. Desempregados ou no exercício de trabalhos cada vez mais precários, os indivíduos graduados pelo padrão mercadológico de ensino têm dificuldades em encontrar a materialização do viés negativo da cidadania, indicando falhas grotescas na alocação dos recursos públicos.       

Mesmo assim, ou seja, na presença de indicadores que evidenciam a contraposição entre os princípios da educação brasileira e a realidade experimentada pelo ensino superior privado, surgiu, através da Lei nº 11.096/2005, o Programa Universidade para Todos. Em notável alinhamento com o artigo 2º da LDBEN, o PROUNI pretende fortalecer a cidadania através da democratização do acesso ao ensino superior por via das universidades privadas com ou sem fins lucrativos. Neste contexto, embora o Estado tenha “refreado” os gastos – investimentos – no ensino público, as IES privado-mercantis que aderem ao PROUNI passam a receber recursos do fundo público através da renúncia estatal na coleta de impostos, oportunizando o retorno de grande parcela dos benefícios fiscais que estas IES tiveram que abrir mão para tornarem-se sociedades empresariais. Mais uma vez, pode-se perceber que as políticas de controle dos gastos públicos impõem recessão e cortes às políticas públicas e prestações sociais, mantendo, através de benefícios fiscais, alto investimento no setor privado.  

Portanto, mesmo que o Programa Universidade para Todos pareça imune a críticas, deve-se analisar o retorno social entregue à coletividade, sob o risco concreto da utilização das desigualdades sociais como meio de reprodução do capital.         

CARVALHO, Cristina Helena Almeida de. EDUCAÇÃO SUPERIOR PRIVADA NO BRASIL: CONCENTRAÇÃO DE MERCADO E FINANCEIRIZAÇÃO EM SIMBIOSE. In: Vera Lúcia Jacob Chaves; Nelson Cardoso Amaral. (Org.). POLÍTICAS DE FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NUM CONTEXTO DE CRISE. 1ed.Campinas: Mercado das Letras, 2017, v., p. 99-118.

CUTRIM, Rafaelle Sanches; LÉDA, Denise Bessa. A financeirização do ensino superior privado e suas repercussões na dinâmica prazer e sofrimento do trabalhador docente. XXIV Seminário Nacional UNIVERSITAS/BR – Dívida Pública e Educação Superior no Brasil. Disponível em: http://www.ppe.uem.br/xxivuniversitas/anais/trabalhos/Anais_textos_completos.pdf

GUIMARÃES, André Rodrigues; TEIXEIRA, Elenilda Alves; OLIVEIRA, Milena da Paixão. O PROUNI E A EXPANSÃO PRIVADA DA EDUCAÇÃO SUPERIOR BRASILEIRA: análise do grupo de trabalho política de educação superior da ANPED (2005-2015). In. CHAVES, Vera Lúcia Jacob; AMARAL, Nelson Cardoso (Org). POLÍTICAS DE FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NUM CONTEXTO DE CRISE. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2017, v., p. 147-166.

RODRIGUES, José. OS EMPRESÁRIOS E A EDUCAÇÃO SUPERIOR. Campinas, SP. Autores Associados, 2007.

 

SGUISSARDI, V.. MODELO DE EXPANSÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL: predomínio privado/mercantil e desafios para a regulação e a formação universitária. Educação e Sociedade, v. 29/105, p. 991-1022, 2008.

Felipe Montiel da Silva é Graduado em Direito pela Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul no ano de 2015. Membro do grupo de pesquisa Teorias Sociais do Direito. E-mail: montielfs@gmail.com

 

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Brasil, Brasília, DF. 03/03/2004. Manifestantes mostram carteira de trabalho durante manifestação dos funcionários de bingos, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, pedindo a reabertura das casas de bingo no Brasil, após assinatura de medida provisória proibindo o jogo no Pais. - Crédito:JOEDSON ALVES/ESTADÃO CONTEÚDO/AE/Codigo imagem:107754

 

Disponível em: http://agenciaaraguaia.com/desemprego-atinge-o-recorde-de-13-milhoes-de-pessoas-no-brasil/

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