Por Luiza Miranda Heinisch e Carolina Lacerda Machado - 09/04/2017
Com a introdução da lei do feminicídio, através da Lei nº 13.104 de 09 de Março de 2015, houve a alteração do art. 121 do Código Penal, incluindo o feminicídio nas circunstâncias qualificadoras do crime de homicídio, mais especificadamente no § 2º, inciso VI do referido artigo, bem como no rol dos crimes hediondos, previstos pelo art. 1º, inciso I, da Lei nº 8.072 de 25 de Julho de 1990.
Inicialmente, cabe destacar que não obstante a construção social do gênero no patriarcado (dicotomia masculino-feminino) encontre-se em desconstrução, esta continua operando no sistema de justiça penal, conforme indica a criminologia feminista. A partir do entendimento de Vera de Andrade (2012, p. 141), isso implica falar em espaços, papeis e estereótipos, e nesse sentido, afirmar que o estereótipo da mulher no viés histórico-criminal e social sempre se aproximou da vitimização.
É evidente que podemos identificar historicamente um controle da sexualidade, de modo que hierarquicamente os homens, a partir da lógica do poder pátrio romano, experimentaram a posição de dominação absoluta em relação às mulheres, em razão da condição de “ser mulher”, sendo possível identificar uma série de violências que foram sendo “naturalizadas” e até reafirmadas pela sociedade e pelo próprio poder estatal ao longo do tempo. Destarte, entendemos que falar em feminicídio é adentrar na instância máxima do ciclo de violência contra a mulher, consolidada eminentemente pela dominação sexual que se torna naturalizada pela legitimação patriarcal da hierarquia masculina.
Nesse sentido, a partir do paradigma de violência de gênero e de seu caráter sócio-cultural, é possível identificar o papel que a mulher adquire ao ser fragilizada por meio de certos atos em razão do seu sexo feminino. Essa realidade de violações à condição feminina é resultado da objetificação da mulher como propriedade do homem, bem como da anulação de sua autonomia, sendo subjugada pelo próprio companheiro em suas relações afetivas, adentrando em um ciclo de violência muitas vezes infinito.
Compulsando os artigos que integram a lei do feminicídio, é possível depreender que a tipicidade do feminicídio inclui os elementos do tipo comum (homicídio) “matar alguém”, qualificado pela circunstância de tais elementos terem se configurado “contra a mulher por razões da condição do sexo feminino”, conforme enuncia o § 2º, inciso VI, do art. 121 do Código Penal, uma vez que alterado pela lei 13.104/15.
As modificações trazidas pela lei do feminicídio seguem no decorrer do art. 121, com a inclusão do § 2o-A, elucidando o que seriam “razões de condição de sexo feminino”, quando definidas como parte da elementar do crime, quais sejam: quando o delito se operar por violência doméstica e familiar, ou ainda por menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
A maior proteção à mulher conferida por essa modificação legislativa justifica-se pelo paradigma de gênero perpetuado ao longo do tempo, de modo a se ceder uma maior tutela à mulher pelo fato de ser o sexo “mais frágil”, tanto em relação a sua inferioridade física, quanto econômica e sexual, por força da subjugação histórico-cultural que traduz essa fragilidade da condição feminina. Destarte, o fato de existir uma tutela diferenciada para mulher quando assassinada em razão de seu sexo feminino, vincula-se a ideia da opressão constante da condição de ser mulher nos diversos prismas (culturais, políticos, sociais...), nos quais ela é inferiorizada. Esta tutela especial é uma espécie de tentativa de efetivação e continuidade do princípio da igualdade disposto na nossa normativa constitucional, a fim de construir uma igualdade formal em razão da opressão sexual de gênero, de modo a tratar “desigualmente os desiguais”, conforme indica Guilherme de Souza Nucci (2016, p. 618).
Para analisar os elementos que compõem a tipicidade do delito de feminicídio é necessário articular o disposto no parágrafo 2º, inciso VI, do art. 121, com o previsto no parágrafo 2º-A do mesmo artigo. Nesse sentido, a conduta de matar, ou seja, tirar a vida, da mulher, por razões da sua condição de mulher, seria tipificada formalmente como delito de feminicídio, quando fosse executado por violência doméstica ou familiar, ou pela própria discriminação ou menosprezo pelo fato de ser mulher.
A motivação do ódio/desprezo contra mulheres caracterizadora do feminicídio importa no campo simbólico, a destruição da identidade da vítima e de sua condição de mulher, de modo que nem todo o assassinato cometido contra mulheres (“femicídio” - morte de uma mulher) vai ser necessariamente um feminicídio, pois é necessária a presença do elemento constante no tipo penal deste crime, qual seja, “por razões da condição do sexo feminino”.
Não obstante haja um debate doutrinário-jurisprudencial acerca do alcance desse elemento, de modo que para alguns torna-se insuficiente a definição objetivamente trazida pela lei, entende-se que o estado de vulnerabilidade da mulher em razão da submissão de seu sexo é indispensável para a configuração da conduta delitiva.
Assim, pode-se falar, por exemplo, que quando um marido mata a mulher em razão do divórcio ou da traição, pela condição de subjugação sexual identificada, configurar-se-ia feminicídio, mas, por outro lado, por exemplo, se alguém matasse a mulher por ela não ter pago uma dívida, não se tem elementos suficientes para configurar a qualificadora suscitada, de modo que se exige a manifesta inferiorização da condição feminina a partir dos elementos da conduta delitiva do agente para que se enquadre tipicamente no delito de feminicídio.
Nesse sentido, pode-se aferir que o feminicídio não se confunde com violência praticada no âmbito familiar que não tenha sido baseada no próprio gênero. Assim, a conduta típica do feminicídio é caracterizada por esse menosprezo da figura da mulher na sociedade. O conceito e distinção do sexo em si procura esclarecer o que seria essa relação entre homens e mulheres, de modo que há uma ideia fixa sobre o conceito da mulher na ótica social. Por um lado, a mulher como é representada na sociedade em si, como figura; e por outro, refere-se a toda uma categoria social com panorama histórico de sujeitos de relações sociais.
Logo, consideramos que o conceito de gênero em si, vai trazer a definição das identidades feminina e masculina, como base para a existência de papéis sociais distintos e hierárquicos. Nesse viés, fica mais claro notar que se torna fácil, diante de tal situação de hierarquia já naturalizada pela sociedade, a subordinação da figura da mulher, culminando na adequação dos elementos necessários para tipificação do feminicídio.
A tipicidade do feminicídio revela a realidade de penalização simbólica da violência de gênero perpetuada em nossa sociedade, de modo que a partir da análise dos elementos do tipo acima expostos pode-se depreender que tal normativa exprime a faceta de um simbolismo legislativo que busca uma legitimação social quando cria um tipo autônomo próprio do homicídio motivado por razões de ódio, desprezo e discriminação à mulher.
Assim, quando cometido um crime contra a vida da mulher, por razões peculiares relacionadas ao sexo feminino, ao se introduzir a qualificadora do feminicídio no tipo penal do homicídio simples, continua-se tutelando o bem jurídico, vida, mas acresce-se a isso a contenção da violência contra a mulher, de maneira simbólica. Não se pode olvidar que embora tal penalização atenda a vontade social, na promessa rasa de combater a criminalidade em razão do sexo feminino, é cediço que o sistema penal dispõe de uma (des) legitimação, de modo que não consegue atingir efetivamente a finalidade de combate total a essas violências contra a mulher, de sorte que a consolidação da normal penal de feminicídio torna-se estritamente representativa.
É evidente que a criminalização do homicídio praticado contra a mulher em razão de condições do sexo feminino veio para atender demandas sérias e necessárias relacionadas ao ponto máximo do ciclo de violência contra a mulher. No entanto, não obstante a realidade feminina em virtude da violência deva receber uma resposta efetiva e legítima do sistema penal, é evidente que a penalização de tal conduta mais gera uma sensação de impunidade do que sana, de fato, a criminalidade desta violência, que é realidade de muitas mulheres em nosso país.
Como qualificadora, a pena do crime de feminicídio se manteve a mesma que as demais (reclusão, de doze a trinta anos), havendo um acréscimo de sanção penal em razão do crime de homicídio simples (caput do art. 121 do Código de Penal). Vale ressaltar que a lei 13.104/15 incluiu no rol de crimes hediondos o feminicídio, conjuntamente com as demais formas de homicídio qualificado. Nesse sentido, como crime hediondo, constrói-se um tratamento mais gravoso se comparado aos demais crimes (para progressão de pena, livramento condicional e etc) de modo que o desvalor da conduta é mitigado uma vez que se atenda a tipicidade exigida na lei penal.
No mais, a lei do feminicídio prevê a inclusão do parágrafo 7º no art. 121 do Código Penal, de modo a introduzir certas causas de aumento de pena, na proporção de 1/3 (um terço) até a metade. Entre estas, inicialmente no inciso I deste dispositivo, prevê-se o aumento de pena quando o feminicídio é praticado durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto, que direciona o enfoque à maior fragilidade da mulher gestante ou parturiente, bem como à proteção do ser em gestação. Para caracterização desta causa, para Nucci (2016, p. 621), torna-se essencial a presença do dolo do agente, de sorte que o causador do delito saiba da condição que se encontra a mulher para que possa ter sua pena majorada.
A segunda causa de aumento de pena, prevista no inciso II, diz respeito à condição da vítima e a sua possibilidade de defesa, de modo que quando o crime é cometido contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência, há certa vulnerabilidade da vítima que deve ser conhecida pelo agente infrator que justifica a majoração da pena pela causa de aumento.
Quando o delito é cometido na presença de descendente ou de ascendente da vítima, com a visualização do momento da conduta lesiva, geradora da morte, o sofrimento do parente do sujeito passivo importa também em causa de aumento de pena, conforme se extrai do inciso III do dispositivo supracitado.
Ademais, é importante, ainda, destacar que quem pode realizar a conduta em razão da vulnerabilidade da vítima no feminicídio, ou seja, ser o sujeito ativo do delito, pode ser tanto a figura masculina como uma figura feminina, a depender das circunstâncias do caso concreto. O que argumenta-se nesse ponto é que a figura da mulher que eventualmente é vítima da conduta tipificada como feminicídio, pode ser vítima de tanto um agente ativo do mesmo sexo, quanto de um agente ativo do sexo oposto, sendo a conduta caracterizada em si, pela conduta de dominação em função da submissão aparente do sexo feminino.
É possível argumentar a partir da análise acima, que apesar de alguma divergência de opiniões doutrinárias, o crime de feminicídio tem como vítima, necessariamente, a mulher em razão do seu sexo. Nessa mesma linha, em análise a jurisprudência do STJ é possível depreender que o sujeito ativo do crime pode ser tanto o homem como a mulher, desde que esteja presente o estado de vulnerabilidade caracterizado por uma relação de poder e submissão. (HC 277.561-AL, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 6/11/2014). Ademais, não podemos admitir o feminicídio quando a vítima é um homem (ainda que de orientação sexual distinta da sua qualidade masculina).
Nesse viés, tanto a Lei do Feminicídio como a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) fazem referência à figura da mulher como vítima. Entretanto, a Lei Maria da Penha traz um avanço legislativo além de jurisprudencial e de compreensão doutrinária, uma vez que ao fazer referência ao gênero na norma torna-se possível a ampliação da aplicação da Lei Maria da Penha para transexuais, bem como em relações afetivas homossexuais, buscando, independentemente, a proteção em face ao fenômeno da violência doméstica nessas relações.
Nessa lógica, a analogia nesta lei estende-se para que se tenha a proteção integral das relações domésticas abusivas. Como exemplo do que se traz neste parágrafo há a aplicação da Lei Maria da Penha para transexual masculino reconhecida na decisão oriunda da 1ª Vara Criminal da Comarca de Anápolis, juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães (proc. N. 201103873908, TJGO). Assim, a analogia torna-se necessária para aplicação da Lei Maria da Penha, independente de orientação sexual na qual se posiciona um dos agentes da relação. Num panorama geral, a aplicação de tal analogia irá depender do posicionamento jurisprudencial; alguns concordam com a aplicação e outros não a reconhecem. Por exemplo, o TJRJ entendeu não haver constrangimento legal em tratar do caso de agressão física do filho que causou lesões corporais ao seu genitor. Já o Ministério Público do Rio de Janeiro se posicionou no sentido de que a Lei Maria da Penha deveria abranger somente uma figura feminina.
De acordo ainda com o Ministro Jorge Mussi, relator do processo citado acima, a Lei Maria da Penha foi inserida no ordenamento jurídico para tutelar as desigualdades encontradas nas relações domésticas, e embora tenha dado enfoque à mulher, na maioria das vezes em desvantagem física frente ao homem, não se esqueceu dos demais agentes dessas relações que também se encontram em situação de vulnerabilidade, como os portadores de deficiência, a exemplo do § 11 do artigo 129 do Código Penal, também alterado pela Lei n. 11.340/06. A vice-presidente do IBDFAM, Maria Berenice Dias também acredita que a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) representa uma manifestação ampliativa da lei que produziu uma verdadeira revolução no combate à violência doméstica.
É possível, através da análise jurisprudencial, constatar o avanço de compreensão sobre vítimas de crimes domésticos no país, o que marca um grande avanço no país na proteção das relações domésticas. Numa breve retrospectiva histórica do contexto de surgimento da Lei Maria da Penha, o marido de Maria da Penha protagonizou o exemplo mais acabado da permissividade das leis, da debilidade do sistema judiciário e da força do machismo. No desenrolar da história, Maria da Penha diante da inércia das instâncias brasileiras foi obrigada a recorrer ao Direito Internacional para ter tutelados seus direitos fundamentais. E mais, só recorreu à Corte Interamericana de Direitos Humanos porque seu livro sobre todo o histórico de abusos do marido havia chegado ao conhecimento de entidades que defendiam os direitos humanos e sugeriram, então, que ela buscasse a Corte. À época, entre as denúncias de violência doméstica apresentadas nos tribunais do país, insignificantes 2% (dois por cento) resultavam em condenação.
O Brasil ignorou os pedidos de esclarecimento vindos da Comunidade Internacional, especificadamente de Washington. Assim, diante do silêncio do país, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos decidiu em 2001 fazer uma condenação pública, para que o mundo tomasse conhecimento dos fatos. Acusou o país de covardemente fechar os olhos à violência contra suas cidadãs. Foi uma vergonha internacional. Só então o governo começou a tomar medidas efetivas por uma lei contra a violência doméstica. A Lei 11.340/06, dessa forma, ganhou o apelido de Lei Maria da Penha — justa homenagem à mulher que optou por não aceitar a inércia das instituições e mudou o destino das brasileiras para sempre.
Concluímos que os contornos da lei 13.104/2015 demonstram que a tipificação do feminicídio não avançou tanto na questão de gênero quanto a normativa da Lei Maria da Penha, através da repercussão nas decisões judiciárias. É evidente que o feminicídio, através dos elementos do tipo, limita a discricionariedade do intérprete, ao enunciar que a tipicidade se dará quando for: “crime contra a mulher em razão da condição de ser do sexo feminino”. Do mesmo modo, entendemos que o feminicídio seja um tipo penal necessário, vez que traz à tona uma realidade muitas vezes silenciosa de violência e opressão que sofre o público feminino, mas é de se questionar se o direito penal é a ferramenta ideal para tentar transformar esse cenário, visto sua deslegitimação e ineficácia constante.
Notas e Referências:
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des) ilusão. Rio de Janeiro; Revan, 2012, p. 125-157
BRASIL. Código Penal (Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, com suas posteriores alterações). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 14 nov. 2016
BRASIL. Lei 13.104/2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/lei/L13104.htm. Acesso em 14 nov. 2016
CAVALCANTI, Luiz Alberto. O crime de feminicídio e a função simbólica do Direito Penal: Uma lei fadada ao fracasso –. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/o-crime-de-feminicidio-e-a-funcao-simbolica-do-direito-penal-uma-lei-fadada-ao-fracasso-por-luiz-alberto-cavalcanti/>. Acesso em: 14 nov. 2016.
FEDERAL, Senado; WESTIN, Ricardo. Brasil só criou Lei Maria da Penha após sofrer constrangimento internacional. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/jornal/edicoes/especiais/2013/07/04/brasil-so-criou-lei-maria-da-penha-apos-sofrer-constrangimento-internacional>. Acesso em: 14 nov. 2016.
IBDFAM. Lei Maria da Penha pode ser aplicada a homens. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/noticias/4894/+Lei+Maria+da+Penha+pode+ser+aplicada+a+homens>. Acesso em: 14 nov. 2016.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 12ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p, 613-623.
. . Luiza Miranda Heinisch é Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina e atualmente desenvolve pesquisa em Direito Penal e Processo Penal. . .
. . Carolina Lacerda Machado é Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina e atualmente é membro do grupo de pesquisa em Direito Internacional Ius Gentium - UFSC/CNPq.. .
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