Entre privilégios e ilusões – Por André Sampaio

02/04/2017

O cenário atual da conjuntura político-jurídica brasileira me lembra muito uma casa em frangalhos: pisos rachados, canos estourados, infiltração, vazamento... daquelas que nos fazem questionar profundamente se a solução não seria comprar outra.

A notícia ruim é que essa não é, nesse caso, uma opção viável; a boa é que os problemas são tão generalizados que é impossível se concentrar em todos simultaneamente, de modo que sempre enxergamos apenas determinada parcela, poupando-nos do choque do cenário totalizante. É como um navegante com um sendero no meio de um mar banhado pela noite, a luz emanada do objeto é fraca e só clareia uma parte relativamente muito pequena de seu campo de visão.

Mas, retornando aos problemas que povoam o nosso sistema jurídico, uma pergunta inicial se apresenta: quem segura o sendero?

Trata-se de pergunta complexa, que demanda mais elementos de análise do que disponho, mas não há como negar o importante papel dos media nessa equação. Não me refiro a nenhum tipo de “teoria da conspiração”, necessariamente. Não é bem o caso de proprietários de grandes redes de comunicação que se articulam em prol de evidenciar determinado conjunto de problemas, até porque se fosse, como explicar o grande clamor pelo fim do foro por prerrogativa de função que nos acomete?

Aqui os media operam em uma função que não seria de todo mau chamar, dentro de certos limites, de democrática: eles funcionam como uma espécie de termômetro social dos anseios em evidência. Após uma sequência que abrange o “Mensalão” e a atual operação “Lava Jato”, sem mencionar os inúmeros casos diuturnamente noticiados envolvendo parlamentares, seria difícil impedir a irrupção da pauta em questão, sobretudo quando surge um juiz messiânico de primeiro grau que, em sua verve policial, faz crer que se todos os políticos fossem julgados por ele tudo seria diferente...

Mas seria de fato o foro por prerrogativa de função (ou privilegiado, como preferem alguns) a questão? Aliás, seria ele ao menos uma das questões? Como seu nome “oficial” sugere, o foro diferenciado existe em razão da função e não, obviamente, da pessoa. Caso assim não o fosse, se estaria atribuindo, em tese, maior proteção jurídica a ocupantes de funções mais relevantes, já que se presume que um juiz de instância superior tenha, no mínimo, mais experiência do que um de instância inferior, o que pode ser compreendido como mais “conhecimento”, eventualmente.

O que se pode apontar, de início, é que em teoria o foro por prerrogativa de função é uma desvantagem, mas na prática opera em prol da morosidade processual, o que muitas vezes resulta em prescrição para eventuais delitos. E por que “desvantagem”? Porque o detentor deste tipo de foro tem seu processo iniciado já em instância superior (em relação aos demais), ou seja, tem acesso a uma via recursal mais estreita.

Tomando por exemplo aqueles que têm como foro o STF, eles são julgados por um tribunal colegiado praticamente sem direito sequer ao duplo grau de jurisdição – lembram do escarcéu acerca do manejo dos “embargos infringentes” no caso Mensalão? Assim, se ignorássemos o fator “letargia processual”, teríamos o mais célere e (teoricamente) capacitado julgamento, nesse caso!

Ocorre que, ao sairmos do laboratório processual, percebemos uma proporção absurda de processos por juiz, motivo pelo qual a morosidade, que já coloniza a primeira instância, tem nos tribunais superiores o campo fértil para se assentar. Tal lentidão inelutavelmente contribui para a prescrição, de modo que para a sociedade a imagem que fica é a do que se famigeradamente se chama de “impunidade”. Ademais a presunção de maior capacidade/isenção dos juízes de instâncias superiores é relativa, visto que a ascensão na carreira demanda menos análise qualitativa do que capital político

Assim, sua extinção inaugura o próximo “agora vai”, da justiça brasileira, o “plot twist” que vai fazer com que o pessoal do White collar finalmente seja punido, passando o Brasil a limpo, encerrando nossa história de desvios e corrupção e inaugurando a nova era de prosperidade política! Não fosse por um “pequeno” detalhe: e quando o sendero iluminar a corrupção do próprio Judiciário?

Estamos tão acostumados com as notícias de corrupção advindas do Legislativo e do Executivo que ignoramos o que ocorre nas filigranas do Judiciário. Ainda que se possa argumentar que se trata de Poder que lida menos com a verba pública, não podemos olvidar de que talvez seja o poder que mais lide com finanças em geral! Basta estimarmos os valores que diariamente são cobrados através do Judiciário. Ao imaginarmos que apenas uma pequena parcela dos juízes são corruptos – perspectiva bastante otimista – logo perceberemos que a quantia de dinheiro desviada pode facilmente superar a dos demais Poderes.

Se ampliarmos nosso espectro de entendimento de “corrupção” e nos afastarmos de sua manifestação mais simplória, compreenderemos que a “justiça” pode ser trocada por “fraternidade” – a vetusta tradição brasileira do “eu conheço um cara lá de dentro...” – e por capital político, o que pode ser fatal para um modelo sem foro por prerrogativa de função. Vale frisar que ainda que o juiz de primeiro grau tenha entrado por concurso, e não por indicação política, se ele ambicionar alguma ascensão na carreira vai precisar ingressar no jogo político!

O Ministro Barroso sugeriu, recentemente, a criação de um órgão especial de primeiro grau, colegiado, para julgar os que hoje possuem foro especial. A proposta tem vantagens evidentes: a formação colegiada favorece o compartilhamento da responsabilidade e aumenta a fiscalização. Porém, por outro lado, faz surgir a possibilidade de “pedidos de vista” que contribuem para uma maior morosidade, incrementando as possibilidades de corrupção. Ademais, de que adiantaria retirar-lhes o foro privilegiado se com seus advogados conseguirem recorrer até o STF e lá seu recurso poderiam, da mesma forma, estacionar por anos?

O problema está bem mais embaixo, é estrutural e transcende o umbral do Judiciário, o que não quer dizer que o imunize de seus próprios defeitos. É necessário parar com o imediatismo da solução do problema do momento e repensar o sistema como um todo, incluindo suas relações exógenas com os sistemas político, econômico e midiático.

É obviamente mais fácil apelarmos à messianização: “Sem foro é Moro!”, gritam alguns, então derrubemos os foros para que outros “Moros” possam moralizar o Brasil! Mas esquece-se de um detalhe: feliz ou infelizmente não há outros “Moros”, ele é único, com todas as suas qualidades e defeitos, qualquer outro juiz não conduzirá o processo do mesmo jeito, independentemente de qualquer juízo de valor sobre sua condução. Ou seja, confiar na “bondade dos bons” é ignorar o fato de que o árduo processo seletivo para se tornar um juiz consegue apreciar muito menos o caráter do que a memória.

Eis mais um traço de nosso caldo cultural: vou “terceirizar”, para usar uma expressão que terrivelmente entrou em moda, a responsabilidade, alguém vai resolver o problema por mim, virá um punhado de juízes bem intencionados que conduzirá o povo brasileiro a Shangri-La, basta derrubar o foro privilegiado.

Trata-se de perspectiva que nos isenta de responsabilidade, tanto na escolha – risivelmente restrita – de nossos representantes políticos, como no próprio agir diário, com todas as nossas corruptelas aparentemente inofensivas, mas que alimentam uma máquina muito maior e incontrolável, da qual negamos veementemente a paternidade.

É difícil combater a corrupção com meras regras porque aqui a corrupção é a regra! Precisamos desconstruí-la não pela lei, mas pela norma, ou seja, é necessário que os pequenos desvios que carinhosamente colocamos no diminutivo para “neutralizar” seus efeitos sejam vistos como odiosos, anormais, e, sim, isso não é da noite para o dia.

Enquanto isso esperamos a “nossa pátria mãe ser subtraída em tenebrosas transações”? Óbvio que não. O próprio sistema judicial precisa ser repensado, mas não por meio de mudanças pontuais, e sim conjunturais. O fim do foro poderá, claro, ser um dos pontos a ser alterado, mas não podemos nos iludir achando que basta tapar uma ou duas goteiras que a casa se encontrará perfeitamente habitável. Talvez ela já tenha sido condenada e cremos que enquanto ignorarmos isso poderemos ocupá-la, como o famoso personagem de desenho animado que anda sobre o ar até perceber que o que se encontra sob seus pés não é o chão...


Imagem Ilustrativa do Post: SBroken Glass / Glasbruch // Foto de: Christian Schnettelker // Sem alterações

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