Entre massacres e chacinas a resposta é um plano

16/01/2017

Por Soraia da Rosa Mendes – 16/01/2017

Como de regra ocorre após tragédias (sejam elas obra do acaso, ou anunciadas), logo na sequência dos massacres ocorridos em Manaus e Roraima ocupantes de cargos no Governo apressaram-se em responder aos inevitáveis questionamentos públicos mediante planos de ações que até então, segundo eles, não haviam sido “pensadas”. O Plano Nacional de Segurança Pública anunciado pelo Executivo federal está neste campo: o da tentativa de uma resposta, supostamente no todo inovadora, e capaz de trazer luz onde havia (e há) trevas.

As críticas ao Plano são inúmeras, a começar pela autodesignação relativa à segurança pública muito significativa da falta de repertório de quem compreende o sistema carcerário, e mesmo o próprio sistema de justiça criminal, como aspectos de uma política de necessária repressão. Contudo, não pode ser outro o ponto de início de uma análise do Plano que não a promessa de “redução do número de homicídios e feminicídios”, com o incremento de policiamento ostensivo e mais armas nas ruas, anunciada justamente como o primeiro dos grandes eixos da estratégia federal.

Realmente falta vocabulário aos[1] gestores políticos brasileiros. Tal a incompreensão de que homicídios e feminicídios jamais podem ser postos dentro de uma mesma categoria. Tratam-se de formas de violência letal que partem de seletividades distintas.

A morte de uma mulher pelo fato de ser mulher decorre de uma seletividade própria de um sistema patriarcal que tem na subjugação física, moral, psicológica e patrimonial seu ponto máximo de sustentação. O feminicídio é o ápice da barbárie de gênero.

Não se combate feminicídios com a apresentação de uma listagem de cursos e mapeamentos (muitos deles constantes de propostas anteriores) que culminam na expressão chave: redução da impunidade[2]. Tampouco com uma coletânea de propostas bem intencionadas que dizem respeito muito pouco, ou em nada, com a responsabilidade do Executivo Federal[3] que, mesmo diante dos alarmantes números relativos à violência contra a mulher no Brasil considerou dispensável a existência da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres – SPM, hoje relegada a alguma escrivaninha em uma sala do Ministério da Justiça.

Não esperavam os governantes a chacina de Campinas, porque desconhecem as violências diárias sofridas pelas brasileiras. E não querem a fundo conhece-las.

De outro lado, também faltou ao pensador do Plano maior habilidade para fazer acreditar ser possível reduzir homicídios dolosos sem considerar a seletividade racial e etária alimentada pela guerra às drogas que o próprio Executivo se propõe a recrudescer[4].

O que talvez o elaborador do Plano não saiba também é que no Brasil o altíssimo índice de homicídios dolosos praticados concentra-se entre os jovens entre 14 e 24 anos, majoritariamente negros e negras. O que significa dizer que não somente a riqueza e recursos sociais são desigualmente distribuídos entre brancos e negros, mas também a letalidade que atinge a juventude da periferia, onde o Executivo quer concentrar ainda mais suas ações.

Como desde muito tempo pesquisas sérias vêm apontando[5] a criminalidade violenta cresceu nas regiões metropolitanas do país onde, principalmente nos lugares mais pobres e menos assistidos, a partir dos anos oitenta, com a tomada pelo tráfico de drogas e os consequentes confrontos entre facções rivais que disputam o controle deste mercado, também cresceu o número de mortes. São nesses territórios carentes de tudo, menos de ineficazes investidas policiais causadoras de mais mortos, que se registram os mais altos índices de violência letal.

Esqueceu o pensador do Plano que ser negro e negra pobre neste país é fator de risco. É ser um alvo prestes a ser atingido por balas que vêm de todos e quaisquer lados. [6]

Afinal que cor tem a redução do número de homicídios pretendida?

Talvez recorrendo aos estudos e dados acumulados pela também extinta Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR (cuja escrivaninha sequer se tem conhecimento da existência) torne-se mais fácil compreender que o racismo institucional que mata a juventude preta e pobre é o mesmo que encarcera a legião que se pretende combater com mais “inteligência” e potencial bélico.

Infelizmente, o Plano é nada mais do que, de um lado, uma mera tentativa de ocupar as manchetes com o anúncio de uma carta de boas intenções completamente distante de medidas concretas e efetivas condizentes à situação de barbárie vivida pelas mais de 600 mil pessoas confinadas nos cárceres brasileiros; e, de outra banda, um exercício retórico para a venda de suposta “segurança”, sem que se diga efetivamente de quem.

Uma das palavras-chave em todo o powerpoint divulgado pelo Ministério da Justiça é “inteligência”. Talvez antes disso devesse ser “conhecimento”. Não investe em inteligência para reduzir homicídios e feminicídios quem não conhece (ou não quer conhecer) a realidade que as mulheres e a juventude negra vivem neste país.


Notas e Referências:

[1] Utilize aqui tão somente a designação de gênero masculina, que não compõe minha forma de escrita, posto que o gerenciamento da política brasileira  é, de fato, majoritária e esmagadoramente masculino.

[2] Como consta no Plano Nacional de Segurança Pública, um dos objetivos é a “Criação do Departamento Nacional de Polícia Judiciária e Perícias na SENASP para colaboração sistêmica no âmbito de inteligência policial, integração de dados e informações, capacitação profissional e cooperação com os Estados nas investigações criminais de homicídios e feminicídios dolosos, principalmente naqueles decorrentes de chacinas e atuação de milícias – Redução de Impunidade.”. Vide:  http://www.justica.gov.br/noticias/plano-nacional-de-seguranca-preve-integracao-entre-poder-publico-e-sociedade/pnsp060117.pdf .

[3] Constam ainda do plano como propostas a “Análise junto aos Tribunais de Justiça da possibilidade de edição de provimentos para criação de departamentos de inquéritos relacionados aos Homicídios dolosos e feminicídios, garantindo maior aproximação e celeridade nas investigações policiais.”; e a “Análise junto aos Ministérios Públicos estaduais da possibilidade de criação de Grupos de Atuação Especial em relação aos homicídios dolosos e feminicídios, compostos por Promotores de Justiça, que atuem nos Tribunais do Júri, para acompanhamento das investigações.” Mais uma vez vide: Vide:  http://www.justica.gov.br/noticias/plano-nacional-de-seguranca-preve-integracao-entre-poder-publico-e-sociedade/pnsp060117.pdf .

[4] Conforme o eixo 3 do Plano a proposta é de redução em 7,5% dos homicídios dolosos nas capitais ainda em 2017.

[5] Vide RAMOS, Silvia. Criminalidade, Segurança Pública e Respostas Brasileiras à Violência. Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC/UCAM). Disponível em http://www.observatorioseguranca.org/pdf/01%20(11).pdf

[6] Segundo dados do Mapa da Violência 2016: homicídios por arma de fogo no Brasil, A vitimização negra no país que em 2003 era de 71,7% (o que significa dizer que morriam, proporcionalmente, 71,7% mais negros que brancos), pulou para 158,9%, em 2014. Vide: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf


Soraia da Rosa Mendes. . Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutora em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. .


Imagem Ilustrativa do Post: Libyan Future // Foto de: Surian Soosay // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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