Por Débora Costa Ferreira – 30/05/2016
O complexo contexto que envolve o início do governo do Presidente Interino, Michel Temer, demanda análise cuidadosa, sem simplificações ou paixões político-partidárias. Nesse sentido, o presente texto procura traçar um breve panorama dos aspectos institucionais e fáticos que influenciam a tomada de decisão política do governo nesse momento, marcado pelo claro conflito entre governabilidade e representatividade.
Quanto à estrutura institucional, o sistema de governo do Brasil pós-Constituição de 1988 foi arquitetado para combinar o presidencialismo com o pluripartidarismo, o que veio a ser intitulado por Sérgio Abranches de presidencialismo de coalizão[1]. Em face dessa combinação, o alcance de maiorias estáveis no Parlamento seria extremamente difícil e custoso. Outrossim, a desvinculação entre eleições presidenciais e parlamentares possibilitaria a estruturação de um sistema representativo de origens distintas, necessitando, consequentemente, da formação de coalizões para alcançar a governabilidade, articuladas por meio da troca de cargos no governo e de emendas parlamentares por apoio político na aprovação de projetos legislativos de interesse nacional encabeçados pelo Executivo.
Sérgio Abranches acreditava que esse sistema estava fadado ao insucesso, por essa extrema dificuldade de formar maiorias estáveis. Em primeiro lugar, porque o comportamento irresponsável dos parlamentares geraria poucos incentivos para que eles cooperassem com o Presidente, assim como esse se isolaria do apoio do Parlamento, por crer no grande poder popular nele depositado. Em segundo lugar, a disciplina partidária não seria eficaz, já que a legislação eleitoral brasileira conteria fortes incentivos para o comportamento individualista dos parlamentares (maximização das suas chances de reeleição). Em terceiro lugar, uma coalizão partidária careceria da principal arma que garante seu funcionamento no parlamentarismo: a ameaça de dissolução. Enfim, haveria uma política de oposição cega, que relutaria muito em fazer qualquer coisa que poderia ajudar o governo a ser bem-sucedido.
Em contraposição a essas ideias, Fernando Limongi e Argelina Figueiredo (1998) defendem que o presidencialismo de coalizão não leva necessariamente à ingovernabilidade e à paralisia. Isso porque, no Brasil, esse sistema encontraria estabilidade e sucesso na governabilidade, por meio da interdependência entre a preponderância legislativa do Executivo, do padrão centralizado de trabalhos legislativos e a da disciplina partidária. Sua teoria foi corroborada por dados de 1988 a 1995, o que também se observou de forma clara no governo dos presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva[2].
Contudo, no decorrer dos mandatos da presidente Dilma Rousseff, essa capacidade de estruturar as coalizões foi se reduzindo e as características autodestrutivas do presidencialismo de coalizão, narradas por Abranches, passaram a se sobressair. O alto grau de heterogeneidade ideológica e o fracionamento político-partidário decorrentes da proliferação de partidos; a alta propensão de conflitos de interesse em razão das clivagens sociais e o insuficiente quadro institucional para resolução de conflitos são alguns dos fatores do sistema político-partidário e institucionais, somados à incompetência na gestão das políticas econômicas e aos escândalos de corrupção, que se conjugaram para desencadear a crise deste governo, que desembocou no processo de impeachment.
Conclui-se, em mais profunda análise, que o presidencialismo de coalizão é um arcabouço institucional extremamente dependente da existência da figura de um Presidente com capacidade de articulação política e utilização dos mecanismos institucionais disponíveis para formar amplas maiorias no Legislativo. Se essas coalizões não são estruturadas de forma estável e duradoura – o que é bastante complicado em um contexto de excessiva fragmentação político-partidária, uma vez que fica diluído o componente ideológico –, o Executivo, em busca da governabilidade, é cooptado pelas maiorias ocasionais, cujo objetivo é simplesmente manter o poder. Essa hipótese apresenta altos custos políticos e financeiros (como se observou nos últimos meses do governo de Dilma), porquanto demandam concessão de uma maior quantidade de cargos em ministérios e recursos previstos no orçamento para obter o apoio dos partidos e parlamentares. Por outro lado, quando o Presidente não possui expressivo apoio popular, a formação das coalizões também se mostra mais complicada.
Exposto este quadro, observa-se a delicada posição na qual o Presidente interino encontra-se: em um ambiente de completa ingovernabilidade e desconfiança institucional. É preciso, portanto, que ele exerça liderança suficiente para centralizar esforços em prol de objetivos nacionais, garantindo uma base de apoio consolidada logo de início, para conseguir aprovar as reformas indispensáveis ao combate da atual crise fiscal do Estado. Nesse sentido, o seu discurso de “governo de salvação nacional” busca propor um novo acordo social com as instituições democráticas e com a sociedade para a superação desse estado, refazendo-se as bases do pacto social e apresentando com clareza a realidade política e econômica, para convergir expectativas, de modo a tornar factível uma conjunção de esforços em torno de mudanças institucionais sustentadas, explicitadas em uma agenda política e econômica bem definida, na lógica da teoria das profecias autorrealizáveis[3].
A princípio o Presidente previa um “governo de notáveis”, marcado pela competência técnica, mas suas projeções não se sustentaram quando se deu conta do tamanho de esforço político que teria que fazer para formar as coalizões. Então foram anunciados os ministros do seu governo, indicados pelos líderes dos mais importantes partidos do Congresso Nacional: sete investigados na Lava-Jato e pouca representatividade de mulheres e negros. Ou seja, as mesmas figuras que sempre dominaram o cenário político nacional.
Esse cenário seria facilmente previsto pela estrutura político-institucional narrada até agora e pelo problemático sistema político-partidário existente atualmente. Problema nenhum haveria se essas eminentes figuras políticas não estivessem tão envolvidas com esquemas de negociações políticas ilegais e tão distantes da ideal representatividade da população brasileira. Mas até que ponto essa relativização da moralidade e da representatividade para alcançar a coalizão política necessária não perturba a convergência de expectativas da sociedade? Há limites nisso.
Se todos os representantes do governo restarem despidos de apoio da população em face de escândalos de corrupção e de negociações escusas, como o vazamento da conversa de Romero Jucá (PMDB/RR) com Sérgio Machado, não haverá legitimidade suficiente para levar a cabo as medidas necessárias à estabilização política e econômica. Já não é fácil resistir à política de oposição cega, que se nega a ajudar de qualquer forma o governo a ser bem-sucedido, mais problemático ainda seria sobreviver à falta de credibilidade diante de toda a sociedade.
Além da precisão da agenda política e econômica, com atuação coerente e bem explicada – como parece estar se desenrolando os trabalhos da equipe econômica –, é preciso sinalizar e demonstrar o incondicional apoio às instituições de combate à corrupção e controle de irregularidades, garantindo que elas não sejam aparelhadas para prejudicar as investigações em curso. Parece uma escolha contraditória a ser feita por políticos auto-interessados que temam ser pegos pelas investigações, mas, por incrível que pareça, é a melhor das opções por ora, uma vez que perder o apoio popular em um momento em que se mantém alta a propensão de os cidadãos voltarem às ruas para protestar é um grande risco à continuidade do seu futuro político.
É justamente por meio dessa lógica que o novo governo vem atuando: voltando atrás e corrigindo decisões anteriores que gerem graves insatisfações sociais (como a exoneração de Romero Jucá). De todo modo, é aconselhável que não volte atrás em todas as medidas impopulares que forem feitas, porque os desafios para a superação da crise fiscal certamente irão gerar insatisfações em vários setores da sociedade (muito bem articulados, na maioria das vezes), sob pena de serem inócuos esses esforços. O ajuste fiscal depende de pulso forte e consolidado apoio político para alcançar seus objetivos. Mas deve haver, por outro lado, a capacidade de reconhecer erros cometidos, de corrigir desvios com relação às expectativas de moralidade pública e de competência e eficiência de gestão governamental, para obter – ou não perder – o apoio difuso da sociedade e, ao mesmo tempo, manter o apoio político necessário no Congresso.
Notas e Referências:
[1] ABRANCHES, Sérgio H. H. de. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1, 1988, p. 5 a 34.
[2] ALSTON, Lee J.; MELO, Marcus André; MUELLER, Bernardo; PEREIRA, Carlos. The Predatory or Virtuous Choices Governors Make: The Roles of Checks and Balances and Political Competition.LASA. 2010.
[3] MERTON, Roberth K. Social Theory and Social Structure. Nova Iorque: Free Press, 1968.
. Débora Costa Ferreira possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2014) e graduação em Ciências Econômicas pela Universidade de Brasília (2014). Tem especialização na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional (2015). Mestrado em Direito Constitucional em andamento. .
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