Por Soraia da Rosa Mendes - 17/03/2016
Nos primeiros dias deste mês de março de 2016 chegou ao conhecimento do grande público no Brasil o caso de uma juíza espanhola, cuja conduta está sendo investigada pelo Conselho Geral do Poder Judiciário daquele país, por sua forma de “atuação” em um processo envolvendo o crime de estupro.
Segundo consta, durante a audiência, a magistrada teria perguntado à vítima, uma mulher grávida de quatro meses, se esta, no momento da agressão, teria fechado “bem as pernas e seu órgão genital”.
A notícia vinda de Espanha bem poderia ser manchete também em jornais do Brasil, onde estima-se que, somente em 2014, devam ter ocorrido 136 mil casos de violência sexual, dos quais somente 47.646 foram registrados em delegacias de polícia.
O estupro é o crime com o maior o índice de subnotificação no mundo, posto que, como mostram as pesquisas, somente entre 10% e 35% das vítimas procuram o sistema de justiça nestas situações. E a explicação para esse reduzido número está, dentre outros motivos, pela forma de atuar revitimizante do aparato estatal.
A juíza espanhola, bem poderia ser brasileira... Seja na Europa, ou nos rincões do Brasil, a atuação estatal em relação às mulheres é, em regra, violadora.
Em 10 de março de 2016 morreu, dentro da Universidade de Brasília, Louise Ribeiro. Uma jovem de apenas 20 anos, estudante de Biologia, assassinada pelo ex-namorado. Inconformado com o término da relação, se dizendo depressivo, ele a dopou, amarrou suas mãos e a fez ingerir clorofórmio, causando a morte da mulher que ousou dizer-lhe “não”.
Na análise do caso de Louise o delegado considerou a existência de homicídio qualificado por motivo torpe, uso de substância química e de recurso que impossibilitou a defesa da vítima. Não cogitou feminicídio.
De acordo com o “Mapa da violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil”, em média treze mulheres são assassinadas por dia em nosso país. Ocupamos o 5º lugar em um misógino ranking mundial, estando atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e da Federação Russa.
Como uma forma especial de considerar a eliminação violenta da vida feminina, o feminicídio pressupõe a compreensão de que a morte de uma mulher em dadas circunstâncias está intrinsicamente relacionada aos papéis socioculturais a elas designados ao longo do tempo, razão pela qual o algoz, não raro, é um parceiro ou ex-parceiro.
O reconhecimento da existência do fenômeno da morte violenta de uma mulher pelo fato de ser mulher não é novo. Diana Russell utilizou a expressão “femicídio” (ou femicide, em inglês), lá pelos idos dos anos setenta do século passado, como uma alternativa ao termo neutro “homicídio”, e com o objetivo político de fazer reconhecer e dar visibilidade à discriminação, à opressão, à desigualdade e à violência sistemática, que, em sua forma mais extrema, culmina na morte de milhares de mulheres.
Na esteira do conceito anterior, a pesquisadora mexicana Marcela Lagarde cunhou o termo “feminicídio”, definindo-o também como o ato de matar uma mulher pelo fato de pertencer ao sexo feminino, mas ampliando seu sentido para atingir o propósito de denunciar a falta de resposta do Estado nestes casos e o descumprimento de suas obrigações internacionais de proteção, inclusive, e principalmente, do dever de investigar e de punir.
Em 09 de março de 2016 a lei 13.104, que incluiu o feminicídio dentre as qualificadoras do homicídio, completou seu primeiro ano de existência. O que por si só nada significa se padrões culturais não forem substancialmente alterados. Se falar sobre subjugação e violência contra a mulher sob a perspectiva de gênero não tornar-se a tônica.
Certo é que nenhuma norma, menos ainda se de natureza penal, tem o dom de modificar mentes e de, num passe de mágica, desconstruir a violência milenar a que as mulheres estão submetidas. Contudo, invisibilizar a existência dessa norma é uma violência que se sobrepõe de um modo amplo àquela já sofrida pela vítima.
A conduta da magistrada e as conclusões preliminares do inquérito sobre a morte da estudante são faces de uma mesma moeda. Tintas que colorem o retrato do rosto do sistema de justiça criminal conhecido pelas mulheres no Brasil e no mundo.
Até hoje, dia 17 de março de 2016, no Brasil, a cada 4 minutos uma brasileira é agredida; uma mulher é estuprada a cada 11 minutos; treze mulheres são assassinadas por dia, uma a cada três por feminicídio.
Na semana em que registramos a passagem do Dia Internacional da Mulher não tivemos nada a comemorar. E nunca teremos até que chegue o tempo em que com águas de março venham promessas de vida para todas nós.
. . Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, e doutora em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. .
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