Entre a polícia e o Batman – Por André Sampaio

01/01/2017

Estruturas cognitivas simples costumam observar o ambiente por meio de binômios: bom/mau, bonito/feio, certo/errado; trata-se de estratégia de redução de complexidade apta a evitar esforços de maior magnitude. Assim, uma determinada mensagem crítica, quando submetida a tal tipo de estrutura, corre o risco de ser desvirtuada em seu arremedo maniqueísta.

Desde o campo do direito, a polícia é uma da instituições mais amplamente criticadas. Poderíamos aqui aventar uma série de motivos para essa maior permeabilidade: é a primeira agência, na maioria das vezes, a ter contato com o acontecimento (supostamente) criminoso, a que tem contato com a mídia ainda no nascedouro da notícia, a que, segundo Figueiredo Dias e Costa Andrade,[1] convive na fronteira entre o lícito e o ilícito, entre inúmeros outros.

Assim, diante de um aparente desvio da atuação policial não são poucas as críticas que lhe são atribuídas – inclusive partindo da própria mídia, de quem não se pode esperar nenhum tipo de conivência por estar buscando implementar a “política criminal” tão aclamada por elas. Em um ambiente de discussão mais dialógico, sobretudo quando as barreiras virtuais dotam o interlocutor de maior coragem (artificial), não é incomum, mais cedo ou mais tarde, alguém confundir as críticas exaradas com uma apologia ao crime (ou ao criminoso) e lançar mão de um “então chama o Batman quando precisar!”, ou qualquer expressão congênere.

É óbvio – mas vivemos na sociedade da necessidade da explicação das tautologias – que qualquer instituição, órgão, departamento, ou, se formos além, qualquer empreendimento, indivíduo e, no extremo, até fenômenos da natureza podem ser objeto de críticas. Quando se reclama que “o calor está insuportável” não se quer mudar para o polo norte ou que o sol desapareça, aliás, críticas desse jaez, a fenômenos da natureza, são realizadas apenas para expressar uma insatisfação impotente ou para iniciar um diálogo momentâneo.

Críticas realizadas a agências – ou “agires”, se preferirem – de seres humanos podem alcançar uma outra dimensão: a de propiciar meios pelos quais uma auto-observação do criticado possa eventualmente provocar uma correção do que fora socialmente percebido como desvio. Assim, críticas a um empreendimento privado, por exemplo, são feitas com o escopo de modificação do aspecto percebido como inadequado, todavia sua eventual omissão no sentido de correção do que fora visto como defeito nunca afastará do cliente a possibilidade de simplesmente optar por outro estabelecimento – tudo dentro da estrita manifestação da liberdade humana.

Quando criticamos instituições públicas um elemento importante vem à tona: a democracia. Por não viver em um regime fascista é possível criticar as instituições, visando sua melhoria ou até mesmo, quem sabe, sua extinção. Sendo a segurança pública monopólio do Estado – e que fique clara a nossa intenção de que continue sendo – a alternativa de não usufruir de seus serviços não está em jogo.

Ademais, quando se declara que possuímos a polícia militar que mais mata no mundo ou quando se associa a polícia civil a práticas – muitas vezes sutis – de tortura, não se está a afirmar que todo e qualquer membro da corporação é um assassino ou torturador; aqui se situa uma verdadeira (con)fusão entre a categoria universal “polícia” e sua realidade fenomênica, o indivíduo policial.

“A” polícia não faz parte de uma estrutura sensível, mas apenas idealizável. O que percebemos é um coletivo de indivíduos que a compõem, de modo que, para que se almeje uma maior adequação semântica, talvez o ideal seria construir uma lista de indivíduos com desvios de condutas e imputar a eles, discriminadamente, seus malfeitos, poupando assim os demais policiais e, em última análise, a instituição (ou “agência”, como preferimos) policial.

Todavia as categorias universas são constructos sociais criados, dentre outras funções, para facilitar a transmissão da comunicação. Evidente que, em uma agência na qual se constata a ocorrência de ato singular, qualquer generalização seria no mínimo temerária, mas a recorrência de tais práticas e sua persistência temporal justificam focos de insatisfação social (ainda que por ventura se tratem de práticas apoiadas pela maior parte da população).

Nessa senda a crítica é realizada com o condão de conserto, de aprimoramento, de melhoria inclusive para os próprios indivíduos que compõem essas instituições, pois não são ignoradas as carências estruturais com as quais precisam conviver. Por outro lado, é compreensível que o autoritarismo estruturante das agências policiais deturpe quaisquer mensagens críticas, imbuindo-as de significados atrelados a desrespeito, menosprezo e ingratidão.

Ademais, não se pode subtrair dessa equação uma característica exaustivamente denunciada por diversos sociólogos brasileiros (Sérgio Buarque de Holanda, Roberto DaMatta, Gilberto Freyre...): a sociedade brasileira possui o marcador de confusão entre a res pública e a res privada, o que propicia a impressão de que os funcionários públicos – dentre eles agentes policiais – nos prestam algo pertencente ao gênero dos favores, de modo que “cavalo dado não se olha os dentes”, ou, adaptando, “se não gosta dos serviços da polícia não recorra a ela quando precisar”.

É nesse imaginário autoritário e patrimonialista que a outra alternativa fornecida é chamar pelo “Batman”. Ignorando o tom obviamente sarcástico – próprio da manifestação escamoteada da ira (da crítica [mal] recebida), se preservarmos o tom jocoso da “sugestão” e seguirmos na análise alcançaremos a inevitável conclusão de que dentro da mitologia dos HQs o Batman não seria melhor opção.

Se grande parte das críticas atribuídas à agência policial, pelo menos das costumeiramente mal recebidas, diz respeito a se pautar à margem dos limites semânticos da norma, fornecer como opção um sujeito que, fora dos limites de legalidade e legitimidade institucionais, “combate” o crime torturando indivíduos que presume serem criminosos, invadindo propriedades privadas, subtraindo coisas alheias (ainda que em nome da “verdade real”...), entre inúmeros outros fatos típicos (cuja lista cresce exponencialmente com a enumeração dos delitos de trânsito na condução do “batmóvel”) está de longe a ser a melhor opção.

Resistindo à tentação de prosseguirmos na análise da mitologia heroica das HQs e regressando à realidade, precisamos afirmar que a agência policial possui – como inclusive abordado na coluna anterior – um papel democrático fundamental e deve ser dela o monopólio das funções coercitivas e investigativas, mas o viver em democracia, este conceito fluido e deslizante, implica se encontrar em um local de alvo de críticas e elogios de diversos matizes; esta mesma democracia que nos dá a liberdade de criticar e de não precisar “chamar o Batman” como opção restante, pois tal qual o de qualquer outro funcionário público o serviço não é gratuito.

Sigamos criticando, com respeito e quando preciso, e também elogiando, quando houver – e diversas vezes há – motivos para tal, e, acima disso, que não nos deixemos seduzir pelo simplismo maniqueísta; criticamos até mesmo quem amamos e isso está longe de significar uma transmutação do amor em ódio. E o Batman? Que fique nas páginas dos quadrinhos e telas de cinema; como entretenimento pode possuir algum valor, como arquétipo de conduta jamais.


Notas e Referências:

[1] DIAS, Jorge de Figueiredo. ANDRADE, Manoel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. 2ª reimpr. Coimbra: Coimbra, 1997. pp. 454-462.


Imagem Ilustrativa do Post: Batman // Foto de: Adam Bailey // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/adamtbailey/3520763766

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura