Em tempos em que é difícil ter qualquer tipo de discussão que não descambe para um embate político, é necessário focalizar naquilo que se tem como, minimamente, objetivo. Mas, diante do aumento da complexidade da organização da sociedade (econômica, política, moral, ética etc.), do aumento da carga de informação de toda espécie, assim como da facilitação de seu fluxo, e da disseminação das “fakes news” para baralhar ainda mais todo esse quebra-cabeça, isso é realmente possível?
Na obra “A insustentável leveza do ser”, Milan Kundera, com argúcia no seu exame do perfil psicológico dos indivíduos, numa análise cética quanto às intenções e manifestações verbais ou não, sempre opondo questionamentos de ordem filosófica, sob uma perspectiva linguística da verdade, busca não só relativizar, mas desvelar e revelar os mistérios do ser. Dentre os capítulos mais emblemáticos, aquele que traz a definição do “kitsch” é um dos que mais esclarecem a intenção da obra. Segundo o autor, o termo é “o acordo categórico com o ser tem por ideal um mundo no qual a merda (sic) é negada e no qual cada um de nós se comporta como se ela não existisse”[1].
Indubitavelmente, em terras brasileiras, Kelsen (e o positivismo – associação quase necessária por aqui) é, no meio jurídico, umas das principais vítimas desse tipo de incursão do “kitsch”. Conquanto o positivismo ainda seja a realidade da postura e prática cotidiana que imperam, chamar alguém de positivista (ou kelseniano - aqui, parecem sinônimos) virou xingamento, que não duvido, tal como as arbitrariedades que têm ocorrido, sobre a possibilidade de algum despacho ordenando riscar ou desentranhar as peças processuais que as invoquem.
A pureza e neutralidade pregada por Kelsen fez dele ser visto um apoiador cooptado pelos regimes autoritários. Ironicamente, entretanto, se lida à sua melhor luz, o intento de sua teoria era justamente impedir que razões de qualquer ordem pudessem ser condição necessária ou ínsita a algum sistema jurídico. Antes que impor uma ordem jurídica por quaisquer motivações ou valores, sua posição era exatamente expungir qualquer viés ideológico, afinal de contas, era um relativista. Assim, um sistema jurídico autoritário não obtém legitimidade do ponto de vista material a partir de sua teoria, mas, apenas, formal. Não é a qualidade imanente de uma raça, credo, valores etc. que pode justificar, juridicamente, determinada ação como permitida, proibida ou obrigatória. Justamente por isso é plenamente possível questionar, com base nas próprias premissas kelsenianas, as razões de ordem moral e ética nas quais um sistema jurídico autoritário diz se afirmar enquanto tal.
E qual a relação disso com o grau de desenvolvimento do Direito nessa quadra da história? Toda! Pós Constituição de 1988, foi (supostamente) reconfigurado o modus operandi de interpretação e aplicação dos textos legais, que passaram a se submeterem, formal e materialmente, ao chamado filtro constitucional[2].
Entretanto, a jurisprudência e doutrina pátria, salvo exceções, ainda persistem em não reconhecer o grau de autonomia do Direito, utilizando-se de teorias (ou vulgatas) repristinadas[3] que visam a combater a “injustiça do direito gerada pelo positivismo”. É como se fossem Dom Quixote batalhando contra os moinhos de vento. Não conseguem, sob essa perspectiva, solucionar o problema hermenêutico envolvido entre a ideia de positivação de textos, enquanto meio necessário para redução da margem de incerteza, e o irrevogável, natural e contínuo processo semiótico (relação triádica entre signo, objeto e interpretante), a partir do qual se verifica a abertura semântica e a geração de novas e infindáveis informações de padrões comportamentais possíveis que se formam no horizonte, sempre atrelados ao elemento histórico (contextual).
No Direito Tributário, essa cegueira deliberada gira em torno do tributo, eis que seu interpretante já está, necessariamente, vinculado a algum mal, o que considero ser o “kitsch tributário”. Em semiótica, diria que é um signo icônico, pois o próprio tributo seria a representação do mal[4]. Como já pontuei sobre o assunto, “a propaganda nem precisava ser a alma desse negócio, pois o tributo é um mote fácil de se dar o bote. Afinal de contas, quem não quer pôr menos a mão no bolso pelo outro? Pareceria até contraintuitivo pensar diferente”[5].
Nessa ordem de ideias, esse convencionalismo é aparente desde a análise e respectiva proposta da professora Misabel Derzi, de há algum tempo, mas, ainda, atual, em “Tipo ou conceito no Direito Tributário”[6], onde traça o paradigma que precede o modo de pensar dos estudiosos do Direito Tributário, lançando sua posição favorável ao “conceito”, que entende ser uma de únicas duas vias possíveis apenas. Ainda que, na prática jurídica, nem haja essa compreensão hermenêutica situacional[7], o consensus ominium mantém-se preso (submerso) àqueles paradigmas e ilações bem delimitados pela autora. Diante dessa aporia, retoricamente indago para quê trabalhar com um conceitualismo ingênuo e inalcançável (não só para o direito, mas para economia, contabilidade etc.), se a própria função do Direito é dar cabo da realidade, conferindo-lhe segurança, predição e estabilidade.
Embora imersos no “kitsch não (ou pós) positivista”, as conclusões propaladas no meio jurídico, estranha e imperceptivelmente, apostam na exatidão (correspondência) entre texto/norma/realidade, que nem mesmo Kelsen acreditava mais. Tanto que o teórico enxergou bem a questão (para ele, era um problema) da abertura semântica propiciada pelos textos legais, bem como do caráter semiótico do ‘fato natural’, que teria "seu significado especificamente jurídico, ou seja, seu sentido jurídico peculiar, contém os fatos em questão, através de uma norma, que se refere ao seu conteúdo, que, por sua vez, lhe empresta significado jurídico, de modo que o ato, conforme essa norma possa ser interpretado"[8]. Dito de outro modo, já conclui que “sem fatos não há Direito. Sem processo também não. E não há só fatos para o Direito. Mas há, também, Direito para os fatos[9]. Ou seja, onde não há linguagem, não há incidência jurídica, exatamente porque não há objeto ao qual se faça referência.
Por outro lado, ironicamente assim como em Kelsen, subsiste o sintoma da separação entre mundo real (ser) e mundo ideal (dever-ser) nas teorias e decisões em matéria tributária. Ora privilegiando-se a “literalidade” (sob a perspectiva objetivista), ora a “finalidade” da lei (sob a perspectiva subjetivista), não há a compreensão acerca da impossibilidade dessa cisão, de forma que acaba por se projetar uma idealidade (ora da norma, ora do fato) a ser buscada a qualquer custo, olvidando-se que a própria linguagem da facticidade é a condição de possibilidade dessa concreção. De tão preso à ideia de uma base imponível (ou aspecto material) perfeita, nem se percebe que nunca poderemos fazer coincidir, apriosticamente, todas as hipóteses de aplicação da norma. Ou seja, situações e normas ideais não existem e, portanto, nunca podem ser alcançadas, o que inviabiliza trabalhar sob pressupostos conceituais despidos de objetividade prática, a qual só pode ser apreendida pela e através da linguagem.
Em termos pragmáticos, o fetichismo do “kitsch tributário” tem ofuscado inúmeros outros e mais reais entraves que atravancam o desenvolvimento do país, que não têm como serem resolvidos apenas através de processos judiciais tributários. Definitivamente, não é à canetada que se resolverá as mazelas do país, ainda mais sob o imaginário obnubilado de que seja unicamente o tributo o responsável por todas elas.
Sem prejuízo disso, como venho tratando, a questão longe de ser teórica é, também, e sobretudo, ideológica. Tanto que, sob qualquer ângulo da polarização atual, o tributo já perdeu. No “kitsch tributário”, seja sob a ótica capitalista ou comunista, criou-se um mundo em que os direitos substanciais assegurados na Constituição prescindem dos recursos advindos dos correlatos tributos (deveres) previstos, de forma que “quando o coração fala, não é conveniente que a razão faça objeções”, “o kitsch não se interessa pela insólito, ele fala de imagens-chave, profundamente enraizadas na memória dos homens”[10].
Não só na ficção, mas, também, sob o ponto de vista dos acontecimentos históricos, importante registro de movimento maniqueísta semelhante ocorreu na União Soviética, onde quem não estivesse “cegamente de acordo os diktats (...) vê-se irremediavelmente etiquetado como contra-revolucionário”, tomando-se “emprestado da mesma burguesia essa arma tristemente conhecida que é a suspeição sistemática dos adversários políticos”, conforme relatos do teórico anarco-sindicalista Rudolf Rocker[11]. Digo isso porque o que venho propondo não é o agigantamento do papel do Estado, e sim tentando demonstrar que o debate não pode ficar apenas no terreno da ideologia política e econômica, ou seja, no sentido que trato busco deslocar o centro de discussão para um novo paradigma acerca da forma (“como”) e substância (“o quê”) a partir dos quais devem ser compreendida a função jurisdicional (“como julgar?”), sob a perspectiva de um modelo concretizador da Constituição.
Não se nega que cada “ramo” do Direito nasceu a partir de determinado contexto histórico, com a finalidade de tutelar valores seletivos que se tornaram relevantes. Sendo que o Direito Tributário sempre esteve atrelado à necessidade de se evitar abusos da sanha estatal, normalmente representada no poder de algum tirano, o que de forma natural tornou-se um campo fértil para desenvolvimento de teses de matriz liberal-individualistas. Porém, sob os auspícios da Constituição de 88, esse elemento histórico que selou tal paradigma perdeu validez, de forma que não podemos mais nos mantermos complacentes à tradição só pela sua autoridade. A autocompreensão que se tinha deve ser reconstruída à luz da democracia constitucional, no sentido de reconhecimento que estado e cidadão não possuem interesses contrapostos, especialmente porque não há autonomia privada sem a pública, e nem vice-versa. Há uma verdadeira relação mutualística de confiança, que se retroalimenta, enraíza-se e se auto-reproduz.
Concluindo, se o mundo jurídico brasileiro real (e não o do “kitsch”) é positivista, por que não, pelo mínimo de coerência, reconhecer a precedência do Direito em relação à moral, ética e política. Ora, a nossa própria Constituição, sob a perspectiva axiológica, já condensa uma pluralidade de valores dos mais diversos, cabendo a nós, do direito, todavia, não os manipular ao nosso gosto, sob a perspectiva seletiva e excludente (“melhor que” ou “pior que”), e sim manejá-los sob o ponto de vista normativo, criando instâncias decisórias, cada uma com sua respectiva realidade, critérios e limitações constitucionais, aptas a gerarem normas (que conversam entre si) que visam a absorvê-los e concretizá-los. Ou sob um apelo pragmático, se há real interesse tanto na simplificação de nosso sistema tributário quanto no saneamento das contas públicas, não será apostando na loteria da (in)coerente, (in)estável e divergente jurisprudência brasileira, que se alcançará efetiva segurança, estabilidade, previsibilidade e calculabilidade sobre gastos e arrecadação, ainda mais com uma retórica vazia manipuladora das palavras.
Notas e Referências
[1] p.250.
[2] OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni. Direito, Política e Filosofia: contribuições para uma teoria discursiva da constituição democrática no marco do patriotismo constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Juis, 2007, p.136.
[3] Ver STRECK. Lênio. As Recepções Teóricas Inadequadas Em Terrae Brasilis. In: http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/53/52.
[4] Tento desvelar as razões em: http://emporiododireito.com.br/leitura/entre-a-legalidade-e-igualdade-tributaria-o-lado-oculto.
[5] Idem, ibidem.
[6] Disponível em: file:///C:/Users/09803087630/Downloads/1046-1961-2-PB.pdf.
[7] No geral, há mera reprodução de teses ou o uso álibis retóricos sem qualquer criteriologia, para reforço de argumento.
[8] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito (Trad.). 9ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.71.
[9]https://jus.com.br/artigos/59532/discricionariedade-no-novo-cpc-das-provas-como-direito-das-partes
[10] Op.cit., p.253.
[11] Os Sovietes Traídos pelos Bolcheviques. São Paulo: Hedra, 2007. p.29.
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