Entre a legalidade e igualdade tributária: o lado oculto

08/04/2018

Há algum tempo tive a oportunidade de pontuar que o tributo, como sendo a principal fonte de receita do Estado, não pode ser visto de forma maniqueísta[1]. De lá para cá, entretanto, tornou-se lugar comum, especialmente a partir do alarde de certos grupos, eleger, capciosamente, o tributo como bode expiatório responsável pelas mazelas socioeconômicas experimentadas hoje. Infelizmente, o Direito Tributário tem sido um campo pródigo no fortalecimento dessa visão distorcida. 

Têm na atual instabilidade política e decadência moral pela qual passa o país só mais alguns ingredientes para incendiar esse barril de pólvora. Aproveitam-se, sem qualquer desfaçatez, desse momento frágil, cientes de que qualquer ambiente de crise (forjada ou não) é sempre mais propício a fomentar posições e soluções mais radicais, sendo um terreno mais fértil para florescer um sentimento de mudanças a quaisquer custos. Inclusive, a propaganda nem precisava ser a alma desse negócio, pois o tributo é um mote fácil de se dar o bote. Afinal de contas, quem não quer pôr menos a mão no bolso pelo outro? Pareceria até contraintuitivo pensar diferente. 

Tanto que a generalização dessa quimera tributária toma conta e enche os corações, até mesmo, da parcela da população que seria prejudicada com a sua adoção irrefletida. Refiro-me àquelas pessoas mais necessitadas dos serviços públicos essenciais. É que, pela situação fragilizada, não reúnem condições de discernirem sobre a veracidade ou falsidade dessas (des)informações disseminadas, restando-lhes, apenas, a crença naquela fagulha de (des)esperança de onde possa brotar alguma (des)ilusão. Compram essa ideia (incutida) com tanta facilidade, que nem se perguntam como esses direitos fundamentais de natureza material poderiam ser efetivados. Nem se precisa de esforço para ocultar-lhes que o custo desses direitos é subsidiado, na sua quase totalidade, por esse mesmo (demonizado) tributo. É necessário, todavia, desfazer essa hipnose geral. 

Para desvelar o não dito nesses discursos, um primeiro passo é observar de que são os próprios pregadores (ou sua clientela) os principais responsáveis por causar o rombo nas contas públicas (direta ou indiretamente), seja pela sonegação fiscal ou por corromper políticos e servidores públicos. Disso, impende questionar em tom retórico: quem, de fato, são os “pobres” contribuintes que têm demandas de grande repercussão e impacto econômico analisadas pelos Tribunais Superiores?   Esse estágio não se trata de um recurso ad hominem, mas a busca pela realidade daquilo subjaz de oculto no cântico da sereia. Afinal de contas, “quem nos defenderá dos homens bons”...!  

Em um segundo momento, impende analisá-los em termos de consistência e coerência teórica[2]. Apurando-os, evidencia-se que a maior parte desses discursos amparam-se em um hiperinflacionado “Princípio” (sic) da Legalidade, buscando afastar a incidência do fato gerador sob argumentos de que, em nível semântico, o significado extraído (sic) do texto da Lei não abarcaria uma dada situação, e nem comportaria interpretação elástica, extensiva ou por analogia (sic). Recorrem a (fogos de) artifícios de outras áreas do conhecimento, implicadas com o Direito Tributário, como a contabilidade; um show de malabarismos (a despeito de se olvidarem do grau de autonomia atingido pelo Direito...), cujo objetivo é ludibriar acontecimento da norma. 

Ironicamente, por outro lado, pleiteiam o abrandamento dessa mesma Legalidade anteriormente evocada, quando o tema é alguma espécie de desoneração ou benefício fiscal (incoerente, não?): 

– Mas, baseado em quê (perguntaria o menos incauto)?

– Ah, na Igualdade - (com cara de obviedade) continuariam -, está na Constituição! 

– Sim, mas, onde? E é só isso?

– Sim, pois está ali, a Lei deve tratar todos os contribuintes iguais e, além disso, (em tom provocativo, quase apelando) deve promover o desenvolvimento da economia nacional, erradicar a pobreza etc.! Pronto!

Como camaleões, trocam a pele de um “exegetismo” ou “conceitualismo” exacerbado pela de um “não-positivista”(sic) convicto (ou por uma fusão De “livre-direito-de-interesse”...), camuflando, mediante a forma e conteúdo (pretensamente) jurídico, os fins políticos,  econômicos etc. puramente egoísticos obnubilados. Daí a premente necessidade de o Poder Judiciário passar julgar com cautela (critério) o mercado de (mirabolantes) teses tributárias que se formou, a fim de não ser seduzido pelo senso (imposto como) comum, capaz de destruir o Direito e aquilo pretendido a se assegurar. 

Filio-me, por isso, à ideia do Direito como Coerente e Íntegro (DWORKIN), não comportando, portanto, uma aplicação (e interpretação) esquizofrênica ou casuística. Cada caso decidido (direito aplicado) deve guardar coerência com o anterior e com aqueles que lhes sejam correlatos, de maneira a preservar a isonomia e segurança. É necessário conduzi-lo segundo os padrões exigidos pelo conjunto de regras e princípios que o antecederam, e estes, por sua vez, inseridos dentro da concepção ampla de vida (dogmática, jurisprudência etc.), apreendida pela e na linguagem, daquele momento atual. 

E, mais. Crente de que ainda estamos imersos num Estado Constitucional Democrático de Direito, confio, sim, em literalidades, porém, naquelas que não cindam texto e norma, a ponto de se criar um vácuo[3]. Quero dizer, especialmente, que não vislumbro a possibilidade - tal como alguns defendem - de se buscar conceitos ontológicos das bases econômicas tributáveis, porquanto sua “textificação” e as consequências que isso traz estão na Constituição. Como a Constituição possui uma pretensão normativa, sua efetividade e eficácia não pode ser soçobrada por uma inalcançável idealidade fora da realidade (e idealidade) do Direito[4]

Noutro giro (e sem me contradizer), tendo em vista que o “Princípio da Legalidade” deve ser compatibilizado (concordar) com o “Dever (Solidário) Fundamental de Pagar Tributo” (segundo a capacidade contributiva), impõe-se estrita observância, até por paralelismo de formas, de que quaisquer espécies de benefícios fiscais devem ser interpretados de modo literal, sob pena de contrariar a necessidade de Lei específica (CRFB: §6º, art.150). E isso atende à igualdade, pois cada um estará recebendo tratamento isonômico na aplicação da Lei, bem estará sendo levado em consideração segundo a sua capacidade econômica. 

Assim sendo, a mera invocação da Igualdade não edifica um baluarte para a desconstituição da presunção de constitucionalidade das Leis, sem que se arque com qualquer ônus argumentativo sério, ainda mais quando (e, (a)normalmente o é) realizado no âmbito do (des)controle difuso. Não compadeço da ideia de retornar ao tempo dos Juízes enquanto arautos do sentido da Lei, pois não lhes outorguei procuração para ilidir presunções com base em meras intuições, predileções (cacofonia proposital). Quando assim escolhem (veja, não estão julgando),   não são somente as partes que ficam afetada, pois esse ato isolado tem o condão de criar um furacão nas contas e serviços públicos, na economia e no tão esquecido Direito... Digo, por isso: a regra não pode virar (estado de) exceção! 

Daí que boas ou ruins, concordando ou não com elas, as políticas públicas (“macrojustiça”), consubstanciadas nas Leis, foram criadas pelos Poderes democraticamente eleitos, editadas a partir do devido processo legislativo. Com atenção especial quando envolver matéria que disponha sobre renúncia fiscal, porquanto não podem prescindir de um sem-número de dados e requisitos legais (econômico e orçamentário, especialmente) para subsidiá-las, a fim de atender de forma ótima o maior número de cidadãos, tudo concorde com o “Princípio do Planejamento Orçamentário” (CRFB: art. 48, II, art.165, III, e §5º, e art.166 c/c LC: art.14). Torna-se, assim, evidenciado o porquê o Judiciário não deve, mesmo dispondo de Juízes que possam ter formação acadêmica nessas áreas de conhecimento, adentrar no mérito daquilo de competência política, pois do contrário não estará julgando, mas elegendo metas, diretrizes ou objetivos políticos. 

E sendo pragmático (tal como parece conjecturar os Juízes que julgam assim), não é impossível deixar de se cogitar nem mesmo o impacto político e financeiro que decisões desse jaez podem ocasionar, tal como um rombo nas contas públicas e, por sua vez, até deflagrar processo de impeachment – ao menos, se formos coerentes como nossa recente história. Do mesmo modo, parece que a questão vai na contramão do papel do próprio Estado enquanto garantidor da livre iniciativa e concorrência, pois a prática indica que somente as corporações patrocinadas pelos grandes escritórios logram efetivo êxito em suas demandas. Isso porque, pela expertise, engenhosidade e trânsito livre nos Tribunais, são aqueles a ingressarem primeiro em juízo, evitando serem atingidos por eventuais modulações de efeitos pelos Tribunais Superiores. Quer dizer, além de fomentar uma lamentável guerra concorrencial no âmbito judicial, essa forma de decidir (na verdade, escolher), mesmo nutrindo boas intenções (já se viu onde isso nos levou...), pode desencadear a concentração do mercado, provocando uma reação mercadológica capaz de desestruturar o sistema concorrencial. 

Mas como muitos não cumprem com o seu dever ético de alertar ao cliente sobre todos riscos e efeitos colaterais da demanda, é necessário que este se pergunte quem, de fato, seria o real beneficiário dessas aventuras jurídicas. E se valeria a pena incitar verdadeira competição empresarial no campo judicial, despendendo vultosos recursos e desperdício de tempo, em vez de alocá-los em sua atividade-fim. E se valeria a pena estimular teses que complicam e encarecem ainda mais o embaraçado sistema tributário brasileiro. Por fim, considerando o perfil (in)coerente, (in)estável e divergente da jurisprudência brasileira, valeria a pena abarrotar o judiciário com mais esse tipo de demanda, instigando-o a adotar posições contra legem, ceifando ainda mais o caráter de segurança de outros casos “mais” certos, legítimos e vantajosos? 

Razão pela qual a Constituição não pode ser (sub)utilizada como artifício retórico para satisfazer a lascívia do intérprete que pretenda outorgar sua vontade. Nem tampouco decisões judicias pontuais (“microjustiça”), fundadas em pretensões deduzidas a partir de convicções pessoais e ou sob a perspectiva de um único indivíduo em si considerado, podem distorcer, negar vigência ou invalidar a literalidade da Lei, ainda que doa. Mas cuidado: há (a-)literalidades, e literalidades. Sem estas, não há igualdade.

 

[1] https://jus.com.br/artigos/30037/da-possibilidade-de-repeticao-de-indebito-em-face-do-adimplemento-do-credito-tributario-extinto-pela-prescricao

[2] A Professora Misabel Derzi tece importantes considerações, sob a ótica filosófica e teórica, o paradigma que precede o modo de pensar dos estudiosos do Direito em geral, em especial do Direito Tributário. Embora tenha minhas restrições, não se pode deixar de elogiar seu rigor metodológico. Seu artigo pode ser desfrutado em: https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/1046. Acontece, porém, no plano dos tribunais, a generalidade de advogados e juízes nem sequer compreendem onde estão situados, utilizando-se, quando não de mera reprodução de teses de acadêmicos como a renomada Professora, de álibis retóricos sem qualquer criteriologia, mas que, de alguma forma, as ideias transmitidas mantém-se presas (submersas) aos paradigmas mencionados no retro artigo.

[3] Ver STRECK, Lênio. Diferença (ontológica) entre texto e norma:

Afastando o fantasma do relativismo In: http://maialegalstudies.com/docs/lenio_luiz_streck_diferenca_ontologica_entre_texto_e_norma.pdf

[4] Ver STRECK. Lênio. As Recepções Teóricas Inadequadas Em Terrae Brasilis. In: http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/53/52. Ver também: OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni. Direito, Política e Filosofia: contribuições para uma teoria discursiva da constituição democrática no marco do patriotismo constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Juis, 2007, p.136-153.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Justiça Moedas // Foto de: Fotografia cnj // Sem alterações

Disponível em: https://flic.kr/p/ysDXDs

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura