Em torno da jurisdição: Apresentação

07/06/2015

Por Geraldo Prado - 07/06/2015

Voltar ao tema da Jurisdição. Esse tem sido o caminho escolhido para se prestar a devida homenagem à função de julgar, em um mundo de conflitos e controvérsias em que, pelo exercício da jurisdição, persegue-se a superação destes conflitos com o menor custo social possível.

Assim procedeu, em 1971, Alberto Candian, ao publicar, por iniciativa da Faculdade de Direito de Gênova, a obra “Tornare alla giurisdizione”, do mestre Gaetano Foschini, em homenagem ao autor/professor, emérito docente napolitano de processo penal, que encerrou sua carreira no magistério em Gênova. Sem dúvida a obra reverenciava também à função jurisdicional em si mesma, função a que Foschini dedicara grande parte de sua vida.

Não por coincidência este é, igualmente, o título da obra de Perfecto Andrés Ibañez.

Este admirado e admirável jurista espanhol, que está mais próximo do nosso público latino-americano nos dias atuais, e cujo compromisso com a democracia constitui fonte permanente de inspiração, acentua em seu “En torno a la jurisdicción” que, se é verdade que os direitos padecem em consequência do exercício prevaricador do poder, não é menos verdade que, nas democracias pós-fascismos, há necessidade do poder da jurisdição para conter estes mesmos abusos.

Citando Luigi Ferrajoli, Perfecto Andrés Ibañez literalmente sublinha que “é mérito das constituições nascidas da vitória sobre os nazifascismos haver-se dotado do instrumento jurídico idôneo para superar esta contradição [o poder para conter abusos do poder]”. Acrescenta o jurista e juiz espanhol que a Constituição, ao assumir o lugar mais alto da pirâmide kelseniana, dotando-a de uma esfera superior, que cuida do ‘dever ser do direito’, sujeita todos os momentos do exercício do poder à legalidade constitucional.

Sem dúvida de que não se trata de tarefa fácil. Ao revés, em sociedades de massas, em que o volume dos problemas corresponde ao aspecto gigantesco de sua configuração, e que são atravessadas por desafios contemporâneos que, para citar apenas um exemplo, expressam a apropriação (e exploração) simbólica da questão criminal pelos meios empresariais de comunicação, manipulando sentimentos e reações coletivas em proveito da manutenção de um status de profunda diferenciação social, julgar com a Constituição da República pode ser julgar “contra a opinião pública”.

Em pequenos grupos sociais, integrados por laços econômicos, sociais, políticos e afetivos, a explicitação dos motivos pelos quais os direitos são protegidos dessa ou daquela maneira, e não conforme a “vontade da maioria” é viável e talvez efi ciente para assegurar a base de legitimação do exercício da jurisdição. Trata-se de compartilhar a crença nos valores forjados especialmente nos três últimos séculos, no Ocidente, e pela proteção dos direitos fundamentais reafirmar o padrão ético que deve orientar a vida em sociedades plurais, desencantadas com a promessa da “paz absoluta”, que em verdade é a “paz dos cemitérios”, mas seguras de que a administração dos conflitos por via da jurisdição, com escrupuloso respeito aos direitos fundamentais, ergue-se como barreira contra abusos historicamente constatados. Há um “dado real”, da vida cotidiana, nos abusos de poder, que somente a avaliação distanciada (no tempo e, às vezes, no espaço) permite notar. E o caráter didático da jurisdição opera mais vivamente em grupos sociais em que as pessoas se conhecem, onde agentes e vítimas são personagens que dividem histórias e compartilham tradições.

Os grandes núcleos populacionais contemporâneos, no entanto, não estão unidos por laços da mesma ordem, diga-se de natureza pessoal. O sentimento difuso de pertencimento à mesma classe ou grupo social é moldado de outra matéria. O interesse (ou desinteresse) pela sorte do “próximo” é ditado pela consciência igualmente difusa de que não há qualquer pessoa fora do círculo íntimo, quase sempre constituído pelos familiares unidos por laços mais estreitos, a merecer que se considere sua “pessoalidade”, isto é, sua humanidade com tudo o que é peculiar a esta condição.

Daí o autoritarismo como expressão de um mundo “representado” nas subjetividades dominantes, que cresce no solo fértil da intolerância, da intransigência. Este autoritarismo respira na atmosfera do “presenteísmo”, de um eterno “tempo presente” que repudia a história das formações sociais e políticas e despreza o contexto em prol da coexistência em um ritmo e sob as condições que favoreçam o individualismo possessivo.

Para uma vida nessas circunstâncias, as contradições entre o discurso ético e as práticas pessoais antiéticas são questões menores, até certo ponto desprezíveis.

A retórica da generosidade cede ante a prática de tolher direitos para conter as grandes massas populacionais de excluídos que reivindicam direitos que a Constituição promete a todos, sem exceção.

E a jurisdição penal converte-se em um dos campos de disputa entre ambas as visões de mundo.

Decidir contra a vontade da maioria, em determinados casos, passa a ser considerado algo “quase heroico”. Esta, porém, é uma das contingências da jurisdição. Julgar contra a vontade da maioria nos casos em que esta vontade dirige-se contra os direitos fundamentais assegurados a todos.

Em uma democracia, e o Brasil é uma democracia política, não há lugar para “julgar conforme a vontade sadia do povo” em detrimento dos direitos fundamentais, que são barreiras a esta vontade orientada à supressão das minorias ou à opressão dos grupos e classes sociais mais frágeis, pelos mais poderosos, política ou economicamente.

Este livro reúne experiências judiciais, por meio de votos, e reflexões jurídicas, manifestadas em artigos, em virtude das quais se pretende homenagear a jurisdição criminal no Brasil.

Trata-se de acreditar que é possível decidir na seara criminal com a Constituição, mesmo que se prescinda do acordo com a opinião pública. As decisões contra majoritárias são, também, formadoras de opinião, ao menos no nível de formação dos profissionais do direito que, pelo suar do duro exercício diário de suas atividades, transmitem valores e argumentos que pesam, influenciam e estimulam a configuração de redes sociais que ocupam relevante papel nas decisões políticas contemporâneas.

Não há de fato nada de heroico nisso. Tampouco há certezas “absolutas”, que deem conta de todas as difíceis questões com as quais os juízes criminais lidam rotineiramente.

As decisões que estão neste livro exprimem pontos de vista do autor que podem estar equivocados. O juízo é exclusivo do leitor. O que se deseja é deixar ver, pelos esconderijos escolhidos pelas palavras das decisões, o refúgio de um pensamento que andou muito, do primeiro texto, em 1995, sobre culpabilidade, mas anotado como “arrependimento posterior nos crimes violentos” à profissão de fé no Estado de Direito, que a nomenclatura neoliberal grafa ideologicamente em letras menores (estado de direito).

Os votos manifestam a experiência jurídica tomada a sério. Com acertos e erros, repita-se, refletem a adoção franca e sincera de uma posição pelo Estado de Direito que busca não se acomodar diante do conforto que o exercício da profissão de juiz inegavelmente proporciona.

E os artigos exprimem uma determinada trajetória acadêmica que tem nos votos a projeção que permitirá, pela análise comparativa, identifi car simetrias, mas também contradições.

Há ainda outro propósito, mais de ordem prática.

Vários destes artigos andaram perdidos por aí. Do primeiro ao nono, os ensaios são de uma época em tudo distinta da atual, para o autor. Entre 1995 e 2004 os artigos foram divulgados em revistas ou livros que tiveram circulação limitada. Tê-los juntos, agora, proporciona a oportunidade da visão contextualizada de uma determinada produção intelectual para a qual concorreram inúmeros parceiros intelectuais, que foram e continuam sendo a principal influência do autor.

Vista por este ângulo há semelhança entre a composição de ensaios jurídicos e a de músicas.

Na história da constituição do pensamento de que resultaram os artigos da primeira fase, agora reunidos, há parcerias com compositores mais velhos, dois dos quais são explicitamente homenageados na fase atual (Afrânio Silva Jardim e Nilo Batista). Trata-se de atores políticos decisivos na delimitação do território do pensamento dogmático, que não haveria de cingir-se à mera e pobre tarefa de interpretação de textos legais. Weber Martins Batista, Leonardo Greco e Alberto Silva Franco também são credores do que de melhor pode haver desta fase refletida nos textos. Nenhum dos cinco tem responsabilidade por hesitações, eventuais equívocos conceituais e deficiências. A responsabilidade por isso sempre é do autor, com exclusividade.

Este também foi o período de gestação das obras Sistema Acusatório e Transação Penal, e de exercício da jurisdição na 2ª Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro e 37ª Vara Criminal, nesta sucedendo Sergio de Souza Verani, outro grande professor.

Os artigos posteriores dizem com outra fase, em que as parcerias vieram acompanhadas de um tipo de relacionamento em que se dividiram, ou melhor, compartilharam-se sonhos e utopias, cuja busca por concretização projetou-se em ações e associações concretas.

Em uma retrospectiva dessa ordem há sempre o risco de se omitir, involuntariamente, algum nome. A omissão, porém, certamente não diminui a gratidão do autor pelo que se beneficiou em termos de convivência e aprendizado, independentemente da idade ou condição pessoal do parceiro.

Quero expressamente citar Vera Malaguti, Gustavo Grandine[ i, Miguel Baldez, Maria Thereza Moura, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Lenio Luiz Streck, Aury Lopes Jr., Fauzi Hassan Choukr, Paulo Rangel, Alexandre Câmara, Claudio Brandão, Alexandre Wunderlich, Gustavo Badaró, Carlos Bacila, Edson Baldan, Ana Paula Zomer, Ana Lúcia Sabadell, Leonardo Sica, André Nicoli[ , Victoria-Amália Sulocki, Diogo Malan, entre tantos daqueles de cuja convivência o autor extraiu benefícios na forma de lição de vida e de Direito.

Por certo que os ensaios de dez a dezenove, desta segunda fase, repercutem, além das reflexões teóricas, a adoção de postura política que se quis distinguir pela articulação entre as diversas dimensões que conformam a prática social definida pelo direito.

E neste contexto e “para além da teoria” há decisivas contribuições: Salo de Carvalho, pela instigante capacidade de ampliar horizontes. Maurício Zanóide, que buscou alavancar o IBCCRIM, e transformá-lo em um projeto genuinamente nacional de “porto” do pensamento garantista. Rui Cunha Martins, hoje referência do autor em termos teóricos. Rubens Casara, que une as qualidades anteriores à vocação de concretizar o pensamento verdadeiramente democrático em decisões concretas, no exercício da jurisdição penal.

Aliás, de tantos parceiros implícitos (e explícitos, como é o caso do jurista e amigo Gustavo Grandine[ i), Rubens Casara está neste livro como a chave entre presente, passado e futuro. Ainda jovem, há muito é um excepcional jurista e juiz e agente político que, respeitando o significado da jurisdição, confere à função jurisdicional o perfil transformador que não pode estar ausente em uma sociedade periférica e concentradora de riquezas como ainda é este Brasil de 2010.

As divergências sobre o papel da hermenêutica filosófica (travadas em memorável troca de mensagens eletrônicas, com a intervenção de pensadores extraordinários, debate que, quem sabe, um dia virá à luz) somente fortalecem a admiração por quem guarda a autonomia como jeito de ser, inalienável, e enlaçada com a erudição que ilumina para todos e não, exclusivamente, para o intelectual. Há mais do Rubens Casara no artigo comum, publicado neste livro, do que do autor da coletânea. E esta é uma virtude, o leitor pode confiar.

Enfim, promovido por antiguidade ao cargo de Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em 2006, depois de 18 anos de exercício da magistratura em primeiro grau, e lotado desde 21 de fevereiro de 2008 na 5ª Câmara Criminal, por onde passou, como presidente, o formidável juiz Silvio Teixeira, este tem sido o locus do exercício da jurisdição criminal do autor.

Os votos escolhidos para a coletânea foram, em sua maioria, proferidos na 5ª Câmara Criminal. Nem sempre a redação dos textos faz justiça à contribuição dos demais votantes. A dívida do autor, todavia, é enorme e os credores não são apenas os atuais juízes titulares do colegiado, mas ainda os antigos titulares e os itinerantes.

Aqui vale o dito, sublinhado por Antonio Pedro Melchior, e cultivado com muito carinho no colegiado: a divergência é a expressão da democracia nos julgamentos coletivos!

Uma sociologia do judiciário revela o importante papel dos assessores dos magistrados. Mais do que curiosidade, um estudo desta monta serve para nortear as reformas legislativas e permite discutir a questão da legitimidade do exercício do poder jurisdicional, incluindo os mecanismos de investidura, em termos reais e racionais.

Os votos que constam do livro são decisões do autor, mas reproduzem a atuação coletiva de um gabinete formado por pesquisadores ideologicamente comprometidos com o Estado de Direito e com a transformação social.

Por isso, omitir os nomes dos assessores seria o mesmo que faltar com a verdade, em termos de coautoria dos textos que são o veículo do julgamento. E a falha seria agravada pelo fato de se deixar de reconhecer o papel, como intelectuais, destes profissionais e estagiários engajados.

Daí a referência a Mariana Kaiuca Aquim, Yolanda Pinto, Juliana Galhardo, Fernanda Peixoto Cassiano, Helena Guedes, Priscila Pontes e Antonio Pedro Melchior.

O encerrar esta apresentação reclama renovar a advertência de que decidir as causas criminais, tendo como parâmetro os direitos fundamentais, não é exercício de heroísmo, mas cumprimento de dever e compromisso com a dignidade.

Não raro, em palestras, o autor termina contando a aventura de Miguel Littín, clandestino no Chile durante a ditadura militar comandada pelo general Pinochet.

Em 1985, por seis semanas, o diretor de cinema Miguel Littín, que havia sido proscrito por decisão da ditadura, retorna ao Chile para filmar as condições concretas de vida naquela ocasião. Ele o faz, por óbvio, cercado de cuidados e durante sua estada corre muitos riscos, chegando a estar frente a frente com o ditador Pinochet.

Ao deixar Santiago, em direção a Montevidéu, de avião, o cineasta quase é descoberto. Indagado por Gabriel Garcia Marques (autor da reportagem, publicada pela Record) sobre se aquele havia sido um ato de coragem, heroico, Miguel responde que não, que em realidade fora o ato mais digno de sua vida.

Esta talvez seja a melhor lição para quem se dedica ao afazer de julgar causas criminais: agir com dignidade.


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Geraldo Prado é professor da UFRJ e consultor jurídico.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                


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