Em defesa do Estado Democrático de Direito contra o risco atual do Estado Tutelar de Polícia: Uma crítica ao desrespeito judicial à Constituição e à legislação processual penal no Brasil – Por Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes de Moraes Bahia, Diogo

07/03/2016

O sentido da Constituição e da lei está, mais uma vez, em disputa. Analisamos e alertamos sobre as possíveis consequências do julgamento no HC 126.292 pelo Supremo Tribunal Federal[1]. Pois bem, nem completamos um mês desde o nefasto julgamento do HC 126.292 e já podemos sentir a tônica que os tribunais darão a tal decisão.

É bem verdade que, fôssemos um sistema jurídico acostumado a lidar com os precedentes, os Tribunais e juízes poderiam praticar um verdadeiro sub silentio overruling[2] ou uma superação implícita da decisão do STF, sem falar na erosão do precedente para se chegar a uma decisão oposta ao decidido, o chamado undermining[3]. Para tanto, basta que os Tribunais e juízes aplicassem um artigo de lei ainda em vigor que, ao que tudo consta, não foi objeto de declaração de inconstitucionalidade, o art. 283 do CPP.

Mas a recepção que a ideia de precedentes sofreu em nosso sistema jurídico é a de que eles não servem no processo de argumentação das partes – como ocorre nos países de common law –, mas sim como ponto final do processo de argumentação[4]. Assim, as decisões proferidas pelas mais altas Cortes são cegamente seguidas pelos juízes inferiores que não se preocupam em aplicar o direito à sua melhor luz no caso concreto, nem em aplicar o direito reconstruindo as circunstâncias do caso em questão, como Dworkin[5] e Günther[6] nos ensinam.

Daí que a consequência é trágica para o ordenamento, como se vê no caso que aqui analisamos. De um lado, não se aplica adequadamente o precedente e, de outro, desconsideram-se as normas legais vigentes. Ou seja, não somos um sistema de common law e estamos deixando de ser um sistema de civil law[7]. Sistemas de jurisdição mista (mixed jurisdiction) são uma tendência mundial (dos dois lados dos grandes sistemas “puros”); contudo, o que deve haver é uma soma – de experiências, de práticas, de esforços, de ganhos havidos nas tradições – e não o abandono de todos os ganhos da construção anterior em troca de uma vulgata do novo.

Igualmente, diríamos, também corremos o sério risco de estarmos abandonando o Estado de Direito (Rule of Law) para estabelecermos uma espécie de Estado Tutelar de Polícia, um verdadeiro “estado de exceção interpretativo”, como alerta Lenio Streck[8].

Assim, veja-se que o Superior Tribunal de Justiça, no dia 03 de Março de 2016, através de sua Sexta Turma, julgou o Recurso Especial 1.484.415/DF, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, para determinar a execução da pena do ex-Deputado Distrital e ex-Governador Benedito Domingos, que foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, sem que houvesse o trânsito em julgado da referida condenação[9] – e a justificativa que foi dada foi a referida mudança de entendimento do STF.

Ora, antes de qualquer coisa, é preciso que se esclareça que o acórdão do Supremo Tribunal Federal ainda não foi publicado, o que já, per si, inviabilizaria sabermos os argumentos lançados por cada um dos Ministros e que constituiu a ratio decidendi do HC n. 126.292 em toda a sua extensão.

Embora no caso do julgamento do Recurso Especial também não tenhamos o inteiro teor do acórdão, já se encontra disponível o voto vencedor do Rel. Min. Rogério Schietti Cruz[10]. Nesse caso o Ministério Público postulou nos autos do Recurso Especial a expedição de mandado de prisão, à vista do entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal Federal, muito embora houvesse embargos de declaração aposto pela defesa.

Nosso objetivo não é, obviamente, discutir o caso concreto e as circunstâncias que os cercam. Pretendemos problematizar a forma inadequada com que o Superior Tribunal de Justiça procurou seguir o novo entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da possibilidade de execução da pena antes do trânsito em julgado de decisão condenatória.

Nos termos do voto do relator, Min. Rogério Schietti Cruz, no item que se refere ao novo entendimento do Supremo Tribunal Federal, quer ele fazer crer que o STF aplicou entendimento “mite” ou “dúctil” de Gustavo Zagrebelsky “para quem o direito é disciplina prática, necessariamente ancorada na realidade”[11]. Segundo confia o Ministro, o julgamento do STF teve como móvel um suposto quadro caótico do processo penal brasileiro, muito em virtude do alto número de meios recursais existentes no Código de Processo Penal e demais legislações esparsas, contabilizando um total de 20 (vinte) meios recursais e de impugnação aos atos jurisdicionais para a defesa[12]: “em diversos pontos dos votos dos eminentes juízes que participaram da sessão ocorrida em 17 de fevereiro próximo passado, assinalou-se, como móvel para a referida guinada jurisprudencial, a gravidade do quadro de ‘desarrumação’ do sistema punitivo brasileiro, máxime por permitir a postergação da definição do juízo de condenação, mercê dos inúmeros recursos previstos na legislação processual penal”[13].

Assim, está claro para a Sexta Turma do STJ que o entendimento do Supremo Tribunal Federal destinar-se-ia a promover uma “arrumação” no sistema processual brasileiro[14], mesmo que o Relator tenha afirmado que o mais adequado seria o caminho legislativo que, no entanto, foi frustrado quando da apresentação da chamada “PEC dos Recursos”.

Isto é, se o Legislativo, ainda que, inclusive, como poder constituinte derivado, não fez seu trabalho ou então pretendeu de início fazê-lo violando as cláusulas pétreas do art. 60, § 4.º, da Constituição, não cabe a um Tribunal assumir tarefa legislativa que não é sua. Noutras palavras, tem-se o agravamento do problema da inércia do Legislativo ou mesmo de sua atuação inconstitucional – se é que o caso da chamada “PEC dos Recursos” fora de inércia ou de vontade expressa –, com a avocação espúria de uma espécie de “poder constituinte” por parte de um Tribunal. Ora, se o Supremo Tribunal Federal – assim como qualquer órgão público e cada cidadão (nos termos propostos por Peter Häberle[15]) – é um guardião da Constituição, ele não pode se comportar como se fosse “dominus” dela, sob pena de frustrar a co-participação democrática de todos nos processos constitucionais, privatizando a Constituição a alguns poucos.

O Relator, Min. Rogério Schietti Cruz, continua alegando que, em sua “opinião”, a correção do sistema punitivo deveria ser realizada por meio da modificação da redação do princípio da presunção da não culpabilidade. Bastaria, então, “escrever tal princípio em nossa Carta Magna sem fazer referência ao trânsito em julgado da sentença; algo como “todos devem ser considerados inocentes até que se prove o contrário”, ou “o acusado em um processo penal deve ser considerado inocente até que se prove sua culpa.”[16].

No entendimento do Min. Rogério Schietti Cruz, tal modificação redacional não ofenderia a garantia da vedação de supressão ou abolição dos direitos e garantias individuais (art. 60, §4º, inc. IV da CR/88), já que manteria incólume o núcleo essencial da presunção de inocência: “Reafirmo que não se cogita, ainda que remotamente, de abolir ou diminuir essa verdadeira conquista civilizatória. Contudo, preservado o núcleo essencial dessa garantia, não haveria razão para se impedir que, ajustada sua redação por meio de reforma constitucional, fosse alcançado o salutar e desejado equilíbrio entre os interesses individuais e os interesses sociais que permeiam tanto a persecução quanto a punição de autores de condutas criminosas”[17]. Entretanto, o Relator não escreve nenhuma linha a respeito da proibição do retrocesso em matéria de direitos fundamentais e se tal se aplica também ao princípio da presunção de inocência – além de não levar a sério o que dispõe o §4º do art. 60 da Constituição, igualmente parece se esquecer de que, se a Constituição é um projeto aberto, o é para se permitir a inclusão de novos direitos e de novos sujeitos e nunca o inverso (§2º, do art. 5º, da CR/88)[18]. Com efeito, mesmo aqueles que, como Gomes Canotilho, admitem que o princípio da irreversibilidade não se constitui em um núcleo duro, também acreditam na irrazoabilidade de uma desproporcional e retroativa afetação de direitos subjetivos incorporados ao patrimônio do cidadão[19].

A questão é que uma pseudo-arrumação que o Poder Judiciário pretende fazer em nosso sistema processual tem uma simples conotação já denunciada tantas vezes por Lenio Streck: ao invés de combatermos a doença, simplesmente matamos o doente.

De fato, a simples modificação redacional de um dispositivo constitucional contribui para a restruturação da dinâmica processual? Não seria preciso uma modificação no próprio exercício da jurisdição ao invés da ingênua crença de que se mudarmos a sintática de um texto normativo então estariam resolvidos nossos problemas?

De toda forma, toda eventual mudança no sistema processual penal, seja legislativa, seja mesmo pela discutível via jurisprudencial (já que o Direito Processual Penal submete-se à legalidade, a não ser que novo entendimento jurisprudencial seja construído em favor das garantias do acusado), deve respeitar a Constituição da República e não representar um retrocesso em matéria de garantia de direitos fundamentais. Seja o novo entendimento do STF em relação à possibilidade de execução da pena antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, seja uma proposta de emenda que venha a alterar a redação da Constituição ou da legislação infraconstitucional que desconsidere a exigência do trânsito em julgado da decisão condenatória para a execução da pena, repetimos, é inconstitucional.

O problema maior na fundamentação do voto do Relator, Min. Rogério Schietti Cruz, ainda é o aspecto abordado acerca do art. 283 do Código de Processo Penal e sua relação com o que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal. Ele reconhece que o art. 283 do CPP com a redação dada pela Lei 12.403/11 veio expressamente a aduzir que toda e qualquer prisão antes do trânsito em julgado deveria ser caráter cautelar[20]. No entanto, em face da decisão do Supremo Tribunal Federal, a aplicação do art. 283 do CPP deveria ser afastada, segundo o Min. Rogério Schietti Cruz, haja vista que tal regra teria como fundamento o princípio da não culpabilidade, que o próprio Supremo Tribunal Federal deu conta de conferir nova interpretação: “o art. 283 do Código de Processo Penal encontra sua essência no princípio constitucional da presunção de não culpabilidade. Logo, se o próprio Pretório Excelso, ao interpretar o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade, entendeu pela possibilidade de execução provisória da pena após a prolação de acórdão condenatório, não vejo como uma interpretação a regra infraconstitucional possa contraditar o alcance de sentido que foi emprestado ao princípio que dá sustentação a essa regra infraconstitucional, porquanto, sob a perspectiva kelseniana, as normas inscritas na Carta Maior se encontram no topo da pirâmide normativa, à qual todo o sistema jurídico deve se conformar”[21].

Jamais iremos nos opor ao fato da Constituição ser o cume de nosso ordenamento jurídico, donde as demais leis devem retirar seu fundamento de validade formal e material. Mas o Min. Rogério Schietti Cruz se esquece de que a Constituição não é aquilo que o Supremo Tribunal Federal diz que ela é – como se este fosse o superego de uma sociedade órfã, nos termos postos por Ingeborg Maus para criticar o ativismo do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha[22]. Fosse assim poderíamos prescindir de um texto escrito e deixarmos o Supremo Tribunal Federal conduzir nossa vida em sociedade.

Ademais, não é o Superior Tribunal de Justiça o guardião da legislação infraconstitucional, de acordo com suas funções constitucionalmente estabelecidas? Acaso positivo, como o Superior Tribunal de Justiça pode deixar de aplicar as leis vigentes neste País?

Basta lembrarmos que o Supremo Tribunal Federal em nenhum momento declarou a inconstitucionalidade do art. 283 do CPP, fazendo um “drible hermenêutico” (Streck) para aplicar a pena provisoriamente antes do trânsito em julgado.

E a própria decisão do Superior Tribunal de Justiça também realiza um “drible hermenêutico” para evitar a aplicação do art. 283 do CPP. Vale salientar, nos termos com que denuncia Lenio Streck: uma lei só poderá deixar de ser aplicada se: a) se for inconstitucional, declarada em controle difuso ou concentrado, b) se for possível uma interpretação conforme a Constituição, c) se for o caso de nulidade parcial sem redução de texto, d) no caso de uma inconstitucionalidade parcial com redução de texto, e) se se estiver em face de resolução de antinomias e f) no caso do confronto entre regra e princípio[23].

No caso em questão não nos parece que o Superior Tribunal de Justiça tenha declarado a inconstitucionalidade do art. 283 do CPP. Aliás, com a pretensão de seguir um entendimento jurisprudencial do STF, a decisão acaba por infringir decisão vinculante do Supremo Tribunal Federal. É que, conforme o enunciado 11 da súmula vinculante do STF, “viola a cláusula de reserva de plenário (CR, art. 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”.

Em primeiro lugar, órgão fracionário, exceto se já houver entendimento anterior do órgão especial, não pode afastar a aplicação da lei no caso concreto e negando vigência ao ato normativo em vigor, sob pena de violação da regra full bench do art. 97, da Constituição Federal. Fosse para declarar a inconstitucionalidade do art. 283 do CPP, então o caso deveria ser afetado ao plenário do Superior Tribunal de Justiça que somente seria declarada pela maioria absoluta dos seus Ministros.

Assim, na busca da celeridade processual, o Superior Tribunal de Justiça acaba de dar um tiro pela culatra. É que dessa decisão caberá tanto reclamação ao STF por violação ao entendimento expresso no enunciado 11 da Súmula Vinculante, quanto Recurso Extraordinário com fundamento no art. 97 da Constituição Federal.

Por isso, perguntamos, mais uma vez: Qual o papel que deve exercer o Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito? É o da defesa da Constituição e da lei democráticas. E se os sentidos da Constituição e da lei estão em disputa, cabe aos cidadãos, aos movimentos sociais e à sociedade civil organizada lutarem jurídica e politicamente por uma prática institucional que respeite os direitos e as garantias fundamentais, especialmente, contra o sério risco do estabelecimento de um Estado Tutelar de Polícia entre nós.

No dia posterior à decisão tomada pelo Superior Tribunal de Justiça e aqui analisada, o ex-Presidente Lula foi conduzido coercitivamente a uma Delegacia da Polícia Federal em um aeroporto em São Paulo para prestar depoimento por meio de decisão dada pelo Juiz Federal Sérgio Moro. Ora, o mandado de condução coercitiva foi determinado por despacho do Juiz Sérgio Moro sob o argumento, injustificável, de se evitarem confrontos entre manifestantes[24].

Tão logo a condução coercitiva ocorria, juristas já corretamente denunciavam a inconstitucionalidade e a ilegalidade da medida, que ofendeu os arts. 218 e 260 do Código de Processo Penal que determinam a intimação prévia, tanto para testemunha quanto para acusado, ao ato de “condução coercitiva”[25].

As associações de magistrados logo se apressaram em emitir uma nota buscando argumentar que não houve excesso ou ofensa à Constituição e às leis vigentes, tal como a nota apresentada pela Associação de Juízes Federais do Brasil (Ajufe)[26], e nem qualquer apelo midiático por parte da atuação dos agentes públicos no mandado de condução coercitiva.

É bom lembrar que emitir uma nota em termos meramente retóricos não transforma como que em um passe de mágica um ato abusivo, ilegal, inconstitucional em ato válido. No Estado de Direito, não faz o menor sentido que qualquer um que tenha de depor em inquéritos e processos judiciais seja conduzido coercitivamente sem intimação prévia – nunca foi essa a práxis anterior e, esperemos, nem será no futuro.

Em verdade, como muito bem afirma Leonardo Yarochewsky, o que houve no caso foi um sequestro, travestido de condução coercitiva[27], que deverá, inclusive, ser objeto de responsabilização nas mais diferentes esferas.

Analisando os acontecimentos, tanto da decisão do STF e do STJ restringindo garantias constitucionais e, agora, a decisão da Justiça Federal em conduzir coercitivamente o ex-Presidente Lula a depor sem intimação prévia, cabe, mais uma vez, reafirmar o papel constitucional a ser desempenhado pelo Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito, o da garantia da Constituição e da lei sem, contudo, que, para isso, se pretenda usar a Constituição ou lei contra elas mesmas, por meio de interpretações restritivas, violadoras de direitos e garantias constitucionais[28].

Terminamos, aqui, com o diagnóstico já feito por Jessé de Souza, antes mesmo dos referidos acontecimentos: “São os órgãos de controle como TCU, MP e Polícia Federal, aliados aos ‘Juízes justiceiros’, incensados pela mídia conservadora como os novos heróis do povo (leia-se classe média conservadora), como os novos representantes da vontade geral (ou seja, os interesses econômicos do 1% mais rico); supostamente acima da política, que são os novo candidatos a incorporar o poder moderador da pseudo-democracia tutelada brasileira”[29].

Ora, veja-se, por exemplo, que os representantes do Ministério Público podem se associar a uma mídia interessada economicamente e ideologicamente nos resultados de uma investigação criminal[30]. Ministério Público que se autoproclama salvador de nosso processo político e da condução da coisa pública. É preciso, então, estabelecer um limite de responsabilidade para o Ministério Público. Ao invés de mirar seus poderes institucionais para instituir um Estado policialesco, é preciso que o Ministério Público aja de acordo com suas funções de defesa da democracia e da Constituição e também às minorias políticas, como diz Álvaro Ricardo de Souza Cruz e Gustavo Hermont Corrêa: “Este apelo para o Ministério Público não é apenas a defesa da democracia e do Estado de Direito. O apelo que se faz é pela defesa da humanidade do ser humano. Apelo pelo respeito ao Outro. Respeito aos direitos dos excluídos, dos hipossuficientes, dos órfãos, dos estrangeiros. Respeito aos invisíveis da sociedade, como os moradores de rua e os presidiários”[31].

Se nos primeiros anos de vigência da nova Constituição, diante da inércia dos Poderes Legislativo e Executivo para tomarem medidas e ações necessárias ao cumprimento das normas e à realização dos objetivos constitucionais, parcela significativa da doutrina jurídica brasileira apostou na atuação concretizadora do Judiciário, naquilo que muitos chamaram de “neoconstitucionalismo” ou mesmo de “constitucionalismo da efetividade”, cabe dizer que essa legitimação ou o “empoderamento” judicial, sustentado doutrinariamente, jamais teve o sentido de uma “carta branca” para que a Jurisdição brasileira viesse a tutelar paternalisticamente o processo político democrático ou, o que agora vivemos, sob o argumento paternalista da eficácia na condução de políticas a que, diga-se, não cabe a ele, Judiciário, realizar, e muito menos um “cheque em branco” para que passasse a desrespeitar os direitos fundamentais mais comezinhos dos cidadãos, expondo o País ao risco de uma espécie de Estado Tutelar de Polícia.

O risco dessa forma de Estado policialesco é sobejamente conhecido em nossa história nacional: esteve presente no Brasil da última ditadura, no qual políticos, sindicalistas e trabalhadores, professores, estudantes, jornalistas, funcionários públicos, minorias sociais em geral e mesmo militares foram cassados, perderam seus cargos e empregos, foram impedidos de trabalhar e de contratar, além de monitorados, perseguidos, sequestrados, violentados, exilados e assassinados por agentes do regime ou com a sua cumplicidade - a partir de denúncias e de acusações, fossem clandestinas ou mesmo formais, sobre seus posicionamentos ideológicos. Tudo o que não precisamos é a instauração de qualquer versão de autoritarismo, antiga ou mesmo futurista, como no já clássico “Minority Report”[32].

É, portanto, inadmissível que alguém se comporte ilegitimamente como se estivesse acima da Constituição e da lei democráticas, ainda que sob o argumento de protegê-las, ou que pretenda, assim, como uma espécie de novo poder moderador, tutelar (ainda que sob o argumento “mite”, “dúctil”, de um Zagrebelsky lido, todavia, pelo Min. Schietti), o processo político democrático: a democracia não necessita de tutores.


Notas e Referências:

[1] BAHIA, Alexandre, BACHA E SILVA, Diogo, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, PEDRON, Flavio Quinaud. Presunção de Inocência: uma contribuição crítica à controvérsia em torno do julgamento do Habeas Corpus n.º 126.292 pelo Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/presuncao-de-inocencia-uma-contribuicao-critica_/, acesso em 05 de Março de 2016.

[2] GERHARDT, Michael J. The power of precedent. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 35.

[3] CROSS, Rupert; HARRIS, J.W. El precedente en el derecho ingles. Madrid: Marcial Pons, 2012. p. 158.

[4] BAHIA, Alexandre; BACHA E SILVA, Diogo. O novo CPC e a sistemática dos precedentes: para um viés crítico das reformas processuais. Revista Direito, Estado e Sociedade, n. 46, p. 38 a 71, jan./jun. 2015.

[5] DWORKIN, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

[6] GÜNTHER, Klaus. The sense of appropriateness: Application discourses in morality and law. Trad. John Farell. New York: State University of New York, 1993.

[7] BACHA E SILVA, Diogo. A valorização dos precedentes e o distanciamento entre os sistemas civil law e common law. In: Direito jurisprudencial: volume II. WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; MARINONI, Luiz Guilherme; MENDES, Aluisio Gonçalves (orgs.). São Paulo: Editora RT, 2014.

[8] STRECK, Lenio. Hermenêutica e positivismo contra o estado de exceção interpretativo. Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-fev-25/senso-incomum-hermeneutica-positivismo-estado-excecao-interpretativo.

[9] Notícia disponível em: http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/Not%C3%ADcias/Not%C3%ADcias/Sexta-Turma-determina-pris%C3%A3o-imediata-do-ex%E2%80%93vice%E2%80%93governador-do-DF-Benedito-Domingos, acesso em 05 de Março de 2016.

[10] Voto disponível em: http://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/RESp1484415.pdf, acesso em 05 de Março de 2016.

[11] Voto disponível em: http://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/RESp1484415.pdf, acesso em 05 de Março de 2016.

[12] O estranho é que não se viu nenhuma voz do Poder Judiciário atribuindo a culpa da morosidade na escassez de recursos, nos tempos mortos do processo, na má-gestão processual e até na desídia de servidores públicos.

[13] Voto disponível em: http://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/RESp1484415.pdf, acesso em 05 de Março de 2016.

[14] Precisamos esclarecer que o julgamento contou com dois votos vencidos: Ministra Maria Thereza de Assis Moura e Sebastião Reis Junior.

[15] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Porto Alegre Fabris, 2002.

[16] Voto disponível em: http://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/RESp1484415.pdf, acesso em 05 de Março de 2016.

[17] Voto disponível em: http://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/RESp1484415.pdf, acesso em 05 de Março de 2016.

[18] Ou, como diz a Emenda n. IX à Constituição dos EUA: “A enumeração de certos direitos na Constituição não poderá ser interpretada como negando ou coibindo outros direitos inerentes ao povo”.

[19] CANOTILHO, J.J. Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. 2ª ed. Coimbra: Editora Coimbra, 2008. p. 111.

[20] Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

[21] Voto disponível em: http://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/RESp1484415.pdf, acesso em 05 de Março de 2016.

[22] MAUS, Ingeborg. O Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã”. Trad. Martonio Barreto Lima e Paulo Albuquerque. Revista Novos Estudos CEBRAP, nº 58, nov. de 2000. Disponível em http://novosestudos.uol.com.br/v1/files/uploads/contents/92/20080627_judiciario_como_superego.pdf.

[23] Seu rol detalhado está em: STRECK, Lenio. Verdade e consenso. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 605-606.

[24] Veja-se, pois, o teor do despacho: “Colhendo o depoimento mediante condução coercitiva, são menores as probabilidades de que algo semelhante ocorra, já que essas manifestações não aparentam ser totalmente espontâneas” Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/pf-violou-lei-penal-ordem-moro-conduzir.pdf, acesso em 05 de Março de 2016.

[25] Por todos, o qual subscrevemos, ver: STRECK, Lenio. Condução coercitiva de ex-presidente Lula foi ilegal e inconstitucional. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-mar-04/streck-conducao-coercitiva-lula-foi-ilegal-inconstitucional, acesso em 05 de Março de 2016 e YAROCHEWSKY, Leonardo. O Estado penal não tem limites. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/o-estado-penal-nao-tem-limites-por-leonardo-isaac-yarochewsky/. Ver também, entre outros, no mesmo sentido a posição do ex-Ministro da Justiça, do Governo FHC, José Gregori, disponível em http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/03/160303_gregori_lula_pf_ms. Min. Marco Aurélio, do STF, disponível em http://www.brasil247.com/pt/247/poder/219739/Marco-Aur%C3%A9lio-Moro-atropelou-regras.htm. Gilberto Bercovici, disponível em http://www.vermelho.org.br/noticia/277174-1 . Celso Antônio Bandeira de Mello, disponível em http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2016/03/ato-contra-lula-equivale-a-uma-confissao-de-medo-diz-bandeira-de-mello-6999.html. Fábio Konder Comparato, disponível em http://www.vermelho.org.br/noticia/277158-1. E Pedro Serrano, disponível em http://www.cartacapital.com.br/politica/eu-tenho-pouca-esperanca-de-que-a-constituicao-e-a-lei-sejam-observados.

[26] Disponível em: http://www.ajufe.org/imprensa/noticias/juizes-federais-rebatem-qualquer-alegacao-de-ofensa-a-democracia-e-a-constituicao-na-operacao-lava-jato/, acesso em 05 de Março de 2016.

[27] Yarochewsky, Leonardo. O Estado penal não tem limites. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/o-estado-penal-nao-tem-limites-por-leonardo-isaac-yarochewsky/, acesso em 05 de março de 2016.

[28] E, cabe dizer, o Judiciário também não pode se amesquinhar à defesa de privilégios corporativos, como muito bem critica, p. ex., Thomas Bustamante em O Corporativismo nas Prerrogativas do Poder Judiciário e a Anamatra: de Ronald Dworkin a Ray Charles e Miles Davis. Disponível em: http://jota.uol.com.br/o-corporativismo-nas-prerrogativas-do-poder-judiciario-e-a-anamatra-de-ronald-dworkin-a-ray-charles-e-miles-davis, acesso em 05 de Março de 2016.

[29] SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015. p. 260.

[30] Disponível em: http://jornalggn.com.br/blog/weden/cartel-de-midia-e-mp-uma-relacao-delicada-por-weden, acesso em 06 de Março de 2016.

[31] CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza, CORRÊA, Gustavo Hermont. Ministério Público: um super-herói em busca de responsabilidade. In: CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (org.) O outro e o direito. Vol. II. Belo Horizonte: Arraes, 2015. p. 155.

[32] Sobre isso, ver STRECK, Lenio. O pacote anticorrupção do Ministério Público e o fator Minority Report. Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-mar-03/senso-incomum-pacote-anticorrupcao-mpf-fator-minority-report. Ver também STRECK, Lenio. Pacote retroage mais de mil anos. Disponível em http://zh.clicrbs.com.br/rs/opiniao/noticia/2016/02/lenio-streck-pacote-retroage-mais-de-mil-anos-4984832.html.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Thoughtful // Foto de: Jon-Eric Melsæter // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/jonmelsa/16412223283

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura