Efeito Inverso: Portaria 67/2017 do Ministério da Justiça e Cidadania poderá levar ao descumprimento dos direitos consulares do preso estrangeiro

04/02/2017

Por Jeison Batista de Almeida - 04/02/2017

No dia 18 de janeiro deste ano, o Ministério da Justiça e Cidadania, sob a rubrica do Ministro Alexandre de Morais, publicou-se a Portaria 67/2017. A referida portaria tem (teria) por finalidade o cumprimento do disposto no artigo 36 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 1963 - CVRC, internalizada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 6, de 1967, e promulgada pelo Decreto nº 61.078, de 26 de julho de 1967, que prevê direitos subjetivos ao estrangeiro restringido em sua liberdade.

Ao nosso sentir, a portaria abre um diálogo com a atual posição do Supremo Tribunal Federal – STF, expressa principalmente na Prisão Preventiva para Extradição nº 726, de relatoria do Ministro Celso de Mello, e com a Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, na Opinião Consultiva de nº 16/1999, sobre o direito de informação sobre a assistência consular no marco das garantias do devido processo legal[1]. Pois, o conteúdo da portaria quanto a importância dos direitos consulares do preso estrangeiro e do efeito do seu incumprimento, reverbera alguma jurisprudência do STF[2] espelhada na jurisprudência da CIDH[3].

É oportuno dizer que o art. 36 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares (e os direitos consulares do preso estrangeiro) não possui interpretação uníssona na sociedade internacional. De fato, a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Tribunal Internacional de Justiça - TIJ[4] possuem entendimentos distintos sobre dois principais temas: i) o prazo para que o Estado que restringiu a liberdade do estrangeiro teria para informá-lo dos seus direitos consulares; ii) e quais as consequências jurídicas do incumprimento desses direitos.

Como podemos perceber, a portaria inspira-se, claramente, no entendimento da CIDH, fato que é louvável, por aprimorar o diálogo com nossa corte local de direitos humanos e por ser a intepretação da CIDH a que mais beneficia o indivíduo (a interpretação que o TIJ dá ao art. 36 é mais restritiva, é dizer, é menos benéfica ao estrangeiro preso).

À primeira vista, é louvável a edição da Portaria 67/2017, pois além de expressar a melhor interpretação da norma consular, contribui para o aprimoramento da efetividade do art. 36 da CVRC que por anos passou desapercebido pelas autoridades brasileiras, fato até mesmo confessado pelo Ministro Celso de Melo, no julgamento da Extradição n.º 1.126 de 2009. Em seu voto, o Ministro asseverou que até aquele momento a existência da aplicação do art. 36 fora praticamente desconhecida pela suprema corte, e que em vários casos envolvendo estrangeiros presos no Brasil passou despercebido o cumprimento ou não do Direito Consular.

Pois bem, o objetivo da portaria é claro: cumprir o disposto na Convenção de Viena sobre Relações Consulares (em sua interpretação mais benéfica) para que o Estado brasileiro não incorra em responsabilidade internacional.

No entanto, em uma leitura atenta do conteúdo da portaria, percebe-se que o tiro poderá sair pela culatra, por possível má percepção do conteúdo do art. 36 e dos direitos que garante ao estrangeiro preso. Segundo a sistemática do art. 36, são conferidos ao estrangeiro o direito de informação, notificação, comunicação e de assistência consular[5].

O direito de notificação consular, referido na Portaria 67/2017, está previsto na primeira parte da alínea “b”, §1.º, do artigo 36, da CVRC e se conceitua como o direito do estrangeiro restringido em sua liberdade de solicitar e obter que as autoridades competentes do Estado receptor (aquele que restringe a liberdade do estrangeiro) notifiquem, sem tardar, sobre sua prisão à repartição consular competente. Deste modo, impõe-se ao Estado receptor o dever de notificar o Estado que envia (aquele do qual é nacional o estrangeiro restringido em sua liberdade) que seu nacional foi preso.

Ao ser informado do seu direito de notificação, o estrangeiro tem a faculdade, segundo o Direito Consular codificado, de optar se sua prisão será ou não notificada à repartição consular do seu Estado nacional. Esta condicionante, baseada na vontade do indivíduo, foi motivo, nas palavras de Maresca, de uma das “fases más laboriosas, difíciles y, a veces, dramáticas de la historia de la Conferencia[6] de Viena sobre Relações Consulares. Maresca chega a esse entendimento em virtude das mudanças ocorridas no projeto de artigos apresentado pela Comissão de Direito Internacional no decorrer da Conferência de Viena sobre Relações Consulares, em relação ao caráter automático ou condicional do direito de notificação. Segundo o mesmo autor, a norma consular de Direito consuetudinário tende a estabelecer um dever automático de informação por parte das autoridades locais à repartição consular do Estado que envia, prescindindo da manifestação de vontade do indivíduo, com base na presunção absoluta do seu desejo de receber assistência consular[7].

A ter em vista a norma consuetudinária sobre a assistência consular, a Comissão de Direito Internacional - CDI, em seu projeto de artigos da CVRC, adotou como critério que as autoridades do Estado receptor notificariam automaticamente a repartição consular do Estado estrangeiro, quando um nacional fosse restringido da sua liberdade pessoal. Posteriormente, quando o projeto de artigos foi analisado pela segunda Comissão, foi realizada proposta de emenda ao artigo 36, destinada a eximir as autoridades do Estado receptor do dever de notificação (à repartição consular) nos casos em que o estrangeiro preso se opor.

Entretanto, a emenda apresentada não prosperou, em votação com uma maioria restringida. Posteriormente, na Assembleia Plenária da Conferência de Viena[8], foi aprovado um texto que modificou a do projeto de artigos apresentado pela CDI. Enquanto, até o momento, a notificação prescindia da vontade do indivíduo (norma inspirada no Direito consuetudinário), é dizer, era automática, no texto final aprovado, a informação à repartição consular só será efetivada mediante a vontade do indivíduo interessado.

Neste desiderato, podemos denotar que, conforme o texto do artigo 36 da CVRC, a efetivação da notificação consular está condicionada, unicamente, a vontade do indivíduo. Ao ser informado do seu direito de notificação consular, e houver recusa do indivíduo, o Estado receptor deve-se abster de notificar a repartição consular da sua prisão, fato que obstará, consequentemente, à realização do direito dos funcionários consulares de promover assistência consular ao seu nacional restringido em sua liberdade.

Em sentido oposto, a portaria do Ministério da Justiça e Cidadania, ao que parece, impõe as autoridades policiais brasileiras, o dever automático de notificação das autoridades consulares, sem levar em consideração o consentimento do indivíduo. Seu art. 1º diz:

Art. 1º As autoridades policiais das Polícias Federal e Rodoviária Federal, em todas as suas ramificações no território nacional, observadas as disposições constitucionais e legais, devem exercer e fiscalizar a notificação consular decorrente da aplicação do Artigo 36 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares, de 1963, que impõe às autoridades brasileiras que cientifiquem, sem demora, a autoridade consular do País a que pertence o estrangeiro, sempre que este for preso, qualquer que seja a modalidade da prisão.

Se as autoridades policiais brasileiras cumprirem, ipsis litteris, o disposto na portaria, é dizer, notificar a repartição consular do Estado que envia, sem obter o consentimento prévio do estrangeiro, o Estado brasileiro estará descumprindo a CVRC e poderá ser responsabilizado internacionalmente por isso.

É intuitivo mensurar que em alguns casos o estrangeiro não quer qualquer tipo de contato com seu Estado de nacionalidade. Em casos particulares, a notificação consular poderá fazer mais mal que bem ao indivíduo.

A bem da realidade, o principal direito do estrangeiro preso garantido pela CVRC é o direito de informação consular. O direito de informação sobre a assistência consular foi codificado na última frase da alínea “b”, §1.º, do artigo 36, da CVRC. O texto da Convenção aduz que o Estado receptor deverá, através da autoridade competente, informar imediatamente o nacional do Estado que envia, de que este possui direitos decorrentes do próprio artigo 36: os direitos de notificação, comunicação e assistência consular.

O direito de informação sobre a assistência consular é peça fundamental para todo o sistema da Assistência Consular ao Preso Estrangeiro garantido pela CVRC. Este direito é pressuposto obrigatório para que todos os outros direitos decorrentes do mesmo artigo sejam cumpridos tanto pelo Estado receptor, quanto pelo Estado que envia.

Ao meu ver, essa é a principal obrigação imposta pela CVRC ao Estado brasileiro. Deve, portanto, as autoridades brasileiras informar imediatamente o estrangeiro preso que este possui direitos consulares garantidos pela CVRC que é, e.g., o direito de que sua prisão seja notificada, com sua autorização, à repartição consular do seu Estado de nacionalidade.


Notas e Referências:

[1] Cf. CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. El Derecho a la Información sobre la Asistencia Consular en el Marco de las Garantías del Debido Proceso Legal. Opinión Consultiva OC-16/99 de 1 de octubre de 1999. Serie A, no 16. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_16_esp.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2017.

[2] É importante mencionar que a jurisprudência Superior Tribunal de Justiça não vai ao encontro da suprema corte. Para uma análise de como a assistência consular tem sido interpretada pelos tribunais brasileiros, cf. RIBEIRO, Gustavo Ferreira; ALMEIDA, Jeison B. Direitos Consulares do Preso Estrangeiro: Confronto ou Paralelismo da Jurisprudência Internacional e Brasileira? Revista Jurídica da Presidência, Brasília, vo. 17, nº 112, Jun./Set. 2015, pp. 413-437.

[3] E.g., Extradição no 954, Relator Min. Joaquim Barbosa; Extradição no 1.126, Relator: Ministro Joaquim Barbosa; Habeas Corpus no 113.294, Relator: Ministro Celso de Mello.

[4] No caso LaGrand julgado em 2001 e no caso Avena e outros nacionais mexicanos julgado no ano de 2004.

[5] Para uma análise pormenorizada desses direitos, cf. ALMEIDA, Jeison Batista de. Assistência Consular ao Preso Estrangeiro: Fundamentos, Conteúdo e Efeitos. Curitiba: Prisma, 2016.

[6] MARESCA, Adolfo. Las Relaciones Consulares. Traducción: Hermino Morales Fernandez. Madrid: Aguilar, 1974, p. 227.

[7] O Direito consuetudinário consular tem como uma das suas fontes, os diversos tratados bilaterais de matéria consular, firmados entre Estados. Por este motivo, não é raro que estes tratados bilaterais estatuam um dever automático de informação a repartição consular quando um nacional é preso.

[8] “Despues de largas y a veces tempestuosas discusiones, en el curso de las cuales parecía que todo el artículo 36 debería de desaparecer del texto del Convenio”. MARESCA, Adolfo. Las Relaciones Consulares. Op. cit., p. 227.


Jeison Batista de Almeida. Jeison Batista de Almeida é Professor na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT). Mestre em Direitos Humanos pela Universidade do Minho, Portugal. Erasmus no Máster de Estudios Internacionales na Universidade de Santiago de Compostela, Espanha. Advogado sócio da Almeida & Silva Advocacia e Consultoria. .


Imagem Ilustrativa do Post: Darryl Hannah in Handcuffs // Foto de: Tar Sands Blockade // Com alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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