Ecce Homo: Reclamação 43.833 e a integridade física e moral dos presos    

24/12/2020

Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron

A Reclamação Constitucional nº 43.833 (RCL 43.833) trava mais um capítulo na luta pelo alcance efetivo dos objetivos da audiência de custódia no Brasil ao buscar a efetivação da realização do exame de corpo de delito em todas as prisões e a disponibilidade do laudo em 24 horas para a autoridade judicial.

A preocupação com a integridade física e moral dos presos tem que transladar do plano teórico para o prático, no afã de uma verdadeira efetivação do compromisso internacionalmente assumido pelo Estado de promover os direitos humanos. O Brasil, ao se tornar signatário, em 1992, da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), que tratam da audiência de custódia, respectivamente, nos arts. 7.5 e 9.3., avocou para si a obrigação de coibir tortura e maus tratos. No plano doutrinário, essa obrigação é de tamanha relevância que Norberto Bobbio apontou o direito a não ser torturado como um dos poucos direitos absolutos[i].

Contudo, Não há lugar para o estado de negação com relação à violência policial[ii], pois não são raros os casos noticiados pela imprensa, flagrados por câmeras[iii] ou processados judicialmente[iv], em que agentes públicos violam os direitos fundamentais das pessoas presas, em comportamento inconvencional, inconstitucional e ilegal.

Nesse ponto, salutar a atuação do STF ao conceder liminar na ADPF 635 (“Favelas pela Vida”) para proibir operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro, especialmente próximo a escolas, creches, hospitais e postos de saúde, salvo em situações singulares, nas quais exige-se a fundamentação das circunstâncias excepcionais e a comunicação no prazo de até 24 horas ao representante do Ministério Público.

Junte-se, ainda, a decisão liminar concedida na Reclamação 29.303, que determinou à Justiça Fluminense a realização das audiências de custódia aos presos preventivos, temporários e definitivos, tendo sido estendida tal decisão Ceará, Pernambuco e para todo o país, por meio de pedido da Defensoria Pública como Custos Vulnerabilis.

A ADPF 635 e a RCL 29.303 têm um objetivo em comum com a RCL 43.833, qual seja: contribuir para a prevenção/repressão da violência policial, em contraposição à formação do servidor público a partir do ethos do guerreiro[v].

Para se combater tortura ou maus tratos é imprescindível a realização do exame pericial apto a provar ditas situações. É ônus do Estado provar que não houve tortura, e não do custodiado provar que houve. Senão voltaremos à época do “célebre habeas de Sobral Pinto, que pedia que se aplicasse a Lei de Proteção aos Animais às pessoas que estavam sendo torturadas e que não recebiam tratamento sequer igual ao dos animais”. [vi].

Diante do reconhecimento do STF de que no sistema penitenciário brasileiro vige um “Estado de Coisas Inconstitucional” não é demais lembrar que “o núcleo essencial da decisão com força vinculante tomada na Medida Cautelar da ADPF 347 é justamente a proteção à dignidade da pessoa humana contra as constantes, intensas e graves violações perpetradas pelos aparatos de poder contra as pessoas privadas de liberdade.”[vii].

Ainda nesse contexto, o CNJ disciplinou a implementação das audiências de custódia no Brasil (Resolução 213/2015), em que o magistrado deve  “verificar se houve a realização de exame de corpo de delito, determinando sua realização” com observância do Protocolo de Istambul[viii] e, mesmo diante da impossibilidade da realização da audiência em tempos pandêmicos, o CNJ manteve a obrigatoriedade de observação da integridade dos presos, conforme se pode verificar na Recomendação nº 62/2020 e 68/2020.

Resta, portanto, aos Tribunais a opção pela realização ou não das audiências de custódia, mas permaneceu obrigatória, em ambas as situações, a tutela da integridade física e moral dos custodiados.

Acrescenta-se que, no dia 24 de novembro de 2020, o CNJ o ato aprovou o Ato Normativo n° 0009672-61.2020, que autoriza a realização das audiências de custódia por intermédio de videoconferência, em razão da pandemia. Transcendendo a análise da (in)constitucionalidade de tal medida[ix], finca-se que foi mantida a preocupação com a preservação da integridade física do preso, mediante prévia submissão do custodiado a exame de corpo de delito, na conformidade do art. 4º da normativa ora referida.

Destarte, diante do mosaico normativo apresentado (Resoluções 49/2104 e 213/2015 do CNJ, Recomendação 62/2020, inclusive com as alterações efetivadas pela recomendação 68/2020 e o Ato Normativo n° 0009672-61.2020), bem assim com as disposições constitucionais, convencionais e legais que regem a matéria, concluir-se pela imprescindibilidade da emissão de laudo e ainda registro fotográfico de rosto e corpo inteiro do custodiado como forma de resguardar a integridade física e moral dos presos.

Na práxis judicial, todavia, as audiências de custódia, nas diversas modalidades atualmente admitidas, são realizadas a despeito da realização das perícias e juntadas de exame de corpo de delito, o que impossibilita a fiscalização da ocorrência de maus tratos/tortura. Foi justamente de posse de um acervo estatístico do descumprimento dessa obrigação aliado à falta de solução administrativa do problema, que a Defensoria Pública do Estado do Ceará ingressou com a Reclamação Constitucional nº 43.833.

Em que pese o fato da Reclamação Constitucional nº 43.833 ter sido ajuizada para questionar o comportamento da Perícia Forense do Estado do Ceará, impede pontuar que a realização de custódia (presencial, online ou em forma de mera análise dos autos) sem apresentação de laudo pericial ou juntada de exame de corpo de delito não é uma realidade exclusiva do estado cearense, o que somente engradece a importância do julgamento dessa ação constitucional e já aponta, tal como se sucedeu com a Reclamação Constitucional nº 29303, para a sua potencialidade de expansão para todo o país em caso de decisão favorável.

Pontua-se que, nos termos da MC/ADPF 347, o prazo de 24h para a realização da audiência de custódia compreende que, dentro desse mesmo intervalo temporal, haja também a lavratura do auto de prisão em flagrante, realização e juntada do exame de corpo de delito e fotografias; intimação do Ministério Público e defesa para suas respectivas manifestações e a decisão judicial. Interpretação em sentindo contrário desvirtuaria a própria razão de ser das audiências de custódia, vez que restaria prejudicado a consecução dos seus fins.

Outrossim, o efetivo combate à tortura/maus tratos é resguardado pelos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, de forma que é obrigação do Estado (seja através do Legislativo, Judiciário ou Executivo) efetivar os direitos ali consagrados. Desta feita, a Administração Pública tem obrigação de disponibilizar os recursos técnicos e humanos para realização das perícias e envio dos laudos e fotografias no prazo de 24h. Somente assim, restará reafirmado o compromisso do Brasil com a efetivação dos direitos humanos, afinal “Conter ou limitar o poder punitivo não significa compactuar com a impunidade, e sim pugnar pelo respeito às regras processuais, constitucionais e convencionais que disciplinam a atividade do sistema de justiça criminal[x].

 A audiência de custódia visa a que: a) se verifique a eventual ocorrência de maus tratos e (ou) tortura; b) se analise a (i)legalidade da prisão; e, (c) (des)necessidade do encarceramento[xi]. O descumprimento do prazo para realização da perícia e seus respectivos laudos torna inviável o objetivo humanitário da audiência de custódia de prevenir/reprimir tortura e maus tratos, principalmente no cenário jurídico atual em que a custódia pode ser realizada na modalidade online ou ainda se resumir à análise dos autos físicos. Ora, se com a presença real do preso, é imprescindível o procedimento pericial, quiçá quando o custodiado não é apresentado à autoridade judicial. Já basta a impunidade inerente a alguns métodos de tortura, que não deixam marcar físicas visíveis, mas implicam cicatrizes psicológicas incalculáveis.

Nesse ponto, ainda que alguns venham a indevidamente entender que essa medida somente vem a “fomentar um atual quadro de impunidade”, a postura há de ser radical: a ausência do laudo municiado com fotografia é causa de ilegalidade da prisão, o que, por força constitucional, implicará no relaxamento do cárcere. Não pode algo ser considerado uma obrigação estatal e, caso descumprida, ser tida como uma mera irregularidade. A presunção de legalidade do ato administrativo não milita em desfavor de quem goza o estado de inocência. Reconhecer a violação ao ordenamento jurídico e, ainda assim, atribuir o caráter de mera irregularidade constitui uma forma de perda da legitimidade do Estado e uma atuação contrária ao que veio a ser assumido pelo Brasil na comunidade internacional.

Nunca é demais lembrar que o autuado é sujeito de direitos e não mero objeto de prova. As perícias e fotografias servem como filtro moderador para coibir maus tratos e torturas. Destarte, a Defensoria Pública, enquanto instituição pública de defesa e com a missão constitucional de promover dos direitos humanos, deve lutar pelo acolhimento Reclamação Constitucional nº 43.833; daí, a importância das demais instituições defensoriais se habilitarem como Custos Vulnerabilis[xii] outras instituições da sociedade civil se habilitarem como assistentes ou amici curiae.

O entendimento de prescindibilidade do laudo pericial e fotografias do preso na audiência de custódia viola a regra pro homine, que deve ser a baliza interpretativa das normas convencionais que versam sobre direitos humanos, e põe em risco não apenas os direitos das pessoas custodiadas – em especial a apuração da ocorrência de tortura ou maus tratos –, mas sobretudo fere o fundamento da dignidade da pessoa humana, e por conseguinte, o próprio Estado Democrático de Direito.

Amanhã é Natal, uma lição histórica, mas atual, que podemos extrair neste período é a de que não basta entregar o preso à Justiça – Ecce Homo – é preciso que não lhe batam, não lhe açoitem, não lhe cravem uma coroa de espinhos ou lhe deem vinagre.[xiii].

 É preciso bradar com todos os pulmões: a integridade física e moral dos presos importa!

 

Notas e Referências

[i]               BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

[ii]              SEMER, Marcelo. Sentenciado o tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019, p.113-119.

[iii]             https://noticias.r7.com/cidades/video-mostra-policiais-torturando-jovem-com-afogamento-no-ceara-28082018

[iv]             http://www.mpce.mp.br/2020/08/19/justica-recebe-denuncia-do-mpce-contra-12-policiais-por-tortura-e-lesao-corporal/

[v]              “O discurso do guerreiro sobe, sorrateiramente, os fóruns judiciais. O ethos guerreiro, conceito desenvolvido por Norbert Elias ao analisar a sociedade alemã pré-nazismo, mas também perfeitamente adequado a outras sociedades ocidentais belicistas da época, como já eram (e são) os Estados Unidos, terminou sendo importado por aqui da matriz estadunidense durante a ditadura civil-militar, sendo introjetado enquanto ‘habitus’ dos membros de nossas forças policiais.” (SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano. A guerra ao crime e os crimes da guerra. Uma crítica descolonial às políticas beligerantes no sistema de justiça criminal brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 111)

[vi]             John W. F. Dulles narra a origem dessa invocação de uma lei voltada para a proteção de animais como forma de assegurar um tratamento mínimo para os inimigos do regime Vargas: “Após a partida de Levinson [advogado americano que teria uma procuração dada por Prestes e Berger], Sobral [Pinto] enviou a Raul Machado [juiz do Tribunal de Segurança Nacional] um artigo de jornal sobre um homem que havia sido punido com multa e sentença de prisão por tratar tão mal a um cavalo, que este acabara morrendo. Na carta que acompanhava o artigo, ele ressaltou a legislação que proibia a manutenção de animais em lugares anti-higiênicos ou ‘que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou que os privem de luz’”. (DULLES, John W. F. Sobral Pinto: a consciência do Brasil. A cruzada contra o regime Vargas (1930-1945). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 95)

[vii]            ROCHA, Jorge Bheron; NEWTON, Eduardo Januário; MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves. ALVARÁ DE QUASE -SOLTURA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. In Empório do Direito. Disponível em <https://emporiododireito.com.br/leitura/alvara-de-quase-soltura-no-ordenamento-juridico-brasileiro>.  Acesso em 25.11.2020

[viii]   A Recomendação CNJ 49/2014 trata do Protocolo de Istambul, denominado de Manual para Investigação e Documentação Eficazes da Tortura e de outras Formas Cruéis, Desumanas ou Degradantes de Castigo e Punição

[ix]             NEWTON, Eduardo Januário; MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves: ROCHA, Jorge Bheron. Pau que dá em juiz de garantias não dá em custódia virtual? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-02/opiniao-juiz-garantias-custodia-virtual

[x]              PAIVA, Caio. Audiência de custódia e o processo penal brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p.28

[xi]             Não se pode desprezar o fato de que já há quem sustente uma quarta função para a audiência de custódia, que se relaciona com a necessidade de humanização do processo penal e, diante da ausência da criatividade do seu defensor, foi tratada como cuidado. Sobre o assunto: NEWTON, Eduardo Januário. Uma nova função nas audiências de custódia? Disponível em: https://caosfilosofico.com/2020/05/22/uma-nova-funcao-nas-audiencias-de-custodia/ Acesso em 21 de dezembro de 2020.

[xii]            GONÇALVES FILHO, Edilson; MAIA, Maurílio Casas; ROCHA, Jorge Bheron. Custos vulnerabilis: a Defensoria Pública e o equilíbrio nas relações político-jurídicas dos vulneráveis. Belo Horizonte: CEI, 2020.

[xiii]           João, Cap. 18, v. 22; João Cap. 19, vv. 1-2.

 

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